Do ponto de vista de um
leitor de 8 a 9 anos, o confronto com as histórias de Fernando Relvas na
revista Tintin era significativo,
feito no interior de uma ignorância em relação à questão da personalidade dos
autores e mais focada no papel efectivo das histórias em si. Quando as
histórias de Pratt pareciam "chatas" (só mais tarde começariam a
fazer sentido e, depois, mais tarde ainda, voltariam a sair dele), as páginas a
preto-e-branco da revista-ritual semanal pareciam ser ocupadas somente com
histórias menos comuns, menos divertidas (pois se não tinham cor!), e que jamais
se encontravam em formato de livro, o que representava uma espécie de
confirmação do mesmo ritual. Mas havia algo que nos fazia encontrar em Acácio
algo a continuar, e um ambiente que não compreendíamos bem; passado no Algarve
ou na superfície de Io (por ser "dos crescidos"?, por não haver um herói nítido?) que nos obrigava a reler e a reler, não para nos divertirmos
outra vez mas tentar deslocar sentidos novos que não havíamos percebido. (Mais)
31 de março de 2014
29 de março de 2014
WC. Marriette Tosel (Mmmnnnrrrg)
Deste
pequeno mas intenso livro diremos sucintas, mas esperamos que
pertinentes, palavras. Uma vez ser consabida a sua autoria histórica
e física,
de Tiago Manuel, as leituras tentadas sobre todo e qualquer novo
projecto devem ser feitas à luz dúplice, mas jamais dúbia, da
filiação imediata aos nomes autorais de cada volume (ligando,
portando, WC
a O armário psicótico)
assim como da inscrição maior no projecto heteronímico de Tiago
Manuel. Assim sendo, estas breves notas devem ser vistas como
complementando tudo aquilo que temos escrito sobre este mesmo
projecto, uma vez que existem linhas de fuga necessariamente comuns
entre os vários “nomes”, ainda que seja igualmente necessário
ser-se atento à distanciação de cada “assinatura”, inclusive
em termos gráficos. Algumas interpretações e leituras partem
precisamente do saber um
nome “por detrás” dos distintos livros para tecerem
considerações sobre o “estilo inconfundível”, as “pistas
comuns” e por aí fora, confundindo dessa maneira as intensidades
diversas. (Mais)
24 de março de 2014
Hawk. André Oliveira e Osvaldo Medina (Kingpin Books).
Hawk é claramente um ponto de encontro entre a vontade dos
seus autores e do editor. Quer dizer, não se trata somente de uma obra
existente em si mesma que tem a felicidade de encontrar o seu veículo
editorial, nem tampouco um projecto de publicações que arranja espaço para um
novo título, mas antes a convergência das vontades em explorar as mais diversas
frentes possíveis da banda desenhada, da parte de André Oliveira, sobretudo, e
a de consituir um católogo particularmente moldado para uma reformulação de
géneros contemporâneos através da máxima legibilidade, coordenação de estratégias
de comunicação e garantia de uma transparência em todos os passos dos processos
colaborativos na criação de um livro, da parte de Mário Freitas. Quer dizer,
não estaremos à espera de encontrar nesta família de livros exercícios radicais
de experimentalismo e de expansão formal da própria banda desenhada, mas antes uma
busca equilibrada entre os seus instrumentos mais claros e sustentáveis. (Mais)
11 de março de 2014
Jiro Taniguchi, L’homme qui dessine. Benoît Peeters (Casterman)
Este livro é constituído basicamente por uma longa, longa entrevista conduzida por Benoît Peeters ao autor de O homem que caminha, justificando-se assim o seu título lúdico. Uma vez que Peeters não é nem um jornalista nem tampouco um mero divulgador ou “especialista” da banda desenhada, mas antes um dos decisivos investigadores teóricos e históricos no circuito francófono, e igualmente um importante autor literário e de banda desenhada, e apesar do formato pergunta-resposta perfeitamente distribuídos entre os dois intervenientes (com a mediação da tradutora), na verdade o que emerge da leitura de todo este texto é uma conversa entre duas pessoas profundamente envolvidas, cada qual, não apenas no papel de agente dos seus territórios respectivos, mas igualmente no de admirador do outro. Assim, ainda que haja toda uma série de aspectos ou categorias expectáveis a serem cobertas, surge também, aqui e ali, ou como um baixo contínuo, um ambiente de mútua descoberta e construção. (Mais)
7 de março de 2014
Dois livros entre escritores e quadrinistas brasileiros (Companhia das Letras).
Ainda que seja possível que esta seja uma visão de um forasteiro, não nos livramos da ideia de que o Brasil tem um mercado cada vez mais robusto e sofisticado de banda desenhada, não apenas pela oferta de traduções, e a sustentabilidade do seu mercado de longa vida de material comercial de banca (gibis infantis ou comics norte-americanos), mas pela (aparente?) cada vez maior diversidade de formatos, géneros, humores, estilos, e até mesmo ontologias da banda desenhada, com um destaque particular para com a produção nacional, também ela robustecida pelo confronto com um panorama internacional complexo. O panorama é muito diferente de há uns vinte anos, existindo mais agentes editoriais, consolidados, com experiência e orçamento para uma lata distribuição e exposição dos seus títulos, que apostam nos quadrinhos nacionais. Os dois livros sobre os quais estas breves notas incidem são contributos para essa situação, pertencendo a uma prestigiada editora de literatura de primeira linha. Além de que eles abrem uma complexa via dessa diversificação e alteração interna, no que diz respeito à própria banda desenhada. Não se trata aqui de tentar “sacudir” algum do prestígio da editora para os títulos de banda desenhada por ela editados, mas sim de procurar que essa banda desenhada vá ao encontro de critérios literários, estéticos e ontológicos que costumam ser o cerne do trabalho editorial dessa plataforma. A diferença é de monta, e repete experiências relativamente modernas (Pantheon e Seuil, por exemplo). (Mais)
1 de março de 2014
Nu-Men. Fabrice Neaud (Quadrantes Soleil).
Quando damos início à possibilidade de analisar um livro, ela nasce desde logo orientada por uma qualquer perspectiva. Se num primeiríssimo momento não passa de uma impressão (ou uma “opinião”, passageira pela sua natureza própria, e não enquanto saliente pela percepção mas apta a ser moldada de alguma forma como a impressão), a decisão imediata de a fazer passar um determinado crivo vai transformar essa ideia ora numa leitura mais decidida, ora numa noção que vem alterar uma visão anterior, etc. Por hipótese, e olhando para um livro como este, que questões nascem logo? Tratando-se de uma série de álbuns, cujos dois primeiros volumes estão já disponíveis - o primeiro volume intitulando-se Guerre urbaine e o segundo Quanticafrique -, poderíamos lê-lo à luz da sua integração no mercado comercial de banda desenhada francês: uma série, aparentemente clássica, com um número standard de páginas e seguindo a materialidade mais usual destes objectos para sua nomenclatura e entrada nas estantes (algo discutido bastas vezes, e recentemente através do seu “assalto” com 978). Mas também se poderia procurá-lo explicar, digamos assim, na economia de género, a ficção científica, até mesmo hard, com laivos de teorias da conspiração, ou de trama policial, mas também com as inevitáveis invenções/projecções sociais que não são senão comentário sobre a cultura já em curso. Uma outra hipótese é a de considerar o seu autor, ou o seu percurso, e aí pode residir uma surpresa significativa. Fabrice Neaud, autor de um dos mais monumentais projectos da banda desenhada autobiográfica contemporânea produzidos até hoje, o Journal, uma obra que obriga a questões difíceis, “desviando-se” para uma história, para todos os efeitos, normalizada. (Mais)