Morreu-nos o Fernando Relvas.
Esta expressão – acrescentando o
pronome reflexo àquele verbo que, de tão intransigentemente
intransitivo assinala uma transição derradeira – é egoísta. Mas
é também apropriada, como se uma morte fosse uma afronta pessoal
para quem fica vivo e sente, de uma maneira ou outra, que lhe fizeram
uma desfeita. Uma promessa incumprida, uma conversa inacabada, uma
pergunta por fazer.
Este não é o local de fazer
panegíricos. Os artistas não precisam de elogios, mas de serem
lidos, e vistos, e pensados, e tivemos a oportunidade, quando da exposição Horizonte,
Azul-Tranquilo, de escrever (pouco) aquilo que tínhamos a dizer
da vida e obra de Fernando Relvas, que a Bedeteca nos permitiu, e o próprio Relvas, sempre disponível. Chamámos-lhe "sismógrafo" e "hápax", dois "insultos" a que o "urso" responderia com um encolher de ombros, indiferente, como deve ser, aos discursos ao quadrado. Ao revisitar algumas fotografias
da montagem da exposição, deparámo-nos com esta, que então estava
cheia de promessa, e agora se reveste de um sentimento de perda.
Ainda assim, ainda assim, a paisagem está prestes a ser preenchida,
a saída de emergência convida ao salto, o balão a que escutemos
com atenção...
O Relvas foi, a nosso ver, um “artista
de artistas”, naquele sentido em que a sua lavra e obra teve mais
impacto sobre toda uma (ou mais) geração de artistas que se
seguiram do que propriamente junto a um público mais massificado. Em
parte, isso terá a ver com o facto de que a sua produção foi
seguindo as variadíssimas circunstâncias em que as possibilidades
de fazer e publicar banda desenhada em Portugal, por um português,
se estendiam e haver, sobretudo nos dias de hoje, uma atenção mais
vincada para com o objecto-livro (e não nos abstemos de incorrer
nessa cegueira genérica, aqui, neste espaço) do que para com outras
plataformas. E Relvas foi um mestre da banda desenhada de imprensa
(semanário, revista, pasquim), em que a respiração era feita a
cada momento, mais do que de projectos de longo curso e com
estruturas literárias. E foi também um mestre do desenho, a pulso,
quilómetros infindáveis de linhas de grafite e tinta e pixéis e
frames percorridas por tantos, tantos projectos díspares em
termos de estilos e géneros e vontades e fortunas, muitos dos quais
inacabados, mas não por isso menos visitáveis. Arriscar-nos-íamos
a afirmar que Relvas estava menos preocupado em “contar histórias”
do que dar corpo à sua necessidade de expressar o desenho, mas um
desenho naquele permanente desequilíbrio de enraizar mundos, mais ou
menos ficcionais, e de se aproximar, numa qualquer ideia de
comunidade, ao leitor e leitora.
Tivemos o raro privilégio de conhecer o artista de mais perto e podemos afirmar, com toda a segurança, que
ainda há muito para aprender sobre Relvas, muito para ler, para
descortinar, apreciar, desvendar e tentar compreender. Talvez nunca
se chegue ao fim ou se atinja essa compreensão, mas isso é talvez
um benefício ao leitor. Por isso, leia-se.
Até breve, Relvas.