22 de fevereiro de 2006

A History of Violence. John Wagner e Vince Locke (DC Comics/Vertigo)


Faz-se aqui uma excepção às regras implícitas deste blog, já que este livro foi publicado em 1997, pela Paradox Press (outra das subsidiárias da DC), e esta nova edição não ter nada de novo; a desculpa é a proximidade do filme.
As escolhas que o argumento do filme de Cronenberg fez a partir do livro são, obviamente, necessárias, e mais uma vez se chama a atenção para que o modo do cinema, sendo produzido por elementos bem diversos, não pode actuar da mesma maneira. O que me importa numa adaptação é se o “tom” ou a “experiência” do livro original foi mantida, preservada, estruturada para o seu “segundo texto”, ou se é simplesmente uma desculpa para criar algo diferente, mas menor dentro do seu próprio modo de expressão. A falta de qualidade dos filmes baseados nos livros de Alan Moore, por exemplo, não se devem à criação original, mas ao facto de que os filmes nada representam em termos de cinema, a não ser um aproveitamento quase obsceno do “merchandising” para fazer espectacularidades vazias, e desrespeitando ao máximo quer a inteligência dos livros quer a dos seus leitores... Não é o que se passa aqui, mas não nos cabe falar do filme, apenas dos elementos do livro que se mantêm intactos e que perfazem a “experiência”, como disse, de A History of Violence. Há que dizer, porém, que na filmografia de Cronenberg parece haver uma mudança de foco do seu tema-fetiche, o corpo humano, passando das invasões e das erupções para uma latência, ainda da monstruosidade, mas diferente.
É de monstros que se falam aqui. Uma das frases publicitárias do livro é que “o passado nunca morre... a não ser que o matemos”. O passado fica sempre gravado em tudo o que se lhe segue, mesmo que os sinais que deixas, as marcas, não sejam visíveis. As marcas que os monstros provocam, especialmente quando os monstros somos nós mesmos, são então indeléveis e pouco importa o quanto nos dediquemos a disfarçar-lhe os sinais. Como soe ser proverbialmente, o tempo fá-las retornar, às marcas, e a monstruosidade espalhar-se onde não existia e desejávamos que não existisse. O livro é mais violento em termos de número de actos, em termos de acção e da sua profundidade. Também há um menor “factor super-homem” em relação ao filme, mas que, em relação a toda a bibliografia de John Wagner também, se nota ter tentado combater para fazer o seu livro mais adulto (um autor cuja criação mais famosa nesse círculo é Judge Dredd, o oposto do sistema jurídico português).
Os desenhos de Vince Locke são feitos dentro de padrões naturalistas, mas com uma profusão de contornos abertos ou um trabalho muito livre de traços cruzados para sombras fora desses mesmos contornos que leva a uma leitura quase caligráfica, próxima da de Sfar, por exemplo, mas não tão livre. Os seus pontos de contacto estão mas próximos de artistas como Guy Davis ou Jill Thompson, com quem trabalhou no volume Brief Lives, de The Sandman (Dc Comics e Devir). A estruturação das pranchas leva a um pequeno número de vinhetas por página, e de fácil e linear legibilidade. Ambas essas estratégias – um traço rápido, de “esboço” quase, e grandes, poucas vinhetas – aproximam-no de uma velocidade “à mangá”, elevada naturalmente, como se o que importasse não fosse a contemplação dos seus desenhos, mas a impressão que deixa na retina depois de termos passado por eles, e que vão criando na memória a sua corporalidade de personagens, de espaços, de acção. Locke tem alguma experiência no campo do terror ou do fantástico-gótico (passando até pela ilustração das capas dos álbuns dos Cannibal Corpse).
O livro não deixa de ser construído dentro dos parâmetros clássicos do mainstream anglófono da banda desenhada, quer em termos de trama, de encadenação episódica, de moral até. Mas, a “velocidade” de que falei aliada à forma como a violência que se herda se espalha pelos novos espaços torna este título uma boa leitura e um bom exemplo de “livro respeitado” na sua adaptação a cinema, mantendo intactas as suas “linhas de força”. E aliado a essa adaptação de Cronenberg, talvez seja um grande contributo a que se pare de utilizar a expressão “filme de banda desenhada” como de sentido pejorativo.
Nota: agradecimentos a Fernando Guerreiro, pelas notas e discussão, e por todas as pistas abertas.Posted by Picasa

1 comentário:

Pedro Moura disse...

Sim, absolutamente. O filme baseou-se neste livro. Mais detalhes depois... E, quando estrear, tirar-se-ão as dúvidas. Note, por favor, nas palavras que estão no topo da capa deste livro...