6 de janeiro de 2007

Foster e Val. Os Trabalhos e os dias do criador de "Prince Valiant". Manuel Caldas (Livros de Papel)


Penso que o título deste livro é relativamente falso. Penso que se deveria antes chamar, Val, Foster e Eu. O trabalho de Manuel Caldas é um trabalho de amor, de fã, mas o que mais surpreende é o divórcio que acontece entre esse aspecto emocional, de entrega que suponho o mais física possível e profunda, para nos apresentar uma obra coesa, ponderada, verdadeiramente digna do seu objecto de pensamento. Não sendo propriamente uma obra académica, de ensaio, é uma obra de passadas seguras e directas, com as quais apenas podemos aprender e aprender a apreciar a obra explorada (e editada pelo mesmo). Nota: não quero com isto dizer que a obra de Manuel Caldas não é digna de respeito e de registo nos anais académicos; simplesmente que o seu objectivo primário não é servir os princípios da Academia, entendendo-se esta como um corpo de disciplinas cujas fronteiras metodológicas, estabelecimento de parâmetros de discurso e rede de associações é relativamente rígida e regrada. Existem outros títulos que estão mais próximos dessa vontade de academizar.
Esta obra apresenta toda uma série de facetas e perspectivas sobre o autor, Harold Foster, e a sua obra principal: a biografia, os aspectos técnico-artísticos, estéticos, temáticos, a restante obra de Foster, o seu papel influente, o papel e a qualidade (ou falta de) das edições do Princípe Valente (inclusive as portuguesas). Dividida por capítulos, e profusa e brilhantemente ilustrada (brilhante quer na reprodução técnica quer na opção editorial), é um enorme livro que se lê com um ritmo quase familiar... Retomando parcialmente material que já havia publicado antes, tem partes novas, um design sóbrio e legível, e ainda uma agradável surpresa, também ela informativa e educacional, para os leitores no final do volume...
É curioso que Manuel Caldas inclua logo na abertura desta sua obra o ataque de alguns autores, como o de R.C. Harvey, para citar um exemplo próximo, de que o Príncipe Valente não é banda desenhada por razões, as mais das vezes, definidoras e essencialistas – o balão, para começar, mas outros aspectos são também avançados (é curioso, por essa ordem de razões, que o autor tenha escolhido, para fundo da capa deste livro precisamente uma prancha onde existe aquilo que se poderia chamar um meio-balão, extremamente surpreendente e de um uso inédito, penso, mas que desarruma esta questão...). A verdade é que não estamos perante um trabalho de ilustração, de literatura ilustrada tout court. Não é possível levar esta discussão de uma forma acabada e total neste espaço, mas apresentemos algumas ideias. Para já, estou em crer que a fronteira entre a banda desenhada e a escrita ilustrada, ou literatura ilustrada (os nomes são vários) não é quantificável nem verificável de um modo exacto, algébrico. Poderemos afirmar, de certa forma, que a estruturação das relações entre o tempo da acção e o tempo da narrativa é, na ilustração, mais “atomizado”, para aproveitar uma expressão do artista Luís Henriques. Isto não quer dizer que não possam existir bandas desenhadas, com os restantes elementos clássicos, que não atomize esses momentos-chave (uma prancha de Cliff Sterrett, uma sequência de Chris Ware, uma banda desenhada, “aspectual”, famosa de Crumb); mas é de facto verdade que as expectativas generalizadas da leitura apontam para uma fragmentação mais activa na banda desenhada e uma escolha por momentos “pregnantes” na ilustração. Ora Hal Foster providenciou-nos com incontáveis exemplos dessa sequencialização de uma acção (para nos cingirmos a esse aspecto), para que o possamos fazer esquivar à sua pertença a uma família maior... da banda desenhada.
Todavia, a inclusão desses detractores é um ponto de retórica forte para M. Caldas. Afinal, há algumas considerações sobre edições anteriores desta série e, pela sua inteligente, eficaz, directa e simples crítica a essas mesmas edições, por forma indirecta acabam por se apresentar as justificações fundadíssimas para a política, as opções técnicas, e a posição editorial para com Prince Valiant, e o modo como ela nos é apresentada na colecção da Livros de Papel. Aliás, basta olhar para as edições da Asa (as mais recentes em Portugal antes desta), do princípio dos anos 90, com reproduções fotográficas das pranchas de jornal coloridas, e retocadas para a sua nova reprodução, onde essas mesmas cores, carregadas, histriónicas, nos impedem de ver o trabalho dos traços de Foster; ou, recuando um pouco mais, para a edição a preto e branco da Slatkine, dos anos 80, em que a reprodução das linhas é um tanto ou quanto, para utilizar um termo específico, desenxabida... A inclusão de vinhetas ou de pranchas a cores torna Foster e Val mais apelativo a um público vasto, mas ao mesmo tempo serve para mostrar porque não é a cores que a edição de Manuel Caldas é feita (e isso é justificado verbalmente também).
A historicidade da série é sobejamente conhecida como, no mínimo, defeituosa. Contudo, a própria “matéria da Bretanha”, conforme era conhecida na nossa própria Idade Média a temática em torno do rei Artur, a Távola Redonda e, mais tarde, o Santo Graal, já de si é um composto duvidoso de História, ainda que, enquanto semente de ficção, seja uma das mais felizes e profícuas (ou tristes, conforme a perspectiva e a obra a que nos referirmos; em relação ao Príncipe Valente, penso ser positivo). Nesse aspecto, o Astérix de Goscinny é mais sólido! Mas as centenas de pranchas dominicais de Foster não procuravam a construção de subsídios à História; antes a explanação de uma imaginário possível na sua comunicação e relação com uns Estados Unidos da América saída de uma crise económica profunda e prestes a mergulhar numa Guerra do outro lado do lago. Logo, teve a oportunidade, o tempo e o espaço para pensar na organização das pranchas de todos os modos possíveis, como o veículo de transmissão desse encontro. Manuel Caldas avança muitas leituras, não só informadas como informantes, das leituras e aprendizagem técnica que ainda merece alguma atenção e resistente neste trabalho.
Durante algum tempo, devo confessar, O Príncipe Valente representava para mim aquilo que de pior existe numa certa nostalgia da “Idade de Ouro da Banda Desenhada”, cuja existência repudio em absoluto, já que não partilho nem de nostalgias nem creio em “Idades de Ouro”, pois isso nega-me o crescimento de um futuro. Ainda que não pense ser a imitação do virtuosismo académico de Foster, a busca pelo naturalismo, a opção pela aventura tópica, a moralidade algo conservadora, modelos para um culto contemporâneo da banda desenhada, potencializada por caminhos mais pessoais, mais soltos, até mesmo mais artísticos (de um ponto de vista estético-institucional, e em diálogo com as artes “de galeria” de hoje), dou a mão à palmatória, e o braço a torcer, e outras expressões quejandas, de limitações minhas ultrapassadas graças a pessoas mais informadas, atentas, mas acima de tudo capazes de tornar explícita, inteligentemente, a razão dos valores de um clássico como o de Foster. Porque o é, sem dúvida alguma. Em Portugal, essas pessoas foram para mim Domingos Isabelinho, directa e pessoalmente, e indirectamente (ou não, pois a “transmissão por livro” é também directa, se apenas unidireccional a maior parte das vezes), Manuel Caldas. Pois se essa dúvida, de que estamos perante uma obra de excelência, se não mesmo de excepção, não só em termos artísticos (passe a questão de ser uma linguagem que julgue não-repetível), como de estruturas narrativas (ainda que pautada pelas limitações da sua produção e publicação), de expansão temática e de riqueza humana face à psicologia do herói, se essa dúvida, dizia, se vai dissipando aos “novos” leitores com esta edição, este volume de Manuel Caldas confirma e aponta as linhas, não “de fuga”, mas de aproximação a essa mesma obra. Posted by Picasa

4 comentários:

Rui Gamito disse...

Desculpa a intromissão bárbara.
Mas é só para dizer...

A MONGORHEAD, livraria de BD, vai realizar no dia 20 de Janeiro, no Sábado, uma sessão de autógrafos com o autor e desenhador Rui Gamito e o colorista Rui Lacas, responsáveis pela obra, FATO DE MACACO - O Símbolo.
A primeira estória de uma Saga de 4 estórias.
Para mais informações visitem o Blogue http://opiresvoador.blogspot.com/

''Mais uma vez, Fato de Macaco, enfrenta um oponente que nem sempre é vísivel ou evidente.
O debate sobre o que é a nossa civilização ocorre num ambiente cheio de fogo, balas, tijolos desfeitos, prédios em ruínas, fumo e cinza.''

Grato pela oportunidade e apareçam.

P.s. é bom quando nos compreendem...

Anónimo disse...

Olá:
Isto não é para comentar a obra de Foster nem o livro de Manuel Caldas (embora pudesse esboçar aqui tal coisa). É só p'ra chamar a atenção para o facto de que o bom do Obelix (que era supostamente celta), "viveu" num tempo em que não existiam monumentos megalíticos há mais de 1000 anos (!). Dificilmente se pode considerar isto como um bom exemplo de pedagogia. Um amigo meu, professor de história, dizia-me que muitos alunos dele pensavam que havia dinossauros (ou "dinossaurios", para ser galopinista) na pré-história. Isto por causa da série (e do filme, suponho) "Os Flintstones". Ai! Ai!...

Pedro Moura disse...

É óbvio que não conto com o Astérix como uma obra "pedagógica" (talvez o sejam "Os Super-Heróis de Portugal"?); mas quando falava da solidez não estava a apontar para o seu valor enquanto documento exactíssimo, mas que a maior parte dos acontecimentos retratados, inclusive os ficcionais, são verosímeis dentro de um parâmetro mais histórico do que o Príncipe Valente, parece-me. Até a poção mágica faz sentido junto de gauleses. E a razão pela qual a Esfinge de Quéops perdeu o nariz foi fruto de uma aturada investigação!! :)

Anónimo disse...

Caríssimo:
Muito obrigado pelas abundantes, valiosas e entusiasmadas palavras que dipensas ao meu livro e ao meu trabalho. Fui o melhor que até agora li.
E parabéns pelo teu blog, tão sério e profundo.
Manuel Caldas