12 de abril de 2007

Là où vont nos pères. Shaun Tan (Dargaud)

[Versão francesa de The Arrival]
Nem sempre as bandas desenhadas” mudas” apresentam o mesmo tipo de “silêncio”. A ausência de texto verbal não implica necessariamente que se ocupe esse espaço vago de uma mesma maneira. O silêncio de Là où vont nos pères/The Arrival tenta – e consegue – abrir-se para um espaço de universalidade sem ser através de um “mínimo denominador comum” (um costumeiro baixar da bitola pelo humor mais breve) mas antes pela procura da representação das mais comuns e naturais expectativas e sensações do ser humano. Porque este livro trata da migração humana, não só enquanto fenómeno social e económico, mas como transformação profunda de quem o faz.
O australiano Shaun Tan [onde encontrarão imagens deste livro] é sobretudo conhecido como autor/ilustrador de livros infantis, sendo esta a primeira incursão por um género mais adulto. O autor indica directamente The Snowman, de Raymond Briggs, outro campeão da ilustração infantil, como uma das suas fontes visuais, mas se bem que este último livro partilhe com The Arrival uma mesma estrutura formal de organização e distribuição de vinhetas e pranchas, sendo ambos excepções pela banda desenhada de uma obra maioritariamente de ilustração, o livro que agora nos ocupa vai mas além em termos da potencialidade da relação (silenciosa) entre os textos imagéticos e o texto relacional.
Acompanhamos aqui um protagonista, um homem que parte de uma Europa sublimada (pela negativa?), abandonando temporariamente a sua família para uma outra terra, uma Nova Iorque/Disneylândia de sonho, na qual está a promessa de uma vida melhor. Nessa nova terra, o primeiro objectivo é ultrapassar a estranheza de tudo até conseguir encontrar algum grau de familiaridade, depois de conforto, e finalmente de felicidade. Deixando para trás a sombra dos seus medos (os “dragões), através de vários encontros com outros emigrantes vamo-nos apercebendo de que existem outros medos e dragões de acordo com a origem de cada personagem, e que esta nova paragem é um porto seguro.
As guardas do livro recordarão aos nostálgicos as dos álbuns franco-belgas, especificamente as do Tintin, com aquela procissão de todas as personagens com os rostos emoldurados. Aqui os rostos que vemos pertencem à proverbial “família humana”, já que representam as gentes que existem neste planeta em toda a sua variedade de cores e sabores. E a emigração que testemunhamos – não obstante o afunilamento possível pelas características faciais, de vestes, das cidades, dos meios de transportes aqui representados - poderia ser aquela de muitos milhares de seres humanos espalhados pelo globo. Essa emigração é feita com a mágoa da separação, as sombras dos dragões-serpentes por sobre a cidade levam a pensar num “mal” mais carregado a impelir esse movimento, mas a chegada é a uma promessa que se vai cumprindo. Talvez seja precisamente esse o único aspecto negativo de The Arrival, o facto de ser uma narrativa toda ela positiva, ou melhor, de ela dar apenas a conhecer o “lado bom” (o “sunny side”) do local ao qual os i/emigrantes desse mundo afluem. A burocracia inicial, os exames no interim, e os “choques técnico-culturais” são os únicos momentos em que o(s) imigrante(s) se defrontam com algo que corre menos bem. Mas mais cedo que mais tarde todos eles se adaptam e entreajudam, até estarmos perante uma recriação de um paraíso na terra que parece ecoar as esperanças semeadas por Isaías e onde a irmandade humana (e para além dela) é uma realidade tangível.
O próprio autor fala do livro como palco de convergência de vários fios em que ia pensando (e não o será sempre em qualquer acto criativo?). Não estando preocupado com fontes, podemos no entanto encontrar neste livro toda uma série de elementos que nos remete para universos narrativos fantásticos que colocam as cidades no seu centro, como os contos de Italo Calvino, os falsos documentos de Saul Steinberg, a Metropolis de Lang, as bandas desenhadas da dupla Schuiten & Peeters, os malabarismos gráficos de Dave McKean (sobretudo se na companhia de Neil Gaiman) e o obtuso Codex Seraphinianus. Aliás, há muitas associações possíveis a esta última obra, já que também em The Arrival, não estando elas no centro das atenções, se atravessam muitas descobertas e descrições de objectos, de fauna e flora, de comportamentos, de hábitos e possibilidades de alimentação, transporte, política, comunicação... Quanto às associações a histórias reais, tudo é sobejamente claro. O exemplo mais flagrante é a forma como mima a chegada de emigrantes de todo o mundo a Ellis Island, a grande porta dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX. Nessa ilha, hoje, existe um grande museu da imigração, e o processo multifacetado da chegada dos esperançados viajantes é neste livro imitada, ainda que de modo transfigurado.
Mas para além dessas imediatas ligações a uma tradição, banal e clara por sinal, existem estratégias formais curiosas. A representação das vinhetas fazem, de quando em vez, recordar fotografias colocadas numa superfície maior. A imitação das fotografias, se bem que relativamente convencional (a sépias, enquadramentos clássicos, a procura de um “grão”), mostra a inclusão de dobras e vincos do papel, aumentando nesse aspecto a ilusão pretendida. Reforçando, mais uma vez, a construção de uma espécie de “memória de fundo” que poderá ser partilhada por todos os emigrantes, venham eles de onde vierem, vivam eles onde for. Esse fundo está presente na estranha escrita que parece beber de todas as linguagens do mundo. O próprio autor aponta para que esses signos que espalha por toda a obra não pretendem tornar-se símbolos fechados que levem a uma interpretação única, mas algo que está em movimento no interior da obra em si, e possa facilitar uma entrada livre aos seus potenciais e diversos leitores.
Há um elemento, claríssimo, que me faz recordar um conto de Kafka. O pequeno bicho inidentificável da capa, se bem que muito mais orgânico, organizado, e semelhante a outros reais da nossa mundanidade, que essoutro criado por Kafka, faz ainda assim recordar o estranho hóspede de uma família burguesa que dá pelo nome de “Odradek”. Esse animalejo-objecto do famoso escritor era fonte de “preocupação de um pai de família” (o título do conto onde se encontra a criatura), pela substancial razão de que se corria o risco dela sobreviver aos membros da família. Apenas nos pode oprimir com esse medo da morte aquilo que de nós está separado. O Odradek vivia na mesma casa, mas num outro nível, separado, da existência da família. Este animalejo da cidade de Tan, assim como todos os outros que aí habitam, seduz o homem que passa a habitar o seu apartamento, até se tornar “estimado”, isto é, interior ao círculo familiar. Todos estes animais, em conjunto com os estranhos objectos a que os imigrantes se têm de habituar, não são mais do que aspectos da nova língua a que se devem entregar para passarem a ser integrados e, logo, felizes.
É um livro, no cômputo geral – daí que eu repita o facto de ser um livro “claro”, “óbvio”, “convencional” em vários passos –, que mergulha na função máxima da ilustração, que é a de “iluminar” um qualquer canto recôndito da experiência humana. O amor que nutrimos pelos nossos países ou pais é um amor que nasce de uma circunstância e até de uma obrigação (os romanos davam a este amor o nome de “patriae”); apenas a amizade (“amicitia”) nasce de uma escolha activa, logo tornam-se laços especiais, que prezamos por termos sido nós quem os atámos. E quando ultrapassam as barreiras ilusórias das raças, nacionalidades, idade, estatuto social, ainda se reforçam mais. A experiência da deslocação e do começar de novo não será certamente fácil, mas a possibilidade de fazer criar novos círculos de amizade é aqui explorada do modo mais positivo possível. The Arrival é nesse sentido uma utopia. As críticas às utopias são fáceis e peremptórias, esmagando-se as mesmas pelo facto da sua inexistência e até inviabilidade. Mas por isso mesmo é que são utopias, e por isso mesmo é que falo de ilustração-iluminação. É uma luz, e como tal, serve-nos de guia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá!

Maravilhosa capa!

Aguardo a tua review com expectativa.

Abraço!

D.

Anónimo disse...

Muito bom! Vou ver se encontro este livro.

Thumbs up!

D.