22 de julho de 2007

How to be everywhere. Warren Craghead (ed. autor)


Regularmente, surgem discussões sobre os espaços ocupados pela banda desenhada e pelas artes, enquanto esferas afastadas, sobre os espaços fronteiriços onde ambas são acolhidas num qualquer diálogo, sobre os espaços que as diferenciam e sobre os que as aproximam. As mais das vezes, essas discussões atravessam as naturezas sociológicas, históricas, essencialistas, disciplinares, de cada uma dessas artes. As mais das vezes, atravessam uma cegueira aspectual, que se relacionará sobretudo com uma entrega demasiado desequilibrada, informada ora pelo ressentimento ora pelo preconceito, a uma dessas esferas. As mais das vezes, quando se fala de onde e quando e como se aproximam as “grandes artes visuais” e a “banda desenhada”, olham-se para as instâncias em que a primeira ausculta a seguinte como fonte de matéria plástico-social a explorar para depois a empregar num qualquer exercício de desmantelamento cultural, desconstrução política, crítica estética, ou para os exemplos em que a segunda mima a primeira pelos canais da ironia, da acérrima diatribe, da desinformada gozação, ou do mero aproveitamento de determinados efeitos superficiais.
É raro, portanto, que se olhe e procure e discuta os momentos em que no seio da própria banda desenhada se experimentam valores e tacteares usualmente apenas encontrados nas ditas artes de primeira, tal como raro é procurar exemplos de obras já dos círculos das artes visuais que dialoguem de facto, de igual para igual, com conhecimento, entendimento, respeito e até encantamento, com a banda desenhada enquanto saber e saber-fazer autónomos, enquanto modo de expressão específico. As razões dessas raridades em termos de discussão e alertas são muito simples, e devem-se ao simples facto de que a existência desses diálogos, dessas obras, dessas instâncias ser rara nela mesma.
Mas de quando em vez essa raridade é rasgada e contrariada e surgem pessoas que demonstram que as melhores experiências estéticas, os mais arriscados gestos, não são devidos a iluminados do exterior de outras disciplinas “descendo” à banda desenhada, mas sim irrompem do seu interior, mesmo que sejam fulgurantes apareceres, votados quem sabe a um desaparecimento e a uma falta de herança (o que aconteceu com Vaughn-James, com McGuire, com muitas das experiências de Spiegelman, com Coché, Alagbé, Fortemps...). Uma vez, em discussão, disseram-me que “abrir as portas para um muro não interessa para nada”, acusando-se a inexistência da herança ou a impossibilidade de se ir para além desse ponto de experimentação como se se tratasse de uma inconsequência em si mesma. Mas não partilho essa visão. Parece-me antes que, mesmo sendo esse gesto o que ele é e onde ele leva – uma porta aberta para uma parede de tijolos intransponível (e só nós, aquém dos criadores, é que podemos entendê-la como tal, apenas e ainda) -, deve ele, o gesto, ser gloriosamente feito e preencher essa promessa com a sua própria acção, cumprimento, existência.
Warren Craghead já havia apresentado curtas experiências em torno da banda desenhada em alguns dos volumes editados por ocasião das Small Press Expos (SPX). Também editou um pequeno zine intitulado Speedy. Este livro agora é o seu último grande projecto. Trata-se de uma colecção de desenhos que foi alvo de uma exposição e é agora re-organizada e re-apresentada em forma de livro, e que despontou de um interesse e de um diálogo com a poesia de Guillaume Apollinaire. Se bem que tenha experimentado aproximações diferenciadas nos trabalhos anteriores, o estilo encontrado numa dessas pequenas experiências da SPX repete-se em How to be everywhere, o qual não pode ganhar outro apodo senão “desagregado”. Nenhuma das figuras está “completa”, nem sequer os contornos se fecham, os rostos não possuem informações suficientes de expressão, os textos vogam em formas livres e sem ordem nem peso, as palavras separam-se nas suas letras.
Apollinaire é um dos nomes que mais contribuiu para a abertura do mundo na poesia. Isto é, Apollinaire deu oportunidade a que a poesia se reinventasse não enquanto voz lírica e estruturação verbal que marca distância do mundo mas veículo onde a estranheza verbal mimasse e respondesse à estranheza real que existia já no mundo, tangível. A experiência directa, física, espiritual do poeta da 1ª Grande Guerra foi um dos aspectos que mais contribuiu para um literal “estilhaçamento” da poesia, o qual encontrará ecos quer nos temas que na própria forma (caligráfica, tipográfica) dos poemas. Os primeiros sintetizam-se na guerra, no ser desagregado em variadíssimos elementos para depois se compor com todo o universo, na ausência de uma linha temporal ou espacial, numa predilecção, que estava “na moda” das letras e artes da época, pela vida da metrópole... Outros poetas alcançariam o mesmo, e não é de desacompanhar Apollinaire de nomes portugueses como os de Sá-Carneiro (“Todo me incluo em Mim”, escreve Sá-Carneiro em Manucure) ou Álvaro de Campos ou o interseccionismo de Pessoa.
A segunda encontra-se numa das “linhas de produção” de Apollinaire, que se consubstancia nos caligramas, isto é, poemas nos quais a disposição dos versos, das palavras, das letras – pois as unidades chegam mesmo a ser desagregadas a esse nível – assume uma figuração que se deseja iconicamente significativa para com o próprio sentido textual do poema. Aliás, é o poeta de expressão francesa quem cunha a palavra, no título homónimo do seu livro de 1918, unindo as palavras gregas “beleza” (kalos) e “escrita” (graphein; pois o sufixo –grama é um erro “normalizado” na modernidade). O aspecto importante reside no facto de que o que faz emergir a beleza não é o sentido construído paulatinamente pela escrita, isto é, “o que quer dizer”, mas é o próprio acto da escrita, o gesto de escrever, o “como” que se torna veículo dessa beleza final. Sendo uma característica possível de se encontrar na “Poesia de 26 Séculos” (Jorge de Sena), é Apollinaire que funda a existência desta aproximação à visualidade da poesia na modernidade. Mesmo não tendo tido este nome, os caligramas constituem uma tradição já antiga, e muitas formas e figuras: os carmen figuratem foram, por exemplo, objecto de cultivo erudito nos tempos do barroco ibérico. Essa experiência seria continuada também depois do poeta, na poesia visual, que também teve uma feliz e desenvolta existência em Portugal e onde algumas das experiências havidas chegaram mesmo a ocupar um espaço que quero ver como fronteiriço à banda desenhada. refiro-me, sobretudo, a O Escritor, de Ana Hatherly. É através destas associações, pela força verdadeiramente poética (poiesis, um “fazer”) das escolhas verbais sobre Apollinaire e a sua criação visual, que Craghead atinge um patamar da poesia em banda desenhada assaz significativo e produtor, bem mais além dos Poema a Fumetti de Dino Buzzati, de contornos mais narrativos, e ainda que diferentes, constituindo exercícios próximos dos que Dice Industries e Katharina den Hausladen apresentaram (entre nós, na Mesinha de Cabeceira Popular).
Warren Craghead III aproveita precisamente essa “linha” para fazer construir o seu próprio caminho. Segue a estrutura dos poemas (“imita” as formas) de Apollinaire dedicados à torre Eiffel, dos da chuva, um outro que desenha um rosto, delineando-o ao mesmo tempo que o descreve.... Quer dizer, toda a poesia de Apollinaire é a matéria-prima que Craghead emprega em How to be everywhere, mas não a única. Ou, por outras palavras, não é a matéria primeira, já que se seguem outras, segundas mas não secundárias. E todas elas são relativamente claras de identificar, já que vogam em torno do mesmo intervalo temporal referente aos poemas originais: as colagens cubistas de Braque e Picasso, meia-demoiselle d’Avignon deste último, uma fotografia de Lartigue, a mulher da tina de Degas. Estas dizem respeito à via erudita, mas tal qual as colagens referidas, também penetram nesta obra objectos desconexos – enquanto signos individuais – da cultura quotidiana desses tempos que compõem um todo significativo: peças de maquinaria automobilística ou militar, aeroplanos e bicicletas, meias de renda em pernas viúvas ou roldanas que nada sopesam, candeeiros de rua, flores, capacetes, postais. E soldados, trincheiras, florestas dizimadas. É numa destas florestas que, letra por letra na ponta dos ramos quebrados e dos troncos despojados que se espraiam os versos (na sua tradução inglesa, claro está) do poema “Merveille de la guerre”, e que dá nome a este livro: “Je lègue à l'avenir l'histoire de Guillaume Apollinaire/Qui fut à la guerre et sut être partout”.
Acredito que não existe obra qualquer de qualquer arte que não possua, nos seus aspectos manifestos ou nos interstícios mais subtis, um signo do próprio programa a que se entrega, um emblema mise-en-abîme da própria obra. Há um outro poema/ilustração em How to be everywhere que me parece cumprir esse destino. Sensivelmente a meio (as páginas não estão numeradas, e cada página/prancha pode ser lida como uma unidade poético-icónica singular), surge um desenho de um rosto de um homem(aqui mostrado em imagem). Por cima está escrito “Let Us Rejoice” (“Rejubilemo-nos”). No interior do rosto, contornando-o em cada elemento e até mesmo substituindo o signo icónico (o olho, deixado “em branco”) pelo signo verbal (“mistake” e “our eyes”), espraia-se o poema que Apollinaire escreveu para o casamento de André Salmon (aliás, o rosto poderá ser um retrato dessa outra personagem da época). No entanto, é curioso notar que as diferenças permitidas pela tradução inglesa e a segunda selecção de Craghead levam a que se sublinhe ainda mais o programa da experiência de um desenho em diálogo com as palavras. O trecho do poema original reza (literalmente) assim: “Não porque tenhamos crescido até que possam confundir os nossos olhos e as estrelas/(...)/Nem porque firmados na poesia tenhamos direitos sobre as palavras que formam e desfazem o Universo”. O poema, tal como surge nestas páginas (mais uma vez, literalmente), lê: “Não porque sejamos altos, muitos confundem os nossos olhos com constelações, nem porque firmes na poesia tenhamos o poder das palavras em formar e deformar o universo”.
Craghead “apaga” todo o resto do poema, transformando as razões do rejubilamento inicial nesta dupla negação. É como se fosse está série de aniquilamentos o primeiro ou o gesto fundamental para dar espaço e início a uma novo movimento (desfazer e depois refazer o universo). O olho apaga-se mas é redesenhado noutra forma. As palavras que compõem a parte que promete o poder das palavras desagregam-se em letras, mas é como se quisesse somente demonstrar a possibilidade de recombinar-se. Tal como nas regras gramaticais do inglês, as duplas negações anulam-se, não existem. Menos por menos dá mais, Não por não dá Sim (o “sim” de Molly Bloom, outra personagem sensivelmente do mesmo período: mergulhar no negativo para descobrir as potencialidades das artes).
O uso da palavra constelação desperta de imediato uma associação às noções de Walter Benjamin, impedindo-se pensar em qualquer ideia como uma mónada, um átomo indivisível, singular e separado de tudo o resto, mas antes entender tudo como estabelecendo pontos de relação entre si. Cabe-nos a nós, interpretantes, leitores, experienciadores, apercebermo-nos de quais as linhas que unem uma “estrela” à outra “estrela”; desenharemos, seguramente, constelações diferentes, mas podem existir muitos pontos em comum. A meu ver, How to be everywhere tem todo o lugar na (minha) constelação da “banda desenhada”. Espero que partilhem ou encontrem pontos em comum com esse entendimento.

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