16 de outubro de 2008

L’un pour l’autre. Les écrivains dessinent. AAVV (Buchet-Chastel/IMEC)

Desenho, escrita, urdidura, pensar. Parte 1.
Em muitas ocasiões me pergunto se haverá algum limite para o tipo de “textos” a chamar à atenção, no seio deste espaço de discussão. Isto é, desde o início até ao momento presente, é possível encontrar algum tipo de expansão no que diz respeito ao tipo de livros ou publicações incluídas, a natureza das obras, o alcance da arte. Ainda que o título do espaço seja “lerbd”, rapidamente se negou a redução a “bd” para encontrar um amplo território da banda desenhada e, a partir dela, encontrar outros territórios contíguos, cujas fronteiras podem ser mais ou menos claras ou sombrias. De certa forma, é como se se entendesse a banda desenhada como uma forma particular, se não mesmo privilegiada, de pensar o mundo através do desenho, o que pode levar a uma construção narrativa, mas nem sempre o sendo necessariamente.
Os três próximos momentos de apresentação, em torno do desenho enquanto escrita ou dos espaços existentes ao desenho no mundo dos escritores, ou a expansão, através da redução, da estruturação do desenho enquanto escrita, serão contributos a essa questão sem fim.
Por ocasião da exposição Desenhos de Escritores, segunda apresentação (de três) de uma exposição preparada pelo Institut Mémoires de l’édition contemporaine (IMEC), apresentada em Lisboa no espaço da Colecção Berardo/CCB, chega-nos às mãos este L’un pour l’autre. Les écrivains dessinent, que pode ser visto a um só tempo como catálogo da exposição e como publicação independente, no seguimento do excelente (e agora interrompido) Le Cahier Dessinée, dirigido por Frédérik Pajak. Quer a exposição quer este livro reúnem, muito simplesmente, desenhos que foram criados por pessoas cujas carreiras são mais marcadas no mundo enquanto escritores. Encontrar-se-ão aqui congregados romancistas como Proust, René Daumal, Alfred Jarry, Robbe-Grillet, Jean Genet, Günter Grass, poetas como Baudelaire, Rimbaud, Paul Valéry, Allen Ginsberg, polimatas como Cocteau, Kurt Schwitters, Artaud, Bréton, Tzara, Kantor, e outros mais conhecidos pelas suas dimensões visuais que escritas, como Hans Arp (excelente poeta, por sinal), Copi, Topor. O acto forte é o desenho, mas também são incluídos trabalhos mais próximos da disciplina da “pintura” ou da “fotografia”, e até mesmo da “instalação” (os “paus” de Serge Pey, a descrição do Gigantexte de Michèle Métail). A prestação portuguesa foi ainda beneficiada pela presença de trabalhos de Almada Negreiros e Ana Hatherly. Estas inclusões parecem ter sido pensadas “à última hora”, uma vez que nenhum destes trabalhos revela desse trabalho subterrâneo que está previsto na frase “desenho de escritor”. O trabalho de Almada Negreiros porque fica aquém dessa promessa, o de Hatherly porque o ultrapassa: falamos, obviamente, de O Escritor (publicado em 1975) [a propósito, convidava-vos a, sobre esse livro, lerem o texto de Domingos Isabelinho, que finalmente se rendeu aos blogs como modo de presença activa].
Devo precisar que o discurso que opera sobre esta exposição, e a sua selecção e a articulação das “peças”, feita por Jean-Jacques Lebel, seu comissário, oscila entre duas perspectivas. Por um lado, o modo como a fronteira entre desenho e escrita parecem se diluir nestas obras (se não directamente, pelo menos enquanto promessa); por outro, enquanto entrosamento de uma disciplina na outra, forma de bastardia, de contaminação, infecção, de mutação quando possível. A pergunta é mesmo directa, no texto: “E se a dualidade entre escrita e pintura não fosse mais que um fantasma, uma astúcia de classificação, uma esperteza de arquivista, e não uma realidade existencial?” É sobre essa hipotética sombra de resposta – já que séculos de educação nos impedem de conseguirmos uma genuína ingenuidade perante ambos os campos – que Lebel faz surgir um espaço, intervalar, “mal cartografado”, ao qual dá o nome de “um pelo outro”, em que o que parece ser substituído e o que substitui jamais é totalmente claro, “abolindo a questão do valor e da historicidade do juízo do qual aquele decorre” (E. Lambert). São várias as disciplinas das humanidades e das ciências que concorrem a uma explicação, nunca cabal, desses fenómenos intervalares, nas linhas da frente respectivas a filosofia e neurobiologia, mas pretender-se-á, com esta exposição – perdoe-se o pleonasmo – uma exposição poética, isto é, através do contacto directo com vários exemplos desse fazer. Num texto que encerra a publicação (Un entre-deux avec des trous, sendo esses “buracos” aquilo que melhor ilumina a questão, naturalmente: mais, a autora explica como o que se tece não é um texto, ou um tecido, ininterrupto, mas antes uma malha, mais maleável, livre, mas também robusta), Emmanuelle Lambert aclara a leitura ou atitude de Lebel: “Quando olhamos uma peça, consideramo-la sempre em relação com qualquer outra coisa”, por procurarmos um valor documental, histórico, genético. Para mais, num “desenho” que pertença a um “escritor” (as aspas servem para reduzir quer um quer o outro às suas definições de dicionário). Mas Lebel “procura perceber, em cada obra, o traço da pulsão criativa, a única que pode abolir a divisão, artificial por derivar de uma aproximação demasiado genérica, entre escrita e pintura”. Lambert revela mesmo o choque entre a atitude de Lebel e a sua e dos seus colegas, os arquivistas de serviço.
Não há quaisquer promessas (impossíveis de satisfazer) de se ser exaustivo nesta catalogação, trabalhando-se sobretudo com os fundos do IMEC, mas deles emerge de facto uma possível imagem pertinente desse espaço multiforme e proteico.
Há toda uma tipologia de desenhos aqui encontrados, se é que é possível sequer falarmos de tipologia: desenhos feitos sobre um bocado de papel, talvez ao acaso e distraidamente, mas também desenhos feitos com um intuito de completude, e alguns até mesmo com a ideia de virem a ser publicados. Alguns quiçá feitos em tom jocoso, de passatempo, outros com contornos de uma vontade artística. Uns deixados em sobrescritos ou nas margens de cartas para serem ofertados a amigos, outros feitos com a intenção de se relacionarem directamente com um texto (ocupando o lugar central de “ilustração”). Alguns salvos pelo próprio autor e explicados (Althusser), outros resgatados por amigos. Uns salpicados de tinta, como se ao acaso, ou que emergem do centro de colagens de imagens e de textos, ou esmagados pelos textos, ou como se fossem estudos de uma sinalização a aprender e apreender (o caso de Barthes, óbvio). Uns são colectivos, frutos de colaboração artística ou até de jogos (os surrealistas, sobretudo). E alguns fazem mesmo parte da exploração central artística do autor em questão (como nos casos de Christian Dotremont, participante do grupo CoBrA, de Brion Gysin, ou, de novo, de Michaux).
É de Alfred Pacquement que se descobre esta citação, a propósito de Michaux: um “descondicionamento em relação ao verbal”, atingido sobretudo com esse autor na experimentação com a mescalina. Ora, são raros os casos neste grupo de autores onde esse descondicionamento se verifica: a esmagadora maioria dos trabalhos são de desenhos, pura e simplesmente, mas que se cobrem de uma patina de “curiosidade” por serem feitos por autores famosos pela sua escrita. Outros, como vimos, revestem-se desde logo de um interesse plástico uma vez que se prendem com a preocupação central do seu autor, no preciso momento da sua criação, o que os impede de serem vistos como “desenhos de escritores”, mas como “desenhos”.
Os pequenos textos que acompanham os desenhos de cada um dos autores, no livro, não são mais que meras súmulas biográficas, alertando para os principais títulos que compõem a sua obra e herança. Poucos são os vestígios de comentário sobre o modo particular como esses desenhos se articulam com essa obra escrita, ou que traços nele surgem que possam irromper ou se encaixarem na escrita, ou sequer se se tratam de achados raros - como no caso de Rimbaud – ou se, bem pelo contrário, se fazem parte de um espólio considerável e reconhecido – como nos de Hugo ou Michaux. Era preciso contextualizar e identificar, caso a caso, qual a matriz criativa para, de seguida, perceber qual o grau de relação entre o gesto do desenho e o gesto da escrita. Se bem que o texto final de Lambert leve a pensar que não existem discursos e estudos nesse sentido (aquilo que “seria por definição excluído da historiografia”), isso é relativamente falso. De acordo com os estudos de Jacqueline Sudaka-Bénazéraf (autora de Le regard de Franz Kafka. Les dessins d’un écrivain e editora da colecção “Un double regard” da Maisonneuve & Larose) e de Konstantin Barsht (autor de Dostoïevski. Du dessin à l’écriture romanesque), os desenhos criados por estes autores – ainda que de modos e implicações muito diversos – concorre para a escrita, isto é, desenhavam para escrever ou desenhavam como continuidade (especificação, peso, dinamização) da escrita. Mas essa dimensão não está aqui prevista, ou pelo menos de uma maneira mais nítida. Talvez dois casos de charneira sejam os de Pierre Klossowski (o seu particular erotismo [aqui mostrado numa das suas mulheres desocultadoras]) e Dino Buzzati (cujo encontro último entre a escrita e o desenho se dariam com Poema a Fumetti).
São, portanto, raras as passagens nestes trabalhos que façam vislumbrar esse tal espaço de intervalo. Uma citação de Robbe-Grillet mostra que esse autor entendia a escrita, como outros saberes, parte dos “trabalhos manuais”: as suas composições, de impressões da mão com tintas, lacas e colagens de resquícios de papel de jornal, demonstram parte dessa “manualidade”, e as tentativas de organização multi-legível eventualmente recordarão o programa da compossibilidade previsto em L’Anné Dernière àMarienbad. Sempre, porém, inconclusivamente. A ausência dos Lettristes e dos Hypergraphistes, por exemplo, agrava ainda mais o não cumprimento dessa promessa primeira.
A aposta desequilibra-se, a meu ver, por incluir muitos exemplos de obras que, sendo em rigor desenhos feitos por pessoas conhecidas como escritores, têm uma autonomia total entre cada território. Victor Hugo, por exemplo, apesar de ser mais conhecido enquanto romancista e poeta, tinha uma actividade paralela, perfeitamente acabada e de sucesso, de desenho, que teve uma relativa, se não total, autonomia em relação à escrita[e que assume uma importância extrema no que diz respeito à História da Abstracção na pintura, e no experimentalismo, avant la lettre: este desenho é uma impressão de uma renda, com carvão, e laivos de tinta castanha, azul e verde, e cera vermelha sobre papel avergoado]. O mesmo se poderá dizer de Topor, arriscando dizer que este, entre nós, é mais conhecido enquanto desenhista (mas lembremos o excelente A Cozinha Canibal, na Fenda, ou uma referência mais obscura, a antologia Humor Negro editada e publicada por José Vilhena, de 1969). Henri Michaux, criando séries de desenhos, instaura como que dois ramos que despontam de um mesmo tronco, mas são dois troncos identificáveis e separáveis, não obstante as lianas com que se cobrem os estreitem em vários dos seus nós. Bruno Schulz, o grande ausente desta antologia (notada pelos próprios editores), é ainda um outro caso, apetece dizer raro, quer no sentido quantitativo quer no sentido de “excepcional”: é, a um só tempo, um desenhador que escrevia e um escritor que desenhava (e o filme Street of Crocodiles, a adaptação do conto do autor polaco pelos irmãos Quay ao filme de animação, parece unir numa terceira disciplina artística ambas as dimensões em diálogo).
“A relação entre ‘imagem’ e texto permite a troca entre o olhar e o pensamento, os quais, como a metáfora, abrem um espaço ilimitado ao imaginário” (J. Sudaka-Bénazéraf). Ora esse imaginário forma-se com este grupo de trabalhos, mas como se de uma neblina se tratasse, e não uma mais penetrante marca sob os auspícios da qual pensar.
O olhar moderno – previsto ou vislumbrado por Baudelaire [curioso que de um desenho aqui incluido, este que aqui mostro, o comissário diga ser um auto-retrato "muito American Comics avant la lettre": serão os raios que lhe saem dos olhos também análogos a super-poderes de visão, já agora? Como sempre, o espectro da "bêdê" surgirá sempre como forma simplificadora nos lábios dos intelectuais defensores das últimas fronteiras?], teorizado redondamente por Benjamin – em que a presença das imagens nas cidades, sob a forma de posters publicitários, as divisões breves e comerciais nas páginas dos jornais, o papel que têm na ilustração de uma notícia (primeiro a gravura, depois a fotografia, depois novamente a ilustração de um novo modo), leva à assunção de uma natureza narrativa sobre todas e quaisquer imagens. Mesmo aquelas que surgem enquanto “imagens puras”, desconectadas da representação ou de contextualizações estreitas, são susceptíveis de virem a ser remodeladas e reapresentadas num modo mais controlado e narrativizável – pense-se em Mondrian. Não obstante, sempre existiram imagens que provocaram o aparecimento desse espaço intervalar que provocam um curto-circuito e nos obriga a reponderar o valor da imagem, do desenho, em relação à escrita (texto, história, etc.). Desde as marginalia (tenho em mente sobretudo o excelente estudo de Michael Camille) aos trabalhos de ilustradores contemporâneos (e usemos o caso de Jorge Nesbitt, como exemplo), voltam a surgir dúvidas no mundo ocidental (já que no espaço asiático, sobretudo China-Coreia-Japão, mas também na tradição islâmica, a caligrafia ganhou contornos de fronteira bem diversos do que entre nós) nessa divisão clara entre um gesto e outro. Aqui, no mundo ocidental, é como olhar uma floresta e conseguir ver as árvores, perdendo a floresta, ou recuperando-a e perdendo as árvores. Não se pode ver uma e as outras, mas ou uma ou as outras. Tal qual aquela imagem reversível do coelho-pato de Jastrow que Wittgenstein cita no seu livro. É assim que vemos ora as imagens (as quais mostram, configuram, dão a ver) ora o texto (os quais demonstram, desfiguram, dão a ler), mesmo que estes ocupem espaços bem diversos numa página, e canais de distribuição e apreciação bem diversos. E talvez seja essa razão pela qual a ilustração e mormente a banda desenhada atravessem sempre uma dificuldade em ser apreciada de um modo mais cabal, intelectual, balizado, já que se têm de pensar dois domínios ao mesmo tempo e de modo implicado: isto é, procurar um movimento contínuo de multiplicidades, que jamais se cristalizam numa forma decidida, mas em que cada uma delas desprende novos movimentos adicionais, num turbilhão incessante. A obra apenas dá a ver uma possibilidade de pausa, um vector nas linhas de fuga e de movimento provocadas por esse turbilhão.
Ainda assim, l’un pour l’autre faz-nos aproximar desse abismo.
Nota: agradecimentos a Nuno Carvalho (Museu Berardo), pela disponibilização da publicação.

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá, Pedro Moura. Realmente gosto de suas resenhas. Fiz uma HQ recentemente e gostaria muito de enviar-lhe para saber sua opinião. É possível?
Para qual email? O meu é pedrofranz@hotmail.com

obrigado.

MMMNNNRRRG disse...

bem, esse porfirio é mesmo um sacaninha a fazer PUB nos blogues dos outros... whatever... nunca escreves-te sobre a aquela antologia coreana, Sal?
abraços dos quase antípodas
M