8 de julho de 2009

Bottomless Belly Button. Dash Shaw (Fantagraphics)

De novo, o inescrutável abismo das famílias...
O carácter fragmentário da banda desenhada é explorado por Shaw de um modo que, não sendo propriamente inusitado (lembremo-nos de Richard McGuire, de Warren Craghead III, e de muitos outros “experimentalistas”, ou recuemos até ao caráter dissipado das promessas narrativas de tantos exemplos, de Hokusai a Masereel), torna-se plenamente explorado e integrado na experiência narrativa – quer do ponto de vista da sua construção semiótica quer do da sua percepção, leitura, interpretação. O autor faz-nos perseguir uma linha condutora central, aquilo a que usualmente chamamos de “história”, absolutamente clara: os três filhos adultos da família Loony (já de si, explicativo) reunem-se com os seus velhos pais que, após quarenta anos de casamento, anunciam o seu divórcio. De modos diversos, os filhos tentam entender o impacto dessa notícia, não só em relação às causas e às consequências sobre os próprios pais como também sobre eles mesmos, aproveitando esse retorno às origens para uma exploração das memórias, da expressão das suas personalidades, da perseguição da conquista das suas próprias felicidades. O autor providencia-nos com sucessivas e diversas camadas de informação não-narrativa: desde as plantas das casas às cartas dos pais quando jovens, passando por “retratos” do passado de todas as personagens a várias classes de tipologias, diagramas, esquemas e códigos.
Trata-se, portanto, de uma espécie de desdobramento, em que cada um dos novos elementos, por mais incorpóreos e inócuos que pareçam ser (que importa ao drama familiar os tipos de areia que existem? Ou as formas que a água assume?), contribuem para o significado total e profundo da obra (as relações familiares assumem também elas muitas formas, apesar do elemento material primário ser o mesmo). O livro tem mais de 700 páginas, e a “fábula” ou “história” pode parecer muito simples (e, no fundo, é-o), o que nos obriga a considerar todos os factores da sua construção como modo de complexificação e adensamento do seu espírito. Nesse sentido, Shaw inscreve a sua obra numa tradição menos melodramática (de que Eisner é um expoente, mas que passa por Spiegelman e Bechdel, Craig Thompson e outros) do que contemporânea (Chris Ware é o primeiro exemplo a vir à mente, mas arrisco-me a apontar a exemplos cinematográficos, mais do que de qualquer outra área da criação, sobretudo uma linha de cinema norte-americano recente que vai desde a Happiness, de Todd Solondz, Donnie Darko, de Richard Kelly, ou Little Miss Sunshine, de Dayton e Faris). Esta é uma aposta da Fantagraphics que a coloca novamente (não esquecendo a antologia Mome) na senda de descoberta de novos autores fortemente individualizados (o que nem sempre acontecia, como se verifica, por exemplo, com o livro de Miss Lasko-Gross, por exemplo).
É verdade que o estilo do desenho parece fraco, mas adequa-se plasticamente ao que é contado e construído. Não há qualquer desejo de imitação aqui de Chris Ware em termos figurativos ou de estrutura, mas é como se fosse “depois de Ware”, isto é, na continuidade das possibilidades estruturais e narrativas que foram estreadas e exploradas por Ware que Shaw desenvolve este seu maior trabalho. Há um balanço resistente entre a esquematização das figuras (sobretudo do filho mais novo Peter, como um sapo, quiçá auto-ficção velada do autor?) e o pormenor dos espaços e objectos, mas a expressividade simples e concisa de tudo torna-se no exacto e preciso veículo do que o autor pretende transmitir.
Muito se escreveu sobre o “código secreto” das cartas dos pais, mas é tão nítido que não merce sequer discorrer sobre ele. Maior “mistério” (género o qual se encontra sublinhado na lombada do livro, como sendo um desejo do autor em que nele seja inscrito BBB) são os secretos corredores e divisões no interior da casa, que parecem esconder porões de tesouros, segredos inomináveis, que mais não são do que todas as memórias impartilháveis de cada um, apesar de pertencermos à mesma família... Que sabemos nós mesmo dos nossos pais? Que sabem verdadeiramente os pais dos filhos? A independência e autonomia individual passa pela ignorância mútua.
Há trabalhos de composição de página simples, mas notáveis pelo seu rigor retórico. Por exemplo, há toda uma série de sequências internas, diálogos, em que a última página (dessa sequência em particular), à direita, apresenta apenas umas quantas vinhetas, deixando o resto em branco. É uma maneira muito curiosa e feliz de dar a entender duas coisas: em primeiro lugar, a impossibilidade de dar a ver tudo o que pode ocorrer num universo ficcional/narrativo, deixando espaço ao leitor quer a uma ideia de continuidade (“preenche tu mesmo”) quer a um apartamento dessa partilha (“nada mais saberás”); em segundo, que mesmo não tendo nós, leitores, filhos, membros de uma família, acesso a tudo o que ocorre na vida das pessoas que nos rodeiam, temos ainda assim o direito, senão mesmo o dever, de lançarmos elos de manutenção da relação por mais desprovido de informação que seja o espaço onde os podemos lançar... o “resto” da página em branco surge assim tanto enquanto território abissal, intransponível, como a própria obrigatoriedade no nosso esforço em preenchê-la.
Shaw sublinha tanto a possibilidade desses elos como a impossibilidade de compreensão. Nesta dupla página que apresentamos, já sabido do afastamento progressivo dos pais, e até mesmo atingido um certo grau de compreensão, a filha Claire chega “tarde demais” à cozinha onde os pais preparam o jantar. Que vê ela? Não os dois momentos na prancha anterior em que os pais se aproximam e colaboram, mas o momento exacto do afastamento. A percepção de Claire da relação dos pais sai assim desiquilibrada. Este tipo de estratégias é contínuo no livro de Shaw. O livro é bem mais complexo do que aparenta ser, sobretudo, e voltando atrás, pelos elementos extra-narrativos e as sub-tramas não resolvidas de toda a novela. Seguramente que se tornará uma daquelas obras cuja fama e crescimento se fará com o tempo, à medida que sucessivas leituras e interpretações forem acumuladas. Não é bem um roman à la clef, se bem que existam pistas para podermos considerar Bottomless Belly Button como auto-ficção, autobiografia disfarçada, ou outro género contíguo. É antes uma novela em banda desenhada que abre sucessivos abismos e apresenta inúmeras chaves, e cujas combinações entre si aparentam algum grau de infinitude. Contudo, só a leitura, isto é, a aproximação desta chave àquele abismo, ou aqueloutra a este, poderá mapear essa ideia.

4 comentários:

akb disse...

já leste "body world", um webcomic do mesmo autor? http://www.dashshaw.com/prelude.html

Pedro Moura disse...

Não completamente ainda, e obrigado por me lembrares que me esqueci de indicar o site do autor como forma de conhecer mais trabalhos dele. Nalgum sentido, faz-me recordar de alguns trabalhos do Porcellino ou do Huizenga, mas com a sua inflexão muito própria. A continuar a ler...
Obrigado,
Pedro

Bruno Martinelli disse...

Discordo nisso de ser autobiográfico: a família de Dash, ao que li, é calma e sem problemas matrimoniais. É fácil de dizer que o primeiro trabalho de um autor é autobiográfico, porém acho que não é esse o caso. De resto, gostei da resenha.

Pedro Moura disse...

Caro Bruno,
Terá reparado que eu disse que existem pistas para podermos desconfiar dessa inscrição no género, não é uma afirmação categórica; em nenhum lugar digo que os primeiros livros de um autor são autobiográficos ou algo assim.
Se "sem problemas matrimoniais" significa, para si, estar à beira do divórcio, não se dormir junto, provocar uma crise de nervos ao filho mais velho, procurarem pequenos pontos de conflito entre todos, então, sim, não há qualquer crise neste livro... Não é um livro histérico, isso sim, é "calmo" mesmo; mas é precisamente para sublinhar a tensão que o percorre todo. ISto nada tem a ver com concordar ou não, é objectivo, está no livro.
Obrigado,
Pedro