26 de abril de 2013

Nappun Shinggu. Ancco (Changbi)

Tendo já falado desta autora numa ocasião anterior, e considerando que este livro foi alvo de uma escolha para estar presente na exposição sobre autobiografia no FIBDA 2012, importará, antes de mais – visto que o acesso generalizado a este livro é e será muito reduzido -, tentar compreender como é que ele responde à continuidade da obra desta autora sul-coreana, que pertence a uma nova geração interessante de autores no seu país, e a uma banda desenhada madura, integrante de tendências internacionais, e se associa a esse mesmo género, ou como dissemos nos textos da exposição, supra-género.
Apesar dos últimos dez anos terem testemunhado um crescimento exponencial da banda desenhada na Coreia do Sul, quer em termos de tradução (bebendo de fontes japonesas, norte-americanas e europeias, atravessando todos os géneros e graus de sofisticação, numa abertura invejável entre o circuito português, que como sempre prefere a timidez do escopo e embate no desinteresse de um público variado) quer de produção local, ela é ainda um instrumento relativamente novo para abordar questões mais prementes do tecido social do país, questões de identidade, seja individual ou colectiva, questões das fracturas que colocam em causa as narrativas unitárias que costumam ser moldadas, questões que tornem a banda desenhada numa plataforma tão acesa quanto o cinema ou a literatura. Por outras palavras, modos de criar no seio da banda desenhada que a tornem mais do que mero entretenimento, como ainda muitos a desejam tratar (muitas vezes, não apenas os leitoras ocasionais, mas aqueles mais rábidos fãs dela). A banda desenhada é entretenimento também, mas não em exclusivo.
É portanto num panorama material e comercialmente rico e crescente que vozes dissonantes vão surgindo (e que, necessariamente, ficam à margem desse mesmo sucesso comercial ou recepção alargada). Ancco, apesar de ter criado igualmente trabalhos mais comerciais ou convencionais, “nasceu” no interior de uma das plataformas mais independentes da banda desenhada sul-coreana, a saber a revista Sai Manhwa (leia-se “Sé Manuá”, que significa literalmente “nova banda desenhada” [falámos desta antologia muito brevemente aqui]), mas este último livro conquista um espaço ainda mais independente, em termos pessoais, tendo sido levado avante numa outra editora, não especializada, de títulos de literatura. Ou seja, em termos contextuais e paratextuais, este livro circulará num circuito que se pretende desligar do “universo dos quadradinhos”, para ombrear - mergulhando naquelas questões citadas - outros meios, outras artes. 
Tal como no caso de Dezanove, estamos aqui num território ambíguo, que tanto poderá constituir uma autobiografia pouco velada como um exercício forte de auto-ficção. Não existe nenhuma coincidência de nome, por exemplo, entre a personagem principal e a autora (mesmo tendo em conta o seu nome verdadeiro, Choi Kyung-Jin, e não o nom de plume); não existe nenhuma camada textual ou elementos paratextuais que indiquem existir essa prova de realidade; não se procuram estratégias claras dessa mesma inscrição. Todavia, existem elementos gerais que parecem permitir essa leitura. A narrativa parte de um presente que enquadra as reminiscências da protagonista, sobre a sua turbulenta e violenta adolescência, e o que espoleta esse movimento retrospectivo é o seu trabalho, no interior da narrativa, de autora de banda desenhada. Ora, esta descrição será suficiente para todos os leitores de autobiografias em banda desenhada ou bandas desenhadas autobiográficas (serão a mesma coisa?) encontrarem aí um desses gestos quase obrigatórios que é incluir a feitura do texto que lemos no próprio texto. Não obstante, a leitura da matéria verbal parece querer criar a ilusão de uma linha ficcional que não podemos transpor. Se toda a autobiografia nunca permite que ultrapassemos uma linha, proibida, a de pensarmos que somos íntimos do(s) autor(es) porque lemos as suas confissões, há aqui a instituição de uma outra salvaguarda ainda mais forte.
No entanto, este livro é uma obra diferente da anterior, uma vez que se trata de um projecto único, coeso, sendo esta a obra de maior fôlego e foco da artista. Em termos estilístico e visuais, como é natural, há uma maior estabilidade. O livro é composto por vários episódios, sem títulos, e a composição prefere um número comedido de vinhetas, por vezes apenas uma ou duas por página, com diálogos naturais, apenas algumas intervenções da parte da narradora “presente” para introduzir os novos ciclos ou alguns pensamentos. Tudo isso leva a uma fluidez sem grandes comoções, concentrando-se portanto a força emocional nos acontecimentos representados.
O seu título significa “Má amiga” e reza precisamente em torno da relação da protagonista com a sua amiga mais próxima na adolescência, com a qual experimenta toda uma série de comportamentos desviantes d
a norma societal: baldam-se às aulas, fumam e bebem (comportamento menos “expectável” e generalizado do que entre nós, ou mais “secreto” pelo menos), enfrentam os pais, que as castigam com extrema violência, e decidem sair de casa e aventurar-se por si mesmas. Como noutros casos, acabam por cair numa espiral que as leva inclusivamente à prostituição, com toda a violência, não apenas sexual, que isso implica. Não é que a abordagem destas questões seja original na Coreia do Sul, esta franqueza em demonstrar como nem todas as vidas são fáceis nesta sociedade de sucesso capitalista e de desenvolvimento material, e até mesmo focando em camadas mais frágeis desse mesmo avanço - camadas sociais, como os pobres, camadas de género, as mulheres, camadas etárias, os jovens, tudo isto numa sociedade extremamente hierarquizada -, mas as mais das vezes isso é tratado pela literatura “séria” ou pelo cinema mais adverso ao comercialismo. É nesse sentido que o gesto de Ancco é ainda marcante no seu país (e noutros contextos também), mesmo na recente economia de banda desenhada autobiográfica, ou de tratamento de temas fracturantes.
Não deixa de haver aqui um daqueles movimentos moralizantes, no sentido em que a narradora do presente se encontra numa situação “melhor”, e olha com um olhar crítico para os acontecimentos do passado, não apenas julgando a sua eu mais jovem, como as outras personagens que a rodeavam - algumas das quais com quem se cruza na idade adulta. Aliás, é o seu encontro com uma outra companheira da escola secundária enquanto adultas, em que essa amiga trabalha num banco, vai desencadear o processo de reminiscência. Essa moral não é verbalizada, mas é o seu novo olhar, mais matizado, que lança uma patina sobre todo o passado que o transforma num “pesadelo”, mesmo que ultrapassado (ou porque ultrapassado).
De certo modo, este pequeno conto de adolescência suburbana não é muito distante das nossas experiências pessoais, habitadas por uma miríade de personagens que eram caracterizadas por um qualquer comportamento conhecido, “desviante”, “marginal”, e que depois, em adultos, ou confirmam essa inscrição (terminando em tragédias) ou a corrigem (surpreendendo, ou não, que os gandulos se tornem polícias, as valdevinas senhoras respeitáveis, os esgrouviados em cidadãos exemplares e correctos). Ainda que devamos, sempre, sempre, ser atenciosos e conscienciosos para com as diferenças culturais, contextualizá-as para não reificarmos “essências” ou crermos em familiaridades abusivas, a verdade é que uma tradução deste título para português - que não deixa de ser fantasiosa por razões comerciais - revelaria as maiores afinidades que existem entre a experiência humana.
Nota: agradecimentos à autora, pela oferta do livro.

17 comentários:

Ana Luisa disse...

Agora fiquei com vontade de descobrir esta autora mas infelizmente ainda não tive a oportunidade de ler manhwa e parece-me que será bastante difícil encontrar aqui em Portugal e mesmo online.
Se não fôr indiscrição, onde é que consegue arranjar tantas bandas-desenhadas, relativamente desconhecidas, e tantas já tão difíceis de encontrar?

Pedro Moura disse...

Cara Ana Luísa,
Aconselho vivamente a encontrar o livro publicado em francês desta autora: "Aujourd'hui n'existe pas" (pela Córnelius). Depois apenas existem curtas nas revistas alemã "Orang" e, se não estou em erro, na edição para Angoulême da "Sai Comics" (presumo que extremamente difícil de obter).
No entanto, de banda desenhada coreana já existem algumas boas opções, na minha opinião, em inglês e francês, mas depende do que se procura, claro. Em Portugal, é possível que as livrarias Mundo Fantasma e a Dr. Kartoon possam ter algum livro, sem desprimor para as outras livrarias. Tem também as opções das livrarias online ou encomendas pessoalizadas em determinadas livrarias.
Quanto à minha obtenção de títulos, não penso ser assim tão difícil de encontrar, e acredite que há muito, muito mais para descobrir. No entanto, conto sempre com uma boa rede de amigos, contactos, etc. A minha atenção particular para com a Coreia do Sul tem a ver com razões mais pessoais (e, dessa forma, tenho acesso fácil à sua "leitura" através de interpretação simultânea).
Devolvo a indiscrição, perguntando se o interesse vivo da Ana Luísa é de leitura somente, e o prazer inerente a ela (excelente ponto de partida e de chegada), ou se o interesse se reveste de uma dimensão profissional, ou académica, etc.?
Obrigado,
Pedro Moura

Ana Luisa disse...

Na verdade, chego realmente a encontrar online muitos dos livros que tão bem apresenta no seu blog mas na maioria das vezes a preços exorbitantes. Resta-me procurar nas livrarias.

Para responder à sua questão, leio banda desenhada por ambos os motivos que apresenta. Em relação ao primeiro, só há bem pouco tempo é que comecei efectivamente a ler livros (de qualquer género). E porquê? Bem, parecia que tinha uma aversão ridícula e inexplicável mas hoje já quase não consigo viver sem eles. Quando comecei a ler banda desenhada, há muito poucos anos, comecei pela manga (por influências de amigos) e só agora é que começo a descobrir a maravilhosa banda desenhada que se faz na Europa (também por influências de amigos). Quanto ao segundo motivo, também leio banda desenhada para descobrir e conhecer autores de diversos géneros e estilos a fim também de reflectir e melhorar o meu próprio trabalho, trabalho esse que está mais ligado à ilustração e não tanto à banda-desenhada.

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Bem, provavelmente já conhecerá, mas falaram-me deste livro que acabei por achar bastante cativante (pessoalmente mais pelo próprio mar onde a acção se desenrola). Encontrei-o há pouco tempo na Bertrand; chama-se "De Profundis" e é de Miguelanxo Prado. Penso que ele também acabou por realizar um filme com os próprios desenhos do livro.

Pedro Moura disse...

Se há de facto uma dimensão académica, alerto-a para as CBDPT, cuja 3ª edição terá lugar este ano (tem um blog próprio, e remeto-a a ele). Quem sabe, poderia participar.
Conheço o trabalho do Prado, sim, inclusive o filme. Não serei o maior defensor da sua obra, mas aconselho a ler e ver tudo, seja de quem for. Não acredito na frase "não li e não gostei" (bom... às vezes).
Pedro

Marco Mendes disse...

Que pena não poder ler este livro. Bom texto, como sempre. Abraço

Ana Luisa disse...

Prado não é dos meus preferidos mas esse livro em particular é que me chamou a atenção. Não conhecia as CBDPT - tenho de ver isso melhor.
Obrigada.


Marco Mendes, já que "passou por aqui" gostaria de lhe dizer que gostei muito do seu "Diário Rasgado" principalmente por ter aplicado tantas técnicas diferentes. Só por curiosidade, que técnica é usou no "PROGRAMA" do seu livro?
Continue o bom trabalho.

topedro disse...

"numa abertura invejável entre o circuito português", percebe-se o que quer dizer, mas não é um pouco confuso? "entre" seguido de um único singular...
também fiquei muito curioso em relação à BD Sul Coreana, sobretudo estes registos autobiográficos "que colocam em causa as narrativas unitárias que costumam ser moldadas" para mais tendo ficado a conhecer algo da história (de "sucesso")recente do país através do economista Ha-Joon Chang...

um abraço,
topedro

Marco Mendes disse...

Cara Ana,

As técnicas utizadas nesse original, se bem me recordo, são marcadores (sakura, ponta de pincel) e bastante corrector, como sempre. Escureço para depois clarear. Abraço e muito obrigado

Ana Luisa disse...

Na verdade, estive algum tempo para descobrir como é que fazia aquelas linhas e manchas brancas - nunca imaginei que seria corrector.

Pensei que tivesse usado umas Faber Castell ou Letraset.
Pessoalmente, nunca usei marcadores Sakura, uso os Tombow. Faz o degradê passando várias vezes no mesmo sítio com o mesmo marcador, aplica diversos tons da mesma cor ou utiliza uma "blender pen"? Ainda não consegui perceber.


Marco Mendes disse...

Cara Ana, eu até cerveja misturo nos desenhos. É como calha. Mas sim, também uso canetas brancas, aguarelas, ecolines, etc. Abraço

Pedro Moura disse...

Caro topedro,
A frase está de facto confusa. Deveria ser "em relação ao", por exemplo. É o que dá reescrever, cortar e colar, mover parágrafos, e não fazer uma revisão cuidada. Deixo-o assim, como prova da abertura à correcção. Quanto às generalizações sobre uma nação, elas não são mais do que isso, generalizações, mas em termos gerais digamos que as "narrativas oficiais" na Coreia são mais continuadas do que em Portugal (se bem que tenhamos também os nossos mitos, não é, do Rei Afonso aos Descobrimentos passando pelos brandos costumes, o país de poetas e as tradições...).
Cara Ana Luísa,
Não desejo de maneira nenhuma a que levem esta conversa para outro lado, mas espero que saiba que o Marco Mendes tem o seu próprio blog, onde pode seguir o trabalho "de mais perto".
Caro Marco,
Conheço uma famosa ilustradora (e infantil!), que deixa mesmo resquícios de substâncias menos legais no seu trabalho... Estamos sempre a aprender...
Obrigado a todos,
Pedro

Ana Luisa disse...

Sim, também já vi e consultei o blog de Marco Mendes. Peço desculpa então por ter desviado o assunto.

Pedro Moura disse...

Cara Ana Luísa,
De todo! Simplesmente pensava que, por alguma razão, poderia não ter dado com o blog dele. Mas estão mais do que à vontade de manterem o vosso diálogo aqui. Sentem-se, bebam um copo, sem problema.
Pedro

Ana Luisa disse...

Convite aceite :)

Só por curiosidade, o senhor Pedro Moura também faz banda desenhada?

Pedro Moura disse...

Não desenho. No que diz respeito à banda desenhada, tenho uma meia-dúzia de histórias escritas, coisa pouca, desenhadas por outras pessoas (Pedro Nora, Marcos Farrajota), publicadas por aí. Tenho também o livro anunciado na coluna do blog, com o Ilan Manouach, mas não é banda desenhada.
Obrigado,
Pedro M

Paulo Fernando Designer disse...

Pedro Moura como faço para ter acesso ao seu material (BD) publicado?

Pedro Moura disse...

Caro Paulo,
Não entendo o que quer dizer por "meu" material? Tenho umas modestas curtas separadas por algumas publicações mas estara a referir-se às bds presenets no blog, de outros autores?
Obrigado,
Pedro Moura