24 de março de 2014

Hawk. André Oliveira e Osvaldo Medina (Kingpin Books).


Hawk é claramente um ponto de encontro entre a vontade dos seus autores e do editor. Quer dizer, não se trata somente de uma obra existente em si mesma que tem a felicidade de encontrar o seu veículo editorial, nem tampouco um projecto de publicações que arranja espaço para um novo título, mas antes a convergência das vontades em explorar as mais diversas frentes possíveis da banda desenhada, da parte de André Oliveira, sobretudo, e a de consituir um católogo particularmente moldado para uma reformulação de géneros contemporâneos através da máxima legibilidade, coordenação de estratégias de comunicação e garantia de uma transparência em todos os passos dos processos colaborativos na criação de um livro, da parte de Mário Freitas. Quer dizer, não estaremos à espera de encontrar nesta família de livros exercícios radicais de experimentalismo e de expansão formal da própria banda desenhada, mas antes uma busca equilibrada entre os seus instrumentos mais claros e sustentáveis. (Mais)

A leitura de Hawk leva-nos a colocar questões que nascem num género totalmente distinto daquele em que se inscreve. 

Parte das críticas mais mordazes de Fabrice Neaud e Jean-Christophe Menu sobre um certo advento e transformação comercial da autobiografia, a sua co-optação, por assim dizer, em mero género (recorde-se o debate em torno do livro de Delporte), tinha a ver com a assunção de toda uma série de "acontecimentos", visto como "-chaves" para a constituição de uma narrativa forte. Por exemplo, a exploração de um segredo que constituiria o coração do sofrimento da personage, central, a negociação emotiva entre a sua vida interior e singular e aquelas partes que têm a ver com a co-criação no seio da família, do círculo de amigos, na sociedade, etc. Ora verificar-se-á, pelo menos parcialmente, em Hawk, um aproveitamento de certos elementos que garantiriam essa força. Mas Hawk não é autobiográfico, estando ausentes todos os elementos que nos permitiram essa inscrição, a um só tempo literária e ética, e não entraremos nem em abusos psicanalíticos (buscando informações íntimas e externas para prover ligações nesse sentido) nem em frases feitas (“toda a obra de arte é autobiográfica”, etc.).

A história de Vicente, porém, segue alguns princípios narrativos que a aproximam desse outro género, bastando ver aquelas palavras que tecem o início da narrativa... Além disso, vive ou quer viver num estranho equilíbrio entre obras movidas por uma intensidade total de emoções e uma construção cognitiva do seu mundo fictício a partir de uma perspectiva singular (no caso, a de Vicente), e aquelas associadas a uma certa contemporaneidade e círculos alternativos que exploram sobremaneira o vulgar, monótono, a  rotina de um quotidiano inflexível.

Os instrumentos de caracterização movidos por André Oliveira mostram o seu ensejo em criar um retrato de algum Portugal contemporâneo e urbano, utilizando variadíssimas referências que, menos do que "banais", constituem um "fundo comum" imediato entre uma potencial comunidade de leitores a quem o livro se dirige (havendo sempre, naturalmente, a possibilidade da obra chegar a públicos mais alargados que esses "imediatos"). Desde a referência aos desenhos animados do Dartacão às discussões em torno da actual política económica do governo, essas linhas servem para criar uma sensação de hic et nunc que tornam Hawk num texto possível de ser lido para além de uma mera ideia de entretenimento (ainda uma imagem generalizada da banda desenhada junto a pessoas fora dos seus circuitos mais habituais, quando estes também cultivam, as mais das vezes, esse mesmo desejo).
Todavia, por um lado, as pequenas acções não são suficientemente pequenas e banais para nos fazer focar na possível maravilha que pode emergir da observação da vida de todos os dias, e por outro não são avassaladores de maneira a tornar Hawk num drama "de trauma". Apesar de estar no meio, será suficiente para cumprir uma virtude? 

É que os momentos tónicos e átonos, ou tempos fortes e fracos, encontram-se esbatidos, sobretudo devido aos intrumentos gráficos, a que regressaremos adiante. Por ora, ficaremos ainda presos a este nível narrativo – abstracto – da “história” ou mesmo “fábula”. A narrativa ainda assim constrói um espaço imaginário, um trânsito, entre as expectativas e as projecções de Vicente que vão alimentando e moldando a narrativa, a um ponto ligeiro de elisão das fronteiras entre os níveis de experiência da personagem ( e que podem tomar o nome de “realidade”, “memória”, “sonho”, “fantasia”). O que está ausente, porém, é precisamente um grau de ambivalência, parece-nos.

Apesar dos abusos perpretados a partir de uma leitura errónea, lacunar ou incompleta das suas lições, foram Wolfgang Iser (The Act of Reading) e Umberto Eco quem mais fomentaram a ideia de que um texto (literário ou de outra espécie) seria completado e co-construído na sua interacção com o leitor (Eco, em Os limites da interpretação, será muito explícito sobre como não levar demasiado longe a sua noção de “obra aberta”). O que ocorre nesse sentido é que o leitor ou leitora estão sistematicamente a construir nas suas mentes mais pormenores ou ancoramentos para a leitura do que aqueles disponibilizados no momento: por isso temos “uma imagem” da personagem, ou dos espaços em que ocorrem as acções, ou os gestos das pessoas, as suas expressões e tons, etc. Além disso, há uma permanente actualização da diegese, das vontades das personagens, juízos éticos da nossa parte, e por aí fora. A banda desenhada, dada a sua dimensão visual, dá obviamente a ver permanentemente muitas dessas informações, mas também ela pode conter alguma ambivalência a esse nível, e não somente no aspecto mais óbvio, mais visível – ou será “invisível”? -: os intervalos entre vinhetas.

Ora, um dos problemas de Hawk é que não deixa espaço ao leitor co-construir parte dos juízos de valor que nasceriam em relação a Vicente, à sua família (disfuncional, como todas), aos seus amigos - que têm algo de "typecast" -, a espécie de namorada, etc. Eles são mostrados na sua completude. Por exemplo, o breve episódio da psicanalista poderia criar algum intervalo entre a atitude de Vicente e o papel da terapeuta, mas infelizmente parece-nos cair de imediato nul rol de ideias feitas. O problema não está no convite feito à psicanalista por Vicente, nem na recusa desta, uma vez que se encaixa perfeitamente no processo conhecido por contra-transferência, em que o analisando projecta um certo desejo no analista, confundindo emoções, treslendo reacções e atitudes. Está no facto de se admitir a imagem feita na ignorância desse processo pelo amigo, que constrói uma imagem algo previsível de um ódio (por ignorância pura, não uma crítica informada, e perfeitamente sustentável!) à psicanálise... Claro, poder-se-á dizer que essa é apenas a atitude de Mike, "analisado" logo de seguida pela retrospectiva de Vicente, mas a verdade é que poderia ser a obra em si, em silêncios, por exemplo, que abririam esse espaço de dúvida. O mesmo ocorre com as discussões em torno da actual crise político-financeira.

Há claramente um desejo em criar uma história coesa. Temos uma situação clara na qual são colocadas as personagens, e há suficientes informações sobre elas (de acordo com os princípios de atribuição de importâncias distintas) para compreender como é que os eventos as poderão afectar, uma rede de relações que entra em tensão precisamente por esse evento implicar alterações na vida de Vicente, seguimos um trajecto episódico mas também íntimo e finalmente atingimos um desenlace, que procura sublinhar o impacto emotivo possível mas também a possibilidade – apenas adivinhada, não oferecida – de um “final feliz”. O falcão, enquanto projecção nostálgica de uma certa ideia (ilusão) de protecção na infância e solução, sempre externa, dos "problemas" identificados por Vicente, é um excelente mecanismo de acção, de criação textual e até psicológico (poder-se-ia falar de uma espécie de objecto transaccional?), mas há um certo grau de excesso de exposição desses mesmos mecanismos.

Além disso, em termos visuais a obra não é particularmente feliz. A simplicidade de grafismo não significa necessariamente uma ausência de sofisticação. Pense-se em Töpffer, Steinberg ou Porcellino. Chega-se mesmo a compreender, nestes casos citados, e outros, que essa simplicidade aparente é produto mesmo da sofisticação subjacente. Infelizmente, não é o caso presente. Há uma confinada natureza no tipo de expressividade que delimita por demais essa mesma potencialidade nas personagens, sobretudo nos seus rostos. Ou então o recurso ao outro extremo, que é um abandono em exposições melodramáticas desses mesmos rostos, corroborados por gestos exagerados, linhas cinéticas desnecessárias, escorços ou plongées que sublinham em demasia a "carga grave e dramática" do acontecimento e/ou reacção, etc. 

O problema reside no facto de que aquela simplicidade a que nos referimos acima é nutrida, conscientemente lavrada, cuidadosamente moldada, pelas mãos dos artistas citados. Osvaldo Medina é detentor de uma grande e invejável plasticidade, poder de adaptação e transformação – dado o seu trabalho, incansável, no cinema de animação. Mas na banda desenhada, onde o seu traço se encontra na sua própria via solitária, o que se torna aparente é a limitação do seu desenho, sobretudo na expressividade dos rostos humanos. Se em A fórmula da felicidade ou em Roleta nipónica o desenhador encontra maior felicidade, isso dever-se-á ao maior grau de estilização e ao recurso a personagens humanas teromórficas. Aí, Medina compreende bem os mecanismos expressivos, necessários, à construção das experiências das personagens (na esteira de um Calvo, algum Crumb, e aquele desvio “literário” que Harry Morgan identifica como “pogoismo”, a partir da influente obra de Walt Kelly), não só os rostos, mas todos os outros elementos, das orelhas aos rictos, posições dos corpos, etc. Já em Mucha, e agora em Hawk, há francas limitações. A falta de coerência entre os rostos e outros pormenores fracos (a página que repete o carro de Sérgio na marginal é muito problemática, e parece implicar alguma pressa) acaba por não sustentar a narrativa. As cores, algo constringidas a uma paleta reduzida - também ela apelando de uma forma demasiado óbvia ao desejo de querer ser "significativa" -, acaba por não garantir uma outra dimensão ou peso às imagens, e nalguns casos, com meia-dúzia de pinceladas para dar a ideia de volume e/ou distância, torna mesmo mais esboroada a tentativa de ancorar as acções num suposto mundo ficcional. Estes problemas, contudo, podem dizer-se estar na mesma ordem do que ao nível da narrativa, como vimos. Há pouco espaço dado às falhas de representação, tudo é claro. 

Não podemos simplesmente caracterizar a abordagem de Hawk como “pouco expressiva”. Os ingredientes estão todos identificados e empregues. Nem tampouco tem a ver com pertinência, pois este é um livro que estaria numa mesma linha de alguns títulos de Rui Brito e João Fazenda, Marcos Farrajota e Marte, Rui Lacas e Miguel Rocha, livros que lidam directamente e sem preconceitos com a realidade quotidiana do nosso entorno social, abdicando de instrumentos fantasiosos ou de derisão total. Trata-se antes de um desencontro, a nosso ver, de um desequilíbrio interno entre a vontade narrrativa, a construção emotiva das personagens enquanto agentes diegéticos e os instrumentos visuais empregues.

Estamos em crer, porém, que este era um livro necessário, sobretudo aos seus autores. Talvez como ao valor terapêutico e redentor do voo final do falcão em relação a Vicente, que não lhe resolve nada mas o coloca na senda do seu próprio caminho autónomo, a libertação deste livro no espaço público também signifique um hausto novo aos seus criadores.
Nota final: agradecimentos aos autores e editores, pelo envio da publicação, e imagens.

4 comentários:

Mário Miguel de Freitas disse...

Viva, Pedro

Lá caindo eu na tentação, ou no risco, de vir defender as minhas damas, quero ser sucinto e defender, neste caso, um cavalheiro.

Acho a tua análise artística sobre a obra profundamente injusta para o Osvaldo, nomeadamente no que toca à falta de expressividade, o que, confesso, me deixou preplexo.

Pode acusar-se o Osvaldo, aqui e ali, de alguma incoerência nos rostos dos personagens, e ele bem sabe que é uma tecla em que lhe tenho batido algumas vezes. De resto, os rostos são de uma enorme expressividade emocional, os corpos movem-se como corpos, estejam parados ou em plena acção e não conheço, de todo, outro artista em Portugal com tamanha desenvoltura comparável, nem entre aqueles que citaste, por mais estilizados, no bom sentido, que possam ser.

São gostos, dirás, e com razão. Cumpriu-me aqui deixar algumas pistas quanto aos meus. De resto, gostaria que tivesses creditado a Inês no título da crítica, pela importância do trabalho dela no livro. E gostaria, já que abordas tantos assuntos interessantes mas acessórias às próprias BD criticada, que te centrasses noutros planos esquecidos dessas própria BDs, como a legendagem, que, certamente, alguém com a tua bagagem teórica e cultural, compreenderá que não é algo desfasado do contexto da obra ou desprovida de importância crítica.

Obrigado e um abraço.

Anónimo disse...

realmente os desenhos são horrorosos...

Pedro Moura disse...

Caro Anónimo (estou sem alguns acentos, perdão),
Não diria que os desenhos são "horrorosos". Não serão "belos" decerto, sendo esse ul adjectivo usado muitas vezes de forma superficial, as mais das vezes para dar conta de uma cultura delicodoce em relação ao visual. Ha autores que prezo muito apesar de desenharem "feio", uma vez que dominam muitos dos outros instrumentos próprios da banda desenhada, e os torna autores felizes.
Mário, olá. Fazes muito bem em defender a dama, só te fica bem!
Mas atenção, em não disse que o Osvaldo não era expressivo tout court. Falo até mesmo dos momentos em que se verifica o outro extremo, um excesso que traz um melodramatismo excessivo em relação ao tom "slacker" ou quase indiferente do Vicente enquanto personagem. Também não me interessa fazer hierarquias directas, do tipo "A que melhor que B", uma vez que cada autor tera os seus caminhos (sou fã do Bryan Hitch e do Ed,ond Baudoin, e não ha hipótese de os comparar!), e acho que temos muitas pessoas a trabalhar regular ou irregularmente com belíssimos resultados, incomparáveis para fazer pódios entr eles. O Osvaldo é uma força da natureza, basta seguir o trabalho de animação, mas sinto que em "Hawk" ha uma desfasagem entre a visualidade e a narrativa (que, ela mesma, apresenta elementos demasiado "visíveis", como digo).
Quanto àas outras dimensões, também tens razão, mas infelizmente nem posso falar de tudo nem sei tudo. Sobre a cor, deixei uma nota, mas não disse o nome da Inês, e até acho muito bom da tua parte atribuíres o seu nome na capa, partilhando a autoria, como ja havia dito a propósito do "Impaciente". Quanto à legendagem... quando ela é "invisível" e totalmente legível, não é isso sinal de um trabalho perfeito?
:)
Abraços,
Pedro

Mário Miguel de Freitas disse...

Anónimo,

V.Exa. é um imbecil, e a sua imbecilidade só é superada pela sua cobardia.

De resto, obrigado pela resposta, Pedro. Para a posteridade, fica mais uma troca civilizada de opiniões, para as quais os anónimos frustrados nunca contribuirão.

De resto, o Hitch morreu há uns 13, 14 anos, mas nunca ninguém lhe disse ;)

Abraço.