1 de maio de 2005

300. Frank Miller; com Lynn Varley (Dark Horse/Norma)


Retratar o Outro é sempre difícil, pois não somos o Outro. Retratar o Outro sendo esse Inimigo será ainda mais difícil, pois temos de atravessar outros ecrãs (o ódio ou o desprezo, ou ambos).
Já disse isto e repito-o: as generalizações são perigosas, porque obrigam-nos a contornar a diversidade e a desenhar uma linha que, na verdade, não desenha nada. Mas aqui vai: é raro conseguir ver os Norte-Americanos a retratar o Outro enquanto um ser humano completo. Sobretudo nas chamadas “indústrias do entretenimento”, as mais das vezes propensas à redução desse Outro a uma ou duas linhas de conduta, normalmente uma moral muito simples, e que é fácil – impossível doutro modo! – odiar, desprezar, desejar vencer. Esse outro já foi o Índio Selvagem, o Negro Incivilizado, o Negro sem educação, o Comunista odioso, o Japonês desonrado, o Alemão acrítico e cruel, e mais recentemente é ou o Árabe Passional e Fundamentalista, ou o Britânico Blasé, ou o ex-Soviético Corrupto, entre outros etcs.
Quando se dedicam ao retrato de outras civilizações e outras Histórias, não é de menor importância as selecções que fazem das memórias alheias a recontar nem do programa político a que reduzem essa mesma narrativa – vejam-se os inúmeros filmes contando a “vitória” dos americanos sobre o destruidor nazi, ou a vingança necessária em relação ao Vietname, ou como perderam a inocência (perdão?) com Pearl Harbour... Éloge de L’amour, de Godard, apresenta uma cabal crítica dessa mentalidade.
Frank Miller sabia que se ia meter num cabo dos trabalhos quando se apresentou frente às pranchas a desenhar 300, o recontar de um dos mais marcantes episódios da história militar e estratega dos anais da civilização europeia, senão mundial. Algumas das peripécias e “hate mail” foram sobejamente discutidas em fóruns, no The Comics Journal, e outros locais. A eles remeto. A breve leitura que aqui quero fazer escapa ao terreno imediato da banda desenhada, pois é uma leitura que quero fazer ao longo de outros textos.
O problema remete-se precisamente ao mesmo que Heródoto levanta, com as suas Histórias. Apesar desta obra ser considerada como a primeira História, ela levanta no entanto grandes diferenças do trabalho contemporâneo do historiador enquanto distanciação (que nunca o foi e cada vez menos o será). Resumindo na fórmula mais repetida nas introduções ao autor, trata-se menos de uma descrição desapaixonada dos eventos que fizeram embater as forças helénicas às persas do que uma espécie de discussão geral – passando pela antropologia, a moral, os costumes, etc., o tal “retrato” do outro – de dois sistemas ideológico-políticos que resolveram medir forças no campo de batalha: por um lado, a democracia grega, por outro, a monarquia absolutista oriental dos Persas de Xerxes, seu rei. O mesmo tom, ainda que com objectivos diferentes, é o que perpassa Os Persas, tragédia de Ésquilo apresentada anos antes, em 472 AEC. “Não são escravos nem súbditos de homem algum”, diz o mensageiro persa à rainha dos Persas, Atossa.
Hérodoto, enquanto “historiador” e “grego”, fala de Xerxes de forma menos simpática, mas é isso relacionado com a crítica geral à sua proverbial crueldade e falta de humanismo, contrastando abertamente com o respeito que o mesmo autor devota a Dário, pai desse rei (v. Histórias, Livro I, §183; é a partir do Livro VII que se conta a guerra, e a partir do §204 que se centra nas Termópilas). Xerxes, acrescenta Heródoto, é um nome que significa “Homem de Guerra” (Hist., Lv. 6, §98)
Miller parece ter-se atido apenas a uma posição extrema e externa. Xerxes nunca é retratado de perto, apenas como o distante, cruel e corruptor inimigo dos machos puros que são os Espartanos. Volta não volta, Miller mostra o seu chauvinismo moral nestes elogios a um certo militarismo serôdio, homofóbico (encerrando em si mesmo uma homossexualidade latente, discutido pelos especialistas na vida espartana), etc. O mesmo sucede com as aparentemente inócuas fantasias que nos enchem os dias, das versões fílmicas dos livros de Tolkien ou alguns filmes de Mel Gibson à Tróia com Brad Pitt, que, apresentando-se como distracção, entretenimento, encerram em si a mais odiosa das apologias da violência – que comemos alegremente, porque é “fixe”, “para passar o tempo”.
Os Persas de Ésquilo é a única tragédia que se baseia em eventos relativamente contemporâneos e encerra em si vários aspectos dignos de nota (uns técnicos, outros diegéticos, como o recurso a um fantasma). O tema dessa peça é sobretudo o pecado da hubrys de um só homem, Xerxes. A sua própria mãe, Atossa, mãe de Xerxes, pressentindo o problema, perguntará ao mensageiro das más-novas: “Diz-me quem deu início à luta, os Gregos ou o meu filho, certamente orgulhoso do número das suas naves?”. O pendor é, portanto, sempre o de um povo livre versus um único soberano que, imitando os deuses, de alto se arrisca a despenhar.
300 de Miller foca sobretudo o papel suicida das tropas lideradas por Leónidas, e sublinha-se até à exaustão o facto de quem, apesar de saberem qual o desfecho, o papel de um soldado é o de morrer honrado (já em Martha Washington e o Batman de 50 anos se repetiam essas fórmulas...): Honra, Dever, Glória, Combate e Vitória são os títulos dos capítulos. Se calhar, se eu disser “objector de consciência” ainda levo um murro... É capaz de facto de montar um belo espectáculo ver homens a matar e a morrer com honra, mas não deixa de ser uma apologia pouco humana a um certo tipo de violência. Não vivi em guerra, nem a idolatro.
Voltemos a Ésquilo, que se aprende muito com estes “boy-lovers” (como o Leónidas de Miller se refere aos atenienses, mais uma acha para a fogueira da discussão em torno de 300): é uma advertência do fantasma de Xerxes – ainda em Os Persas - quem afirma a mais poderosa arma contra qualquer empunhar de armas, e que se repercute nestas últimas levas de produções fictícias dos nossos tempos, cujo sentido político e ético, por mais velado que seja, por mais distante que nos pareça graças à sua ilusão de entretenimento, não deixam de estar presentes: “a violência, desenvolvendo-se, produz uma espiga de desgraça que só fornece uma colheita de lágrimas”.
Artisticamente, o livro ganha sobretudo com as cores de Lynn Varley, cujo nome surge na capa, já que os desenhos de Miller parecem cada vez escapar mais para uma hipérbole física que respeitará as pulsões de um adolescente, mas de certa forma apaga os valores que o seu primeiro realismo e o subsequente desapertar da linha tinham instituído.
Nota final: esta é uma das poucas vezes em que falo de uma edição portuguesa de uma obra estrangeira. Tal facto prende-se ao facto de que pretendo dar conta dos trabalhos mais recentes a que tenho acesso, estando as edições portuguesas algo “atrasadas” em relação a essa pertinência do olhar que pretendo construir. Esta excepção prende-se com vários factores, nada importantes para os partilhar. Não é, porém, qualquer tipo de atitude negativa à partida perante o mundo editorial português de banda desenhada, cuja discussão seria pertinente, mas não aqui. Mais uma nota à tradução: sendo eu tradutor também, ou aspirante a, sei que nos deparamos sempre com desafios fáceis de serem criticados por quem normalmente nem sequer dedica um grama de mente a pensar sobre eles. Fica aqui uma palavra de amizade ao Vasco, que restitui os maneirismos de Miller ao português.
A versão citada de Os Persas é a de Urbano Tavares Rodrigues, disponível na Editorial Inquérito.
Posted by Hello

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