1 de setembro de 2005
Outlaws, Rebels, Freethinkers & Pirates. Bob Levin (Fantagraphics)
Este livro colige textos que, de uma forma ou outra, Bob Levin criara para The Comics Journal ou que foi escrevendo enquanto preparava artigos. Podem ser vistos, julgo, como ensaios, no verdadeiro sentido da palavra. Isto é, o autor não parte de nenhum pressuposto em particular teórico, académico ou outro, para escrever antes com alguma liberdade sobre alguns dos autores de que mais gosta, encontrando neles porém alguns aspectos comuns; mais, o livro não segue nenhuma organização crono-lógica mas obtém uma coesão final. Os aspectos comuns dos autores e obras focadas - muito díspares entre si, algumas mais antigas como o Barnaby de Crockett Johnson, outras bem mais recentes, como o trabalho de Harvey Pekar, Ben Katchor ou Chester Brown - e essa coesão estão visivelmente resumidos e apresentados no próprio título (e a epígrafe escolhida): uma mão-cheia de libertários que permitem e instituem cada vez mais amplas liberdades na criação (e consequente publicação) da banda desenhada. Mas há algo que ocorre de uma grande importância, e que me permito a comparar. Ao passo que David Carrier, no seu livro The Aesthetics of Comics (Penn State UP), partia de uma série de ideias preconcebidas e uma grande capacidade para name-dropping e cruzamento de referências para acabar por não conseguir levar avante o que prometera, isto é, um tratamento mais sério da banda desenhada, Levin fá-lo com uma subtileza e uma agradável e pessoalíssima linguagem. O primeiro capítulo marca o tom do que se segue, um tom de intimidade com o material estudado, uma intimidade emocional, profunda e, sobretudo, livre. Levin não se apresenta como historiador nem como crítico, mas simplesmente como “um escritor cujos temas mais recorrentes ultimamente têm sido a banda desenhada e os seus autores”. Seja. Isso não significa que seja menos iluminador por isso, e até o consegue ser de uma forma crítica.
O livro tem um tom muito, muito pessoal, misturando histórias passadas pelo próprio, com os seus, ou os encontros (e desencontros) que teve com os artistas. Várias personagens aparecem recorrentemente como pequenos deus ex machina para aconselhar o autor, personagens tão estranhos que só podem ser reais (Dr. Filth, Dr. Ruth Delhi). Passa por descrições dos ambientes circundantes dos intervenientes, dos espaços de trabalho ou lazer dos artistas entrevistados, da sua descrição física, de atitude, revelando facetas importantes talvez para o desvelar de um entendimento mais cabal da cultura em que se pode inserir a obra. Como sabem, faço uma distinção entre factos biográficos e a obra do artista, não obstante as passagens directas que possam existir, sobretudo no que diz respeito a trabalhos ditos “de autor”, mais pessoais, até mesmo biográficos. Essa distinção é necessária, a meu ver, para uma completude possível e um equilíbrio salutar da crítica. Mas se o objectivo for mais amplo, se pretender abarcar aspectos históricos, sociológicos, ambientais, então este tipo de curiosidades torna-se operativo de facto.
A linguagem é descomplexada, hedónica ao se entregar a metáforas e aproximações inesperadas (um concerto dos The Rolling Stones e Our Cancer Year de Pekar, Brabner e Stack), e muitas vezes directamente descritiva do trabalho dos artistas, mas para rapidamente fazer um breve, quase invisível comentário sobre as consequências que esse trabalho exerce sobre o leitor (em primeiro lugar, o próprio Levin), que ilumina o porquê dessa escolha. Aliás, falando em escolhas, um outro termo de comparação é eventualmente a série de entrevistas que se encontram em Dangerous Drawings (editado por Andrea Juno, da famosa ReSearch: Juno Books 1997), totalmente dedicada às artes do desenho (com grande peso para a banda desenhada, apesar de ter com este livro apenas um autor comum, Chester Brown). Há uma mesma busca por artistas que, neste meio, procuram através de um fazer político empurrar os limites (push the envelope) desse mesmo meio.
No entanto, há alguns outros problemas que preferiríamos abordar. Para podermos ser o mais concreto possíveis, concentremo-nos em dois ou três capítulos, os quais versam os artistas com cuja obra estou mais familiarizado: Chester Brown, Harvey Pekar e Ben Katchor.
Cada texto tem as suas próprias valências como não poderia deixar de ser. Uma vez que o todo não é controlado por um qualquer programa ou lista de princípios de análise, um dos ensaios poderá discutir a arte do autor em questão detalhadamente (Ben Katchor) ou apenas se centrar nas estratégias da narrativa ou da escrita, secundarizando o trabalho gráfico (Pekar et al.). Este não é um aspecto censurável, uma vez que Levin procura satisfazer diferentes tipos de leitura com cada um dos autores visados, e não, como disse, respeitar uma programatização qualquer com todos eles.
Mas muitas das considerações são bem mais abrangentes e podem fazer desvios pelo cinema e pela literatura – uma breve comparação entre a estratégia de um Chester Brown com um Philip Roth estabelece de imediato o frutífero que pode ser o balanço informado de dois modos distintos de criar uma narrativa e, em última instância, de fazer arte. E não se diga que essas comparações não são possíveis, pois se por um lado qualquer comparação é, por estrutura, falhada, por outro só depois de conhecer os dois termos de comparação é que se entenderá como e até onde ela é exequível.
Há alguns outros aspectos que mereceriam uma discussão mais continuada e explorada. Mantenhamo-nos no capítulo dedicado a Chester Brown. Será que de facto a autobiografia não pode ser senão uma primeira plataforma para outros voos autorais? Desconhecimento de “a minutes’ thought”? Bom, Fabrice Neaud e o seu Journal seria de imediato um exemplo que destruiria essa limitação. Mais, se bem que as comparações entre modos de expressão diferentes possam revelar linhas de força significativas, outras provam precisamente o contrário e levam antes a dificuldades do pensamento. E, a meu ver, e passados alguns anos, ainda vejo I Never Liked You e The Playboy como as obras mais acabadas de Brown, ao passo que Ed The Happy Clown, por mais divertidos que tenham sido na sua primeira leitura, não ressurgem com a mesma força agora, e o tempo que separa essa leitura não me faz ver coesão num todo, mas antes as suturas desse patchwork de géneros. Divertido, sim, mas também modal; ou seja, que apenas funcionam numa determinada circunstância e não noutra.
Outro capítulo que mereceria uma discussão mais alargada é o que, partindo de Lichtenstein, recai nas perguntas de sempre: o que é Arte? Qual o valor da Arte? Que comparações são possíveis entre modos diferentes? Bom, o autor faz uma breve e abreviada história que culmina no acto de Duchamp, cuja redução serve o propósito de entrar de imediato no assunto principal: porque é que um quadro de Lichtenstein pode valer tanto dinheiro ao passo que os comic books donde os painéis foram “copiados” nada valem? O problema é que não existe uma resposta fácil, passível de resposta num texto curto. É antes uma construção social complexíssima que atravessa séculos de diferenças – afinal, o próprio conceito de Arte na Grécia Antiga, no Renascimento e na Modernidade NÃO é aproximável, não obstante a disciplina-que-arruma História de Arte, e é algo que oscila entre o que Rainer Rochlitz vê como “subvenção e subversão”, ou outros como “morte da arte” e (nova) “atitude estética”, entre muitos outros pares possíveis. Depois há o problema de comparar NOMES do concreto tomando-os como o TODO do MODO. Afinal, a banda desenhada não é sempre o mesmo: os comic books dos anos 30, 40 e 50 norte-americanos (com os seus géneros mais repetidos da aventura, super-heróis, ficção científica, pulp, policiais, etc.) não é o mesmo que a banda desenhada do fim do século XIX na Europa (em Portugal, a obra de Bordalo Pinheiro era adulta, activamente política), nem o underground norte-americano dos anos 60 (sexo, drogas e blues) pode ser visto como paralelo do crescimento das potencialidades deste modo em França/Europa (desde Masse a Moebius, Crepax a Tardi, exemplos & etc.). A Arte, entendida assim num grande geral, é fruto de todo um jogo de poderes (Bordieu e tantos outros dixit), no qual influi tanto o económico como o cultural, o político como o mais puramente aleatório... E é-me sempre difícil entender onde levará a comparação – nominal, já que raramente é explorada em todas as suas implicações, nichos de problemas e plissagens conceptuais - entre a obra de Barks e a de Proust, a de Moore e a de Welles, a de Sfar com a de Picasso, a de Jack Katz com o seu First Kingdom e Homero!! (e os termos de comparação das ditas “Grandes Artes” rondam sempre uma família recorrente)... Pois jamais surgirá alguém a dizer que “Citizen Kane é a Mona Lisa do cinema” ou que “A La Recherche é a Capela Sistina da literatura”. São modos diferentes de expressão, instrumentos muito díspares de visão/construção do mundo, e apenas linhas de convergência actuais é que se tocam, não o seu todo. Por isso, é tão certo dizer que NÃO EXISTE nenhuma obra de banda desenhada capaz de estar ao mesmo nível que a Gioconda, tal como NÃO EXISTE nenhuma obra das “grandes artes” capaz de se cotejar com o Little Nemo de McKay, o Krazy Kat de Herriman, o Conte Demoniaque de Aristophane, ou The Cage de Vaughn-James. E esses NÃO deve-se ao simples, mas inolvidável facto que estão sobre tabuleiros diferentes. Tabuleiros económico-sociais, dirão uns, tabuleiros político-culturais, dirão outros. Sim. Mas tabuleiros filosóficos e estruturais diferentes também. A felicidade estará em descobrir obras que desafiem esses abismos existentes.
Levin tenta discutir as coisas noutros termos. Descobrindo as linhas de força de cada artista em questão, os termos que cada um deles procura responder com o seu trabalho, as relações específicas e irrepetíveis que determinada obra estabelece com a cultura ou o(s) meio(s) em que se insere. Seja como for, não se entenda que os temas debatidos o são feitos com displicência, negligência, ou sem ponderação. Bem pelo contrário. A linguagem aparentemente casual encerra decisões de pensamento significativas. Simplesmente preferiria, quanto a mim, uma maior exposição dessas mesmas consequências do pensamento. O único senão é o próprio livro enquanto objecto: o design e a paginação não são nada felizes, com notas de rodapé fora das páginas correspondentes, separadores entre capítulos em desnecessários brancos, e ainda, mas esta situação seguramente um imperativo económico (organização? copyright?), a concentração das imagens ao centro do livro, com um máximo de dois exemplos para cada autor/obra, o que impede, para quem desconhece(r) o que se cita – como é o meu caso para dois ou três autores -, um entendimento ou ilustração mais desafogada.
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