22 de fevereiro de 2006

Le Photographe, 3º vol. Guibert, Lefèvre, Lemercier (Dupuis)


Este é o terceiro e derradeiro volume de uma série de banda desenhada que considero uma das mais interessantes das últimas décadas e que, não sendo o seu papel o de “criar escola”, estou em crer ficar como um marco nesta arte.
A reportagem do repórter fotográfico Didier Lefèvre, à missão dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Afeganistão, já terminou, mas não a viagem, ou melhor, a memória dupla – a sua e a que a banda desenhada recria – dela, que é o objecto destes livros (veja-se a página 32).
As considerações metalinguísticas subtis continuam em jogo, tal como o interessantíssimo e criador diálogo entre o desenho e a fotografia. A imediata equação complexa que estes livros trazem à tona é a do tempo (da representação), redes sempre e constantemente relançadas. Se o desenho representa o passado invocado pelas palavras de Didier, a sua criação, a sua instauração, enquanto desenho, leva-nos ao presente da narrativa; e a fotografia, um “click” no presente que Barthes diz ser um “isto foi”, a sua concretização só é possível num futuro (após o trabalho de revelação, e que palavra esta!). O caso da foto tirada por Tchopan é central nesse aspecto (p. 39).
Outra relação é a estabelecida com o texto: guardadas as fotografias para o “silêncio” (textual), não quer dizer que não guardem em si sons, quer o que se acompanha pelas palavras de Guibert-Lefèvre, quer os descritos pelos textos, como a “ambiência sonora” das fotos das páginas 23 a 25, descrita como “particularmente expressiva: os gritos, os relinchos,...”.
Didier Lefèvre viveu os episódios e tirou as fotos. O seu cruzamento e discussões com Guibert – que já trabalhava num outro projecto de banda desenhada onde retrabalha as memórias de um Outro, em La Guerre d’Alan (L’Association) – levou à criação destes três livros, com o apoio da montagem e de “terceira roda” de Lemercier. A escolha das fotos, as sua estruturação (agencement), as reestruturações de “memórias reais” em “memórias narrativas”, tudo isso foi feito em conjunto, mas é mais da responsabilidade do livro do que de uma suposta e impossível recriação do Real. A memória, depois de lido o livro, pertence-nos a nós, leitores, e não mais importa repensar se “corresponde ponto por ponto” à tão ilusória Verdade... Qualquer busca nesse sentido escapa ao livro-em-si, até certos limites, à frente discutidos.
As relações, portanto, que emergem da convivência destas linguagens e destas equações, que tanto nascem de acasos circunstanciais como de uma aturada e pensada intenção cumprida, por exemplo, na pág. 29, nas duas últimas “tiras” (com fotografia e vinheta desenhada, e onde a primeira foto apresenta um pedaço de texto que poderá ser lido ora como “detalhe” ora como “texto”, sim?), que propósito vemos ser estabelecido nesse instante (que não pertence a um “mesmo instante real”)? Complementaridade, contraste, escape, convivência entre dois mundos (e todas as oposições que aqui couberem: Ocidente vs. Oriente, Realidade vs. Sonho, Momento na Vida de um Francês vs. Vida dos Afegãos, etc.).
O álbum termina com a visita de Lefèvre, já em França, à mãe, a quem inicia o recontar da sua “aventura”, e é como se fosse o exacto momento de recomeçá-la, de a recontar, de retornar à primeira página do primeiro tomo... Ou como se todo este rememorar pertencesse na verdade a essa testemunha última do livro, mas primeira no tempo, e nos fosse retirada então a nós a capacidade de testemunhar essas memórias, um fim que se revela retomar o início... Nada disto pode ser inócuo e aleatório, mas antes revelar da destreza desta equipa criativa e do poder de todo Le Photographe.
Duas cenas que me cumpre destacar deste álbum último: Em primeiro lugar, o momento em que Didier tenta selar o cavalo e colocar-lhe em cima a bagagem, falhando. O autor opta não por repetir (por exemplo) a mesma cena visual, repetir os gestos da personagem, mas desviar o “peso” da repetição no texto, com os “je recommence” e os “et encore” martelando cadenciadamente na leitura essa mesma repetição, naquilo que, lido doutro modo, precisa e somente visual, seria uma só acção.
Em segundo lugar, o abandono de Didier na montanha elos seus guias. O que se lhe segue, estilisticamente, é maravilhoso. As sombras em contra-luz, o súbito das quatro fotos testamentárias e que eram “cegas” no momento em que o fotógrafo as viu pelo visor, e o negro que se segue... Atravessa-se uma longa e pesada noite, num alto próximo da morte, ou cujos dentes fatais se ameaçavam tombar sobre o corpo do narrador.
Não nos podemos esquecer, por fim, não obstante a minha leitura quase estritamente estética, que o livro comporta um claro e importante fito, o da divulgação da aventura humana dos MSF e dos problemas vividos, lá está, pela realidade ética da população da altura (e que hoje se mantém, em larga medida). Surge, assim, neste volume final, toda uma série de anexos (que na verdade são antes o “tutano” da matéria, enfim): pequenas “notícias contemporâneas” dos intervenientes da aventura do livro, e um CD com um filme documentário de Juliette Fournot (que surgira nos primeiros volumes, e na capa do segundo), cujas imagens (fortes) coincidem com as que tinham sido retratadas (narrativamente) em Le Photographe, o álbum de banda desenhada/fotografia....Posted by Picasa

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