19 de março de 2006

The Complete Peanuts 1955-58 (Vols. III & IV). Charles Schulz (Fantagraphics)


É algo de deslumbrante a possibilidade de redescobrir algo que pertenceu à infância e descobri-la irremediavelmente perdida, porque somos adultos agora, mas dar-se-nos desse modo um acesso a uma transfiguração tal que é uma felicidade, e não por acaso. Nada disto tem a ver com nostalgia, se a entendermos como o desejo de não perder algo que julgamos “precioso” da infância e que pugnamos por jamais perder, pagando o seu mais alto preço: ficar-se preso numa cegueira aspectual também ela eterna.
Para se ser absolutamente correcto, no caso de Peanuts, ou Carlitos ou Charlie Brown, não se trata propriamente de uma redescoberta, já que nunca antes eu lera as tiras dos primeiros anos, mas apenas o material que foi sendo publicado, tardiamente, em Portugal nos jornais ou nos livros e álbuns a cores. Estou perante a redescoberta de um memorial – um cenotáfio, como veremos – de algo perdido através de uma nova exposição. (Mais) 

Trata-se de um memorial ou um cenotáfio pois esta colecção trata-se de um monumento a algo já morto: não Schulz (um homem), nem a sua obra (sempre legível, viva), mas uma sua “ideia” que em mim havia da sua obra. Leio então, nestes volumes de toda a série (12 anos, 25 volumes) algo que nunca vira.

Se antes dissera que podemos reconstruir as tiras de Peanuts como haikus, passo por uma outra analogia. A de que todos estes volumes funcionam como uma espécie de Bíblia, em que cada tira nos surge como um versículo, ou sutra, ou ayats, uma história numa só linha, jactos de linhas-adágios capazes de servirem de exempla às nossas vidas, como espelho, para já, mas até mesmo como possível guia, tal como se fazia com as sortes virgiliae, em que se abria ao acaso um volume da Eneida, de Virgílio, e onde o olhos pousassem aí estaria o conselho dos deuses. As personagens de Peanuts, com os seus comportamentos ora expectáveis ora surpreendentes, e as suas memoráveis frases ou trambolhos, surgem assim como augúrios de uma nova cultura que se vai formando, e à qual pertencemos.

E a diversidade das estratégias de Shulz levam a encarar estes volumes como uma meritória espécie desses livros auspiciosos de antanho. Parece que Shulz sabia ter todo o tempo do mundo para explorar variadíssimos modos de construir a sua banda desenhada, dentro do espaço das suas regras editoriais, mas com amplos movimentos possíveis. Nem sempre isso acontece, mas repare-se como algumas tiras vivem das especificidades plásticas e visuais do desenho. Esta diversidade de estratégias é também ela incessantemente assombrosa, em termos de exploração de tempos, espaços, soluções narrativas e gráficas, ou de combinações muito próprias, etc. São pequenos detalhes técnicos que poderão ter escapado, talvez, ao “olho infantil” que por aqui havia passado, mas que agora vê mais atentamente, e que fazem de Peanuts um radical exemplo da tira e que prova a sua excelência (de “clássico”, como já aqui debatido) acima de quaisquer outros possíveis exemplos (mesmo Calvin & Hobbes, tão acarinhado pelo público português, não sem razão). Elencar essas estratégias não é tarefa fácil, e talvez essa acção possa vir a ser feita, num cômputo e análise formal após termos todos os volumes na mão (tal como chegar-se a um entendimento cabal da “evolução” que possa ter-se verificado ao longo de 50 anos).

Ainda assim, citemos um exemplo: veja-se a tira de Domingo de 9 de Fevereiro de 1958 (vol. 4º, pg. 174). Linus sobe uma encosta coberta de neve, para depois a descer de trenó, mas acaba por desistir de subir mais, pois encontra uma árvore no meio do caminho. Num espaço tridimensional, real, empírico, esta árvore poderia ser evitada, se um Linus no nosso mundo escolhesse um trajecto a uns meros 2 a 3 metros para a esquerda ou a direita dessa árvore; mas esse “espaço empírico” não tem lugar na banda desenhada. Não há espaço além do visível no desenho: só a rota com a árvore no meio (tal como “no meio do caminho tinha uma pedra”, de Oswaldo de Andrade). Talvez seja essa a função da arte, a de fazer parar uma pessoa no meio do seu caminho (“de nostra vita”, apetece acrescentar), a de “interromper para começar” (M.F. Molder) e fazê-las, nesse súbito e único momento, ver, verdadeiramente visto.

Nessa redescoberta do que jamais se tinha visto, até o Snoopy é-me redimido com esta leitura, sobretudo o aspecto do seu permanente desejo e da sua imaginação em ser algo-outro. Snoopy recusa-se, como personagem, em ser o “beagle” que fizeram dele, mesmo mais tarde, no merchandising. É uma personagem que, como as outras, está permanentemente viva e recomenda-se para além disso, nestas páginas. Posted by Picasa

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