26 de junho de 2006
Le Moral des Troupes. Jimmy Beaulieu (Mécanique générale/les 400 coups)
O catálogo desta editora canadiana é largamente ocupado pelos livros deste seu autor e editor, e poderão ler na sua biografia que Jimmy Beaulieu é “hiperactivo”, preferindo por isso na suas histórias fazer como que um “elogio da lentidão”. Abramos, como ponto de partida, portanto, A Lentidão, de Milan Kundera (Asa): “Há um certo elo entre a lentidão e a memória (...): um homem caminha na rua. De repente, quer lembrar-se de qualquer coisa, mas a lembrança escapa-lhe. Nesse momento, maquinalmente, o homem atrasa o passo.” Este livro não é uma narrativa una e coesa, seguindo a regra das três unidades, ou coisa que o valha. É feito antes de partes (mais que capítulos) que tanto funcionam de modo independente como que integradas num todo, e esse todo são pequenos troços do interior da mente do protagonista.-narrador, sobretudo da memória. O curioso é que, mais uma vez como Proust (será a figura tutelar de facto das letras francófonas nestes territórios...), começa com um capítulo onde a personagem principal, passando uma noite na casa e infância, recua a essa mesma infância, de um modo desagregado e meta-referente ao modo como a memória funciona, vive e sobrevive.
Em termos de acção, testemunhamos toda uma série de acontecimentos, que podem ser vistos como o progresso natural dos dias das personagens: uma viagem até do Québec até Montreal, por causa de um festival de bd, encontros com amigos de longa data, o regresso, a vida e alguns passeios na cidade, umas férias bem merecidas, um epílogo que pondera tudo isso. Mas todos esses acontecimentos servem como ocasião para outro tipo de passeios, como dissemos, no interior da mente da personagem.
E não são apenas memórias. Tudo serve de desculpa para tecer considerações alongadas sobre variadíssimos temas: a música pop, a tensão entre elogiar uma mulher e ser-se machista, o racismo, a cultura do consumo, o urbanismo capitalista de Montreal, a fugacidade do tempo e a imposição da nostalgia e, acima de tudo, a marcha inexorável da idade, e o peso que ele exerce sobre as percepções do mundo. Precisamente como abre o livro, “o efeito da paralaxe”. O curioso, associando-o mais uma vez a Proust e a Kundera, é que todas estas considerações, passeios mentais, invasões da memória no presente, são feitas em momentos em que o protagonista pára: quando está sentado num táxi, quando, apesar de estar num bar, se “afasta” mentalmente, quando está na varanda da sua casa, quando está à espera que a “amoreuse” escolha uma peça de roupa numa loja. Isso leva a que a verborreia dos balões e das caixas de texto, em relação às vinhetas, possam lembrar o exemplo clássico de Jacobs, mas é aqui empregue para uma modelar discrepância entre as considerações que faz, que mencionámos, e a acção presente nas imagens. As suas opiniões são por vezes enfáticas e proclamadas, o que se pode tornar algo desconcertante e anulador da simpatia que se sente usualmente para com o protagonista (o que torna interessante a ascensão da sua personalidade como impenetrável, desarrumando a conhecida teoria da identificação).
Em alguns aspectos, este Le Moral des Troupes faz-me recordar Le Journal d’un Album, de Dupuy e Berbérian (L’Association), na medida em que autores com experiências noutros territórios narrativos se afastam desses mesmos campos para entrar num outro tipo de relação com a banda desenhada, com as suas actividades, tornando estes livros num exercício metareferente sobre tudo. O desenho de Beaulieu parece ser feito de traços de lápis, sem tinta, acreditemos que com correcções, mas seguro, onde tudo é construído pela presença do carvão, das linhas às sombras. Pelo site, e pelo livro, notar-se-á o prazer que sente em desenhar jovens raparigas belas de todos os feitios, recordando essa bela obsessão presente também em Nuno Saraiva, Paulo Patrício, Rui Ricardo, Paul Pope, Adrian Tomine, Jim Mahfood, etc. & tal...
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