4 de novembro de 2006

Merci Patron. Rui Lacas (Paquet)


Este é o primeiro livro de Rui Lacas publicado directamente no mercado francófono. Digo “primeiro” porque avanço assim a esperança de que possa continuar esta experiência. Uma vez que as suas experiências anteriores estiveram sempre associadas a narrativas mais ou menos distintas, e acabadas (para além de várias histórias curtas, os livros A Filha do Caranguejo e Que é Feito do Meu Natal?, e mesmo a sua colaboração em Virgin’s Trip), não será surpreendente que Merci Patron siga a mesma linha. Segundo o autor, porém, não é apenas a estratégia formal mas também a temática - de um imaginário impreciso, vago, inominado, de um “Portugal rural”, permitindo assim uma maior universalidade e a abertura necessária a um conto europeu - que foi pensada de um modo muito atento ao seu intuito imediato: o mercado franco-belga.


Formalmente, de facto, vemos uma aposta sistemática em pensar as pranchas como uma unidade. Começando numa sequência, no presente diegético, do que Groensteen chama de incrustação (vinhetas menores “pairando” no interior de uma maior de fundo), essa recorrência diminui no corpo central da história, que se passa numa analepse (a imagem aqui incluída é precisamente o momento do “salto”). Essa estratégia não é meramente superficial, para “fazer estilo”, obviamente, e plasma-se na perfeição para retratar o estado de espírito da velha mãe, desamparada, perdida nas suas recordações da filha Anita. No entanto, não vemos essa estrutura repetir-se, o que faria sentido em termos circulares e de “fechamento” dos dois tempos retratados (os elementos narrativos, porém, fazem-no, e de maneira surpreendente), e acaba por ser uma estratégia mais de abertura que propriamente estrutural.

Como disse anteriormente, há uma construção de um Portugal rural através de linhas mais diáfanas do que factos exactos: apercebemo-nos de uma paisagem à beira-mar, uma casa alentejana, uma vegetação menos suave. A presença desses elementos heteróclitos serve não para ancorar em absoluto a história de Anita na realidade histórica (independentemente de se citar, “hors-texte”, a Zambujeira do Mar), mas para criar um espaço simbólico em que se desenrola um cruzamento de várias personagens que se pauta pelos eternos conflitos sociais e sexuais que ainda hoje perduram no nosso imaginário e até na realidade. As fontes onde Rui Lacas (ou Vasquito Lourenço) bebe são bem belamente representadas nas nossas Letras.

O domínio de várias personagens que conquistam os seus nichos particulares é uma das forças de Rui Lacas: sem cair em demasia numa caricatura de papelão, as personalidades das personagens são garantidas com meia dúzia de vinhetas, quer pelas suas distintas presenças físicas, quer pelos traços de comportamento e linguagem. 80 e tal pranchas é um trabalho de fôlego, mas penso que dadas as condições Rui Lacas seria capaz de abrir ainda mais a amplitude do estudo das personagens, pois aponta ter material para o fazer. O aspecto mais ou menos geral da representação deste domínio social impede que se respondam a certas questões – porque é que a filha do que parece ser um lavrador de sucesso (pelo retrato) acaba nesta miséria?, será que num meio destes Anita e Eduardo de facto não saberiam o que era trabalhar?, para onde vai Eduardo depois do “passado”? – mas faz com que toda a atenção convirja nos acontecimentos centrais.

Em relação à figuração, parece-me que Lacas optou por uma forma mais descontraída de construir as personagens, se bem que as cores mais ou menos sombrias, mais ou menos lisas contribuam para diluir os fortes e grossos contornos e permitam ainda assim algum grau de profundidade. A liberdade do seu traço leva a que, por exemplo, Anita tenha rasgos de uma beleza profunda e sensual (como na prancha 31) ou uma expressão de estupefacção (prancha 65). Esta flutuação, parece-me, não terá tanto a ver com inconstância de estilos, mas com a entrega a uma maior expressividade da parte das personagens, que se verifica na mangá de forma transversal. Essa “liberdade”, em termos formais, também se verifica na sua inventabilidade em relação às onomatopeias, que além de personalizadas de um modo inaudito, se tornam fonte de um humor descentralizado dos acontecimentos retratados, e isso é algo que merece a nossa atenção. E para mais, Rui Lacas, não obstante do que atingiu com este álbum, não me parece ser um autor obcecado com “franco-belgite”.

No fundo, Lacas é mesmo um “raconteur” que deseja criar pelo campo da banda desenhada e experimentar as várias opções que se lhe abrem pela frente. Esta, Merci Patron, com o seu programa oculto de vingança – a espoletar a mesma “reconstrução da percepção” que ocorre, por exemplo, com o filme Os Suspeitos do Costume, de Bryan Singer – é prova de um bom aproveitamento dos, e adaptação aos, canais com que poderá contar-nos as suas histórias. 

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