5 de novembro de 2006
The Sandman. Neil Gaiman et al. (Devir)
Aviso à navegação: era eu o tradutor desta série editada pela Devir. As considerações que se seguem, mais impressionistas que críticas, seriam as mesmas se não o fosse. A minha pena pela descontinuidade do projecto não se relaciona (somente) com um trabalho terminado, mas sim com todas as suas repercussões.
Sobre a série de The Sandman, de Neil Gaiman, ou há a dizer muito, ou não há nada a dizer. É muito difícil ficarmo-nos por um texto a meio-gás, como este que agora se apresenta. A sua apresentação, espero, dispensa-se. Independentemente dos gostos e das tradições de leitura a que as pessoas se entreguem, na banda desenhada e para além dela, não se pode ter quaisquer dúvidas de que a presença de Gaiman neste território, pelo menos na banda desenhada de expressão inglesa, veio alterar o panorama das expectativas literárias do modo. (Mais)
É verdade que a sua filiação a Moore é histórica, que a sua rápida independência ao mesmo foi quase imediata (sobretudo nos títulos ingleses como Violent Cases, Signal to Noise, Mr. Punch, que será editado em Portugal em breve pela Vitamina Bd, ainda hoje os três livros que considero os mais acabados do escritor e mesmo no seu título mais super-heróico, Black Orchid, agora também em português pela Devir), e que as suas preocupações se alterariam. As comparações entre os dois autores é sobejamente conhecida, e sabemos de algumas possíveis interpretações.
A série em si foi criada dentro de um panorama histórico-social muito específico, o final dos anos 80 nos Estados Unidos, com o selo da Vertigo, que tentava criar títulos virados a um público um pouco mais adulto e mais exigente em termos de complexidade narrativa, experimentação gráfica e temas tratados, em relação à esmagadora dos leitores típicos adolescentes da DC Comics. Todavia, há que dizer que esse rótulo de “adulto” não deixava de estar orientado ainda por uma preocupação de atingir um público vasto, por isso não estamos a falar de revoluções análogas às que tinham sido atingidas pela Raw, ou, na Europa, pela Madriz, as edições Fréon, ou até a nossa Lx Comics. Digamos que era um retorno ao que se havia atingido pela EC Comics nos anos 50, mas num panorama intimamente relacionado com a cultura e os tempos em que se inscrevia. Gaiman foi então convidado a escrever uma série nova, dentro dos moldes das “revisitações e reconfigurações” a que Moore habituara o público norte-americano (e mundial) com Swamp Thing, Miracleman, Watchmen, etc. Em boa hora desistiu dessa ideia, e resolveu dar corpo a uma personagem nova (ainda que com grandes pontos de contacto com outras anteriormente existentes no “Universo DC”). Essa história é sabida e está feita. A sua progressão também, e ao fim dos 10 “arcos narrativos” principais, mais 2 “laterais” (correspondendo a 12 livros, várias reedições, umas de luxo, todos os spin-offs, merchandising, etc., e ainda um projecto de filme), sabemos que o panorama da banda desenhada foi alterado por Sandman. A Devir não dará continuidade ao título em português, devido aos funcionamentos dos mercados internacionais, mas à editora remeto os esclarecimentos desse fim inesperado. Este era um dos seus maiores projectos, dentro da sua inteligente estratégia na criação de um mercado nacional e tendo em conta os vários nichos a que se dirige, mas infelizmente termina ainda numa fase algo incipiente da série.
Os três volumes da Devir correspondem ao primeiro trade paperback, Preludes & Nocturnes, e ao terceiro, Dream Country. A meu ver, no primeiro arco os autores (Gaiman, Sam Kieth e Mike Dringenberg) ainda estavam a “apalpar terreno”, a tentar descolar o projecto – e literalmente, “des-colando-o” do Universo da DC para poder atingir um território que lhe fosse próprio. Isso só aconteceria mais tarde, já na assunção de uma história coesa e independente (com The Doll’s House) e sobretudo quando a saga passou a ter Morfeus como personagem de facto central, terminando na sua anti-épica morte e subsequente substituição por Daniel. Se em termos da sua dimensão narrativa, houve momentos bem altos de coesão e complexidade das personagens (The Doll’s House, Brief Lives, The Kindly Ones), ou pequenos contos magníficos (August e Soft Places do livro de “curtas” Fables & Reflections, Men of Good Fortune, integrado em The Doll’s House e Exiles, no The Wake), a prestação gráfica nem sempre foi a mais feliz. Independentemente de outros trabalhos de maior sucesso de Keith, os primeiros volumes de The Sandman eram francamente desagradáveis, incompletos, falhos. Sendo a banda desenhada um modo visual, mesmo que a visualidade seja agenciada de um modo para além da contemplação, percepção visual, etc., quando essa dimensão falha (não pelo “feio” mas pela “incompletude”) há, passe o pleonasmo, uma falha[imagem 1].
Houve autores que me surpreenderam mais, claro, e não necessariamente aqueles que são reconhecidos de outros títulos (como Charles Vess e Kelley Jones), mas Jill Thompson [imagem 2], Marc Hempel, Teddy Kristiansen, John J. Muth... Diga-se de passagem que Dringenberg e Malcom Jones III conseguiram um conto belíssimo em termos gráficos com Tales in the Sand (The Doll’s House) [imagem 3]. Sei que me estou a deixar por uma espécie de nominalismo, já que haveria que justificar estas opções. Parto de um pressuposto: a sua leitura atenta será esclarecedora o suficiente para sublinhar estas breves linhas de uma apreciação superficial.
No fim, e ainda que este seja já um chavão sobre a série, Gaiman criou, de facto, toda uma mitologia muito própria. Kirby já o havia feito na banda desenhada norte-americana, e muitos autores da Literatura, da Música, das Artes em geral o tinham atingido, e Gaiman é um autor plenamente informado sobre todas essas áreas para poder ter com elas contribuído na sua criação. Muitos dos mecanismos literários e narrativos empregues por ele estão em consonância com algumas das estratégias já empregues por vetustos autores, e dispenso aqui fazer uma qualquer lista possível de referências, multiplicável ad aeternum conforme as nossas próprias referências e sapiências.
No entanto, há algo que pode ainda ser acrescentado e mais uma vez através de uma sua aproximação a Moore: todas as narrativas de Moore disseminam-se numa variedade e diversidade de vozes internas às próprias histórias, seja nos seus trabalhos mais pessoais (The Birth Caul, por exemplo) às suas intervenções em universos mais comerciais (Wild C.A.T.S., Supreme); as de Gaiman, por mais variegado que sejam os quintais de onde colhe referências e por maior que seja o panorama das suas personagens, estão sempre subsumidos num programa unificado de “sentido”, de uma teleologia última do universo. Estarão estas opções relacionadas com uma oposição de fundo religioso-filosófico entre o paganismo mágico de Moore e o judaísmo de Gaiman? Apenas uma investigação aturada das fontes e das criações ajudaria a compreendê-lo, decerto, mas fica a ideia. E investigação em torno destes dois autores é o que não falta, como se depreenderá, por exemplo, com a edição recente de The Sandman Papers (Fantagraphics), uma colecção de ensaios académicos sobre a série em questão. Existem alguns sites dedicados também à série, muito informativos, sendo o de Ralf Hildebrant o paradigma.
Uma breve nota final e pessoal sobre a tradução, cuja responsabilidade foi minha: tentei, na medida do possível, manter um bom nível de transfiguração da linguagem erudita de Gaiman, apesar de tomar em conta os bons conselhos e as opções editoriais de José de Freitas e José Miguel Lameiras para tornar os textos mais acessíveis que procurar ser tal e qual “estranho” como no original. A “estranheza” da linguagem em determinados momentos não pôde ser seguida à risca, mas procurei que esse tom se mantivesse nalguns pontos. Recebi algumas críticas em relação à mesma, algumas delas algo rudes mesmo, e que revelavam um conhecimento muito limitado do que implica a função, a responsabilidade e a liberdade de um tradutor. Não nego que se possam melhorar alguns passos, mas não penso ter incorrido – mesmo nas opções mais estranhas – em “traições” graves em relação ao “espírito da lei”, se bem que tenha que ter procurado uma diferente “letra da lei”.
Finalmente, reitero a minha nota de pesar por a Devir não poder continuar com este projecto, que tentava trazer ao mercado português um título de qualidade, uma das apostas fortes da editora. Ficam porém os votos de sucesso com todos os outros títulos, sobretudo os de maior qualidade e risco, mas que mostram algum grau de desejo em educar o público português.
Agradecimentos à Devir, especialmente ao José de Freitas e ao João Miguel Lameiras, pela confiança e pela aposta. Le jeux est fait et le roi est mort. Vive le roi!
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