30 de dezembro de 2006

Nextwave. Warren Ellis e Stuart Immonen (Marvel)


A especulação sempre existiu na existência humana – a imaginação tem o seu papel, da ciência à religiosidade humanas. Mas a sua aplicação na literatura, limitando a especulação a formas de vida inexistentes ou soluções técnico-tecnológicas, e empregá-las para uma exploração das narrativas, é algo de mais recente na História. Voltaire e Cyrano de Bergerac são dois dos nomes indicados em muitas antologias ou estudos sobre a história da ficção científica, e o seu progresso e evolução arregimenta Mary Shelley, Conan Doyle, Edwin Abbott Abbott, H.G. Wells, Ray Bradbury, Stanislaw Lem, entre muitos, muitos outros... A ficção científica serve, afinal, não só como palco de especulação tecnológica (o laser, Gibson), como também de reflexão da condição humana (Bradbury), dos processos de socialização (Lem), da demanda por Deus (Clarke e Kubrick em 2001), da sexualidade (Rachel Pollack). É escusado falar do seu papel enquanto género narrativo em modos de expressão como o teatro, o cinema, a banda desenhada... Todavia, é também campo infinito de um divertimento sem fim. Warren Ellis é um autor que se apercebe de um modo muito fácil dos sentidos humorísticos que no fundo são possíveis de desenterrar nos universos da ficção científica, depois deste serem construídos, erguidos e com o riso, abalroados. Todos os seus títulos jogam na fímbria do encontro entre a ficção científica e outros géneros “clássicos” arrastados sobretudo pela indústria mainstream norte-americana de comics: desde o thriller de espionagem e policial (Transmetropolitan, Desolation Jones, Jack Cross) aos super-heróis (Authority, The Ultimates), até mesmo passando pela “arqueologia dos comics” (Planetary). E o humor sempre esteve presente...
Mas se ocupava um papel relativamente secundário e corrosivo nessoutros títulos, em Nextwave torna-se o verdadeiro motor da narrativa. Aliás, o enredo é tão básico, simples e tão dirigido “para a frente”, que recorda Little Nemo nesse aspecto: pouco importa a história global e os sentidos últimos de um suposto todo final, o que importa é a aventura a desfrutar nesse preciso momento da leitura. Nextwave é um grupo de superheróis da Liga Sem Honra, e cuja missão é seguir o plano terrorista de um grupo chamado Beyond e fundamentalmente dar cabo dos seus propósitos... Não há nada mais a acrescentar, a não ser uma lista ininterrupta e crescente de todos os clichés, por mais ridículos que eles sejam, do Universo Marvel, de toda a parafernália e chavões das aventuras dos superheróis, simplesmente para atingir a proverbial barrigada de riso.
Não é que deixem de existir percursores a esta estratégia. A própria Marvel sempre viveu a liberdade de fazer pouco de si mesma, sobretudo com títulos como What the...?, Marvel Tails, Crazy Magazine, Damage Control, o No-Prize Book e toda a série [nome do artista] Destroys the Marvel Universe. Mais recentemente, parece ter diminuído essa capacidade, a menos que se entenda a reedição de coisas espatafúrdias como Marvel Monster e uma saga como Marvel Zombies sob essa luz. Foi num desses títulos que surgiu o Forbush Man, por exemplo. Mais recentemente, poder-se-ia falar do título de Dan Brereton, Giantkiller. Neil Gaiman seria um indicador desse caminho, mas falta-lhe o humor; Grant Morrison é outra referência óbvia, mas há sempre um “sentido último” ao absurdo do escritor escocês. A filiação imediata é, mais uma afirmação óbvia, garantida por alguns dos títulos de Alan Moore, sobretudo a série 1963 (com os amigos artistas de Swamp Thing) e Top Ten (no qual Gene Ha enchia os cenários com todas as personagens de que se lembrava...). Tal como esses mesmos títulos, Nextwave é um título que terá um mais forte apelo entre os leitores hoje adultos que leram muitas Superaventuras Marvel e Heróis da TV, do que os leitores mais jovens que desconhecem esse material. O apelo chegará ao zero a quem não lê superheróis. A razão desse apelo é paradoxal: por um lado, fala à displicência com que se olha para trás, aos nos apercebermos do ridículo que eram essas aventuras, cheias de personagens coloridos e nada lógicos (mesmo para um universo onde a “suspensão da incredulidade” é rainha)... Jack of Hearts e Cristal (Dazzler em inglês) eram de facto o fundo dos fundos. Ellis desenterra essas personagens ridículas para as lançar num universo revisionista onde a única coisa que se pode ter por certa é violência gratuita e piadas sexistas ou sem nexo... Fing Fang Foom tem o seu papel, tal como Rorkannu (avatar de Dormammu, e se se lembram disso e dos Defenders, eis um excelente nível de alerta de “cromice aguda”).
Havendo menos espaço para essas explorações descomprometidas inauguradas pela Mad, devido aos novos balanços entre poderes judiciais e limitações da paródia criativa, e estar-se cada vez mais vergado às “necessidades do mercado”, Ellis consegue manter-se à tona da água ao criar mais um título, que seguramente chamará os seus leitores a levantar sobrolhos, mas a entender as razões últimas, de saúde mental e até existencial, que levam um autor deste peso a empregar a especulação em torno dos superheróis para, e não há outro modo de o dizer, “cuspir no prato de onde come”.
Nota: agradecimentos a Gonçalo Freitas, pelo empréstimo; a capa aqui mostrada é de uma edição especial, com informações de backstage sobre a série. Posted by Picasa

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