Marc-Antione Mathieu é (já? desde a passagem pela L’Association, com os minúsculos “passos de mosca” de La Mutation e Le Coeur des ombres?) um autor que, tal como os seus imediatos percursores Schuiten & Peeters, se anichou num estreito território temático e narrativo, servido por uma muito específica e profunda investigação formal que serve esse primeiro propósito. Este processo de circunferência limitada mas profundura contínua é análogo ao primeiro fractal conhecido como “floco de neve de Koch”, cujo perímetro se expande infinitamente mas cuja área permanece delimitada. Se a dupla Schuiten & Peeters explora o mundo da arquitectura tomando esta como uma linguagem exotérica de uma ruína interna inflexível, os temas de Mathieu circundam aquilo que Jurgis Baltrusaitis e outros autores trataram também e que cabe no termo da “anamorfose”.
Não estamos porém perante a exploração das anamorfoses enquanto no seu sentido imediato, restrito e visual, a saber, a distorção da visão natural humana através de processos artificiais. Mas de algo mais profundo, distorções operadas no próprio seio do objecto, na sua mais central e essencial natureza. Uma verdadeira distorção: “torção errada”. É preciso levar esta consideração etimológica seriamente. Torção porque se trata de uma acção feita pelas próprias mãos, é algo feito com vontade, com o nosso corpo, sobre um outro, inerte, do objecto. Errada porque se trata de uma perversão ao fim previsto desse mesmo objecto, um desvio.
O seguinte não é redundante: Mathieu tem sempre como objecto um objecto. Um desenho, um edifício, uma cidade inteira, uma memória, um plano. No interior da narrativa que conta, seja com Acquefacques ou uma outra das suas personagens (guias, psicopompos), vemos esse dado objecto a liquefazer-se sob os nossos olhos e mãos, à medida que viramos as páginas dos seus livros e os perscrutamos com os olhos. Somos na leitura cúmplices dessa dissolução do objecto por todas as distorções possíveis: jogos de espelho, ecos e reflexos, corredores cegos, metamorfoses e quebras nas representações, capicuas, palíndromos, paradoxos, anagramas. Les Sous-Sols du Révolu é uma obra de encomenda do Museu do Louvre, talvez o maior e melhor museu do mundo, sem dúvida o que mais apaixona a ficção e os imaginários, e intimamente associado à abertura ao público de uma sua nova secção, que revela as fundações medievais da fortaleza medieval.
É precisamente a partir dessas fundações que acompanhamos Eudes, o Volumetrista (“le Volumeur”), na sua missão de estudar os infindos corredores subterrâneos do museu. A obra de ficção encomendada torna-se assim um instrumento de pensamento do próprio museu, que tanto chega a aproximar-se das surpresas inerentes a este tipo de ficção como às mesuras de uma estruturada ponderação.
Tal como o Louvre cresce pelo futuro e visivelmente (a pirâmide de vidro, um cume) e ao mesmo tempo para baixo e para o seu passado (as muralhas, as faldas), isto é, como um espaço que para além de se reescrever a si mesmo se expõe a si mesmo, também este livro de Mathieu pretende demonstrar essa possibilidade alquímica: “o que está em cima é igual ao que está em baixo”. A descida de Eudes é uma ascensão no significado. Os anagramas estão desde logo presentes no título (Louvre, Révolu; mas o próprio nome do museu já o é, sim? “L’Oeuvre”, e no nome e função do protagonista), mas espalham-se por todo o livro, por cada capítulo, os quais correspondem a uma determinada secção misteriosa do museu: o departamento de ocos das esculturas, os fragmentos de grandes monumentos que são monumentos em si mesmos, a razão do desaparecimento do ciclope, a escuridão que preserva as cores dos quadros, o depósito das molduras (assemelhando-se assim a um repositório de sonhos como em Katchor ou J.C. Fernandes). E a cada secção é inerente um funcionário ou um tipo de funcionários que se assemelha a um dado animal, o que nos faz estar não perante uma tipologia mas antes uma zoologia (o museu como jaula e gaiola?). Esses animais ecoam outros animais-anagramas que são uma faceta possível do museu: Musa (que nos dá matéria a louvar) e Loba (“louve”, em francês, já que o local tinha o nome antigo de Lupara, que rouba, que nos dá a uivar), e tantos outros.
Esta permanente multiplicação de todos os seus elementos deve-se de facto a Mathieu transformar os seus livros em instrumentos de pensamento do seu tema e da própria banda desenhada. Uma das últimas secções a surgir no Louvre foi a do “Gabinete dos Desenhos”. Gabinete é uma palavra que remonta aos gabinetes de curiosidades, ou câmaras das maravilhas (Wunderkammer, em alemão, cf. p. ex. as de Seba, Rumphius, Worm, etc.), pequenos ou maiores móveis que reúnem muitas vezes sem critério os mais díspares objectos, ou cujo critério único é a acção de coligir. A banda desenhada pode ser vista como um pequeno gabinete, com as suas prateleiras e gavetas apropriadas nas quais se resume um pedaço do universo (as vinhetas) cuja coordenação leva a uma narrativa/explicação do Universo (a diegese própria desta arte). Mathieu joga com isso admiravelmente, levantando todas estas questões, sacudindo-lhes o pó que sobre elas caiu ou permanentemente delas cai e dá-nos a vê-las de novo. O Louvre ganha, assim, neste livro uma outra dimensão não só expositiva – bem diferente do que as dos catálogos, guias, etc. – como também reflexiva do seu papel, importância e até mesmo da sua própria natureza.
É no citado depósito das molduras que surge a discussão da própria banda desenhada, a linguagem em curso que nos narra essa história – de novo lançando-nos num outro nível de mise en abyme (um outro é este exemplo que aqui vemos, representando uma “caixinha chinesa” da representação até se sair do próprio livro que temos nas mãos). A banda desenhada não tem nome aí, senão numa eventual “narração pictórica sequencial”, mas para logo se mostrar que na sua vertente social é vista pelos “lá de cima” como algo “totalmente inconsiderado”. Todavia, não vive só como pista de reencontro de um caminho de significado ao Volumetrista, que procura a grande figura unificadora do edifício, como espelha o que nós mesmos estamos a ler.
Há apenas um pequeno “erro”. No momento em que se discute o “grande ícone”, a obra-prima do “grande mestre”, a do enigmático sorriso – entenda-se, portanto, a Gioconda de Da Vinci – vemos alinhadas uma série de telas engradadas, série que faz construir um mistério, o qual está em perigo com as novas formas de representação. Fala-se do daguerreótipo, mas não deixa de ser um símbolo para as formas que hoje pululam um pouco por todo o lado e trazem crises para todas as artes, representativas e narrativas. Ora a Gioconda é uma pintura sobre madeira. Poderá, sem dúvida, ser uma distracção. Ponto final. Mas porque não ver aqui, nesta série de pinturas cujos versos nós, leitores, não podemos ver, uma Ideia que remete ao papel de redenção que cabe à banda desenhada de repetir valores anteriores – a narração e a representação – mas para a conservação de um mistério antigo? E cuja chave é invisível (não a vemos).
É possível que este texto seja algo confuso... Mathieu está a pensar, não nos apresenta uma ideia finalizada e clara. Com ele, confundimo-nos e confundimos o acto de pensar com o da sua leitura. Acto raro e feliz.
Nota adicional: este álbum faz parte de uma série de livros de uma colaboração entre o Louvre e a (nova) Futuropolis. Menu estaria enganado ao baixar da bitola ou será esta uma operação de charme que confirmará o medo mais tarde? O primeiro título foi Période Glaciare, de Nicolas de Crécy, menos austero que este de Mathieu, e não tão arriscado como o Hortus Sanitatis de Coché onde obras de arte são transformadas em personagens, mas uma aventura de transfiguração quand même. Há uma editora portuguesa que negoceia a sua edição entre nós.
Olha amigo o seu blog é de muito bom gosto e a primeira vista parece muito interessante, mas coo você é prolixo e gosta de chutar conceitos no vazio heim! Os quadrinhos são exatamente o oposto disso!
ResponderEliminarBruno Cruz
2bcruz@gmail.com
Meu caro,
ResponderEliminarTem todo o direito à sua leitura, e não nego que posa ser por vezes prolixo. No entanto, uma leitura mais atenta não só deste blog como de toda uma bibliografia académica e crítica existente há mais de 30 anos mostrar-lhe-ia que não são "conceitos no vazio", mas sim um diálogo entre muitos autores e intelectuais (com os quais desejaria dialogar, pois não estou à altura). Por outro lado, os quadrinhos não são "exatamente o oposto disso", são meramente (!) um campo de expressão, no qual há espaço para tudo, desde o entretenimento mais simples e sem culpas até às explorações mais difíceis e dolorosas da existência humana... A única condição para as apreciar é abertura de espírito.
Não obrigo ninguém a seguir os meus textos, naturalmente, e podem todos deles discordar, mas dizer que não têm validade é já incorrer num abuso.
Bem-haja!
Pedro Moura