Hokusai. First Manga Master (versão inglesa de um livro originalmente francês) é uma selecção de algumas das páginas da imensa obra em quinze volumes Manga, de Katsushika Hokusai, que foram sendo publicadas entre 1814 e 1878, largos anos já depois da morte do artista (1849). Tendo em conta o difícil acesso (por razões de ausência de edições baratas e antológicas no Ocidente) a esta obra, este pequeno volume de cerca de 150 páginas é uma porta de acesso à mesma.
É provavelmente Hokusai o artista mais famoso no Ocidente sendo a sua obra ainda um continente desconhecido. Havendo desdobrado a sua criação em pintura, estampas, e até aquilo a que chamaríamos hoje de design (para bronzes e lacas, kimonos, netsukes e até tsubas – o guarda-mãos ou copos das longas espadas japonesas), o grande manancial e presença do seu poder encontra-se nos desenhos que produziu para livros. Isto é, grande parte da sua produção contemplava uma vida num meio reproduzido.
Como diz um famoso autor sobejamente citado quando se discute Hokusai, Jack Hillier, não obstante a flutuação da atenção do grande público ou dos canais de maior divulgação obrigarem estas imagens a surgirem sós e arrancadas do seu imediato contexto de livro, de conjunto, de série (o que já acontece no seio dos dois últimos volumes dos quinze desta obra, considerados não-canónicos), “para ser apreciado, tem de ser folheado página a página, imagem por imagem, o impacto sendo criado por um efeito de acumulação, e tendo o artista organizado voluntariamente os temas da série para despertar e manter o interesse, e terminando-a as mais das vezes com um crescendo calculado. Estes aspectos, específicos a esta forma de arte – o livro – não se encontra nas estampas individuais”. Este aspecto é fundamental. O livro, o acto de leitura, a construção por parte do leitor, quer de um acto escópico quer de um acto intelectual. Pensar de outro modo é querer desvirtuar a obra como ela é feita, como ela pode ser fruída, alimentado que se está por um preconceito e até uma ideia de que se está antes a fazer um “favor”, uma espécie de “elevação”, quando na verdade se está a falhar redondamente no acto previsto pelo autor: a leitura. (esse é um dos aspectos que entristece ao folhear este volume, sendo apenas uma selecção; fica sempre a ganância do “mais”).
Havia dois modos de compor livros no Japão na altura de Hokusai. Uma primeira classe de livros eram os que nós chamaríamos “de acordeão”, onde as folhas eram coladas umas às outras pelas bordas. A isto chama-se orihon. Os outros eram os livros ditos “ilustrados”, chamados ehon, cujas folhas eram dobradas ao meio e cosidas em cadernos. Estas folhas eram apenas impressas de um lado (mais tarde alterado graças às mudanças de tecnologia, como no caso dos exemplares utilizados para esta edição), por dois blocos de madeira que dividiam a imagem (no centro existindo um intervalo, que é tentador chamar de “intervinhetal”, mas seria falso, pois não se estabelece aí a mesma actividade mental de suspensão entre duas unidades como sucede na banda desenhada, é simplesmente uma limitação técnica) e ainda uma estreita faixa dos lados, chamada hashira, onde se colocavam várias informações (título do livro, volume, etc.; mais uma vez, estas informações são bebidas de Hillier). Reforça-se assim a especificidade da criação desta obra enquanto desenhos-em-livro, desenhos-em-série.
Como é indicado pelos autores deste pequeno volume, o imediato percursor ou modelo para o Manga de Hokusai encontrar-se-á no corpus existente de livros académicos, que ensinariam várias técnicas aos pintores, técnicas de desenho, de composição, etc. no interior do eixo China-Japão, e no qual a Coreia não foi alheia, mas algo lateral. A esta tradição também o Ocidente não era alheio, com cartapácios que reuniam em si toda uma quantidade de formas para se seguir o conhecimento e o talento, uma espécie de Etimologias de Santo Isidoro visual. Para um exemplo que conheço, indico o Reiner Musterbuch, do século XIII. Hokusai, quanto a ele, também elaborara um outro volume com esse sentido mais em mente, onde apresenta métodos simples, esquemáticos e geométricos de desenhar as mais variadas formas do mundo (um pouco como hoje surgem em quase todas as revistas infantis, por exemplo); se não estiver em erro, o título dessa obra é Como desenhar simples e depressa, e diz tudo. O termo em japonês é “Ryakuga”, ecoado por exemplo no Rakuga King, livro de desenhos livres de Terada Katsuya. Hokusai não está sozinho no mundo, mas leva o seu gesto a antes insuspeitadas amplitudes.
O conceito que preside a todos os volumes de Manga é, como já repeti, o da série. Ele é extremamente importante para um pensamento como o de Hokusai, um pensamento sobretudo pragmático e expressivo. Todos os dias, como uma espécie de gesto mágico-profissional, desenhava um leão-do-sol, o karashishi, como prece por um bom dia. Estes desenhos seriam apenas reunidos décadas após a morte do artista, mas a ideia de série está ainda mais patente na obra que publicou em vida, sobretudo os famosos dois livros dedicados ao monte Fuji e um outro em torno do rio Sumida. A ilustração redutora ou propriamente dita – a criação de imagens para explicitar um determinado conteúdo narrativo verbal anterior – também não foi território alheio ao mestre japonês. Exemplo máximo disso é a sua versão do clássico Viagem ao Ocidente, do qual o mais recente Dragonball derivaria igualmente. Em todos estes casos, porém, é fácil encontrar qual o “centro” a partir do qual as séries se estabelecem, divergem e retornam. Mas nos volumes de Manga a série parece perder um centro, já que se sucedem desenhos organizados por temas mas sem aparente estratégia organizativa. Ou antes, esse centro parece explodir e tornar todo e qualquer canto do mundo num potencial ponto de atenção onde converge a acção de Hokusai. Os editores deste volume organizam os desenhos por classes (animais, plantas, seres mitológicos, etc.), mas mesmo havendo algum princípio mínimo em cada volume original, são princípios relativos e nunca absolutamente claros (veja-se aqui a reprodução de um dos volumes originais, seguido de algumas imagens do interior).
Se a ideia da banda desenhada é uma nebulosa, sem nítidos e regrados contornos, mas antes um intervalo de noções contíguas que exerce uma espécie de luz, essa leve indecisão nos extremos permitir-nos-á incluir e discutir objectos que, a uma primeira aproximação, não se incluiria sob essa designação, caso imposta dicionaristicamente. Inclui-se isto mas não aquilo, mesmo sem ter a certeza de uma razão definitiva e explicável. Um dos elementos dessa nebulosa seria a da sequencialidade; pelo que arrumar os ciclos de Fuji e do Sumida numa prototípica banda desenhada não seria um exercício displicente. O título de Manga poder-nos-ia induzir a uma sua inclusão imediata, especialmente se tivermos em conta que é Hokusai que a inventa, à palavra (mas que apenas seria aplicada no Japão ao que hoje reconhecemos como mangá depois da 2ª Guerra Mundial, de acordo com Katayori Mitsugu; procurem a sua entrevista aqui). Porém, uma mais cuidada leitura torna a argumentação desta inclusão imperiosa. Em suma, é preciso – e sempre – pensar e tentar explicitar os porquês das nossas decisões.
Edmond de Goncourt, que é também citado neste pequeno volume, na sua obra Hokusai escreve o seguinte a propósito de Manga: “Mas a maravilha deste volume, como figuração do corpo humano em movimento, é o estudo da esgrima (...), onde setenta pequenos esboços de homúnculos, e uma vintena de outros maiores, colocam-vos, como sob os vossos olhos, os avanços, os recuos, as torções dos corpos (...)”. Goncourt maravilhara-se portanto sob esta estranha magia exercida sobre o olhar pela profusão e repetição de um mesmo corpo em variadíssimas posições, o que impedia de se fixar sobre uma só delas, uma figuração solidificada numa só pose, isto é, um ricto expositivo, mas como que o obrigava antes a vogar de trás para a frente, em espirais e volutas que tentavam captar esse movimento que não existia em qualquer uma das figuras tomadas singularmente, antes na sua relação de contiguidade mesclada com o do olhar, obrigando assim a mente à “figuração do corpo humano em movimento”. Nem todas as páginas – sempre tomadas duplamente, um recto e um verso como unidade de sentido única, mesmo que divididas em “secções” ou “vinhetas” ou “quadros” – possuem essa profusão de corpos, algumas até mostram uma paisagem estática, um só elefante, uma azálea cortando a lua cheia. Outras há porém que são maravilhosamente carregadas de um estranho e incapturável movimento: um bonzo seguido de dois camponeses aproximando-se de um rio onde rodopia um vórtice, várias cascatas onde se passeiam pessoas, levando-os a pensar numa sequência temporal e espacial desse grupo de passeantes, um samurai na boca de uma gruta que parece uma onda de pedra, o monte Fuji fustigado por uma chuva oblíqua densa, um pequeno edifício tombando no centro de um fogo consumido...
Hokusai parece também introduzir alguns elementos gráficos e estilísticos que se tornariam, mais tarde, rotineiros na banda desenhada, como por exemplo a sobreposição de traços a cinzento obscurecendo os desenhos para dar a ideia de “debaixo de água” (Töpffer fez o mesmo em Monsieur Cryptogame), traços paralelos cujo interior é branco e interrompe o desenho “por baixo/por trás” para representar uma pesada chuva (que Yuichi Yokoyama elevaria a uma presença visual central), a fragmentação dos objectos em pequenos pontos para mostrar a derrocada de um edifício (acção rápida capturada no chamado “momento pregnante”, e que no Ocidente surge pelo menos de uma forma magnífica nas Cantigas de Santa Maria) e o que desconfio, não podendo confirmá-lo, ser uma onomatopeia, no desenho que representa Osakobe no Sugaru, nas páginas 152-153, à esquerda...
Assim sendo, a filiação da mangá moderna (ou melhor, da banda desenhada, já em que japonês a palavra se aplica para além dela, ao cartoon, a desenhos, caricaturas, etc.) em Hokusai não pode ser encarada como uma linha toda a direito, sem tremores e convulsões, mas antes como sendo o grande artista das ukiyo-e uma das linhas que convergiriam para esta outra arte, linha no interior da qual se experimentara e cultivara sobretudo um certo prazer em tornar o desenho o mais desprendido possível, quase uma caligrafia pouco regrada e transformada em breve apontamento, pensamento rápido, precisamente uma ideia “fátua” (de novo associando-o às ukiyo-e, mas levando o seu conceito à mais extrema das consequências). Hokusai provara noutras publicações e nas outras suas actividades artísticas a mestria em termos de realismo, de acabamento, de virtuosismo, de propriedade face às regras e aos princípios balizados do seu tempo e lugar; à sua inscrição numa vetusta e respeitada tradição; em Manga liberta-se desse mesmo peso e procura a abertura de um campo mais livre (não obstante, associando-se ainda assim a outra tradição, no Japão garantida desde cedo pelo Choju Giga de Yoshizawa)
Como a propósito de um ou outro autor, se bem que em circunstâncias muito diferentes, esta opção pela série de desenhos de uma mesma natureza ou classe revela uma espécie de voragem por deixar uma marca em todo o universo, representando todo o universo através das suas próprias marcas. Em Hokusai, essa voragem está presente ainda – se bem que se tratasse de algo relativamente habitual nos seus círculos – na quantidade de vezes que Hokusai mudou de nome ou assinava diferentemente estas ou aquelas produções (num catálogo francês indicam-se 26, com o alerta de não ser exaustiva). Não se poderá falar aqui propriamente de pseudónimos (os quais servem para ocultar o nome real) nem de heterónimos (que pretendem dar um corpo coeso e uno a uma voz dissonante no interior do eu), mas antes de alterónimos, com os quais se pretende demarcar uma característica da sua própria personalidade, através da utilização de termos mágicos e significativos. Por exemplo, “Velho louco por pintura” e “Um outra vez”.... Na verdade, Hokusai é um desses nomes, que se traduzirá como “atelier do norte”, associando-se assim à sua profunda entrega à religiosidade (Budismo Nichiren, de acordo com as biografias).
Em mais que alguns aspectos, Hokusai parece ter o mesmo papel no Japão que Töpffer teve no seu espaço de influência (que se pode desdobrar desde Suíça-França-Alemanha à Europa ao mundo inteiro). Ambos não são responsáveis totais pela “invenção” da linguagem que inauguram (nenhuma arte ou novo modo nasce ab ovo, mas encontra-se na linha de convergência e choque de modos anteriores), mas são eles quem fazem despertar uma consciência nova e uma possibilidade de nomear (debuxar um contorno à volta de qualquer coisa). Se Töpffer faz inaugurar essa ideia com o Ensaio sobre a Fisiognomonia, Hokusai fá-lo cunhando a própria palavra manga. Ambos também se encontram na abertura de um novo território que se iria diferenciar e distanciar desses primeiros percursores. Ambos se revelariam a longo prazo como verdadeiros experimentalistas e destemidos criadores num espaço criativo onde a grande massa de trabalho se contentaria com expressões menores (ainda que de maior sucesso ou nomeada). Ambos estão presentemente sob um escrutínio inédito e balizado que os rememora e recupera para a história de uma arte tão particular como esta.
Em muitos locais se lê que Manga se trata de um livro de esboços, sketches, esquissos... Não. Isto não é um repositório de cartones à la Miguel Ângelo que serviriam a um outro fim ulterior, num outro modo de criação e expressão e construção. Tratam-se de desenhos. Um desenho não deve estar sempre sobre a sombra da ideia de ser ou um desejo incumprido ou a cumprir, nem a de ser uma ferramenta para... É. Nada mais a acrescentar.
quem é o magico inventor da flutuaçao???
ResponderEliminarAs minhas desculpas, mas não entendo a pergunta.
ResponderEliminarPM
Hokusai é considerado o primeiro mangaka da História?
ResponderEliminarNão sei se também conhece estes livros:
- "Hokusai Manga"
- "Hokusai", de Gian Carlo Calza
É que estou muito indecisa entre esses dois e o livro que analisou. Queria escolher um que fizesse um bom equilíbrio entre informação e imagens.
Cara Ana Luísa,
ResponderEliminarA questão não pode ser colocada dessa forma absoluta. É muito provável que Hokusai tenha sido o primeiro a empregar essa palavra num sentido moderno, como na sua série de livros "Hokusai Manga", que reuniam centenas, senão milhares, dos seus desenhos "loucos". Mas não era banda desenhada tal como entendida da forma mais clássica. Mas existem outras formas de narrativas visuais autóctones ao Japão que concorreriam para a forma moderna, e a influência anglo-americana não seria leve...
Por "Hokusai manga" não sei a que refere, já que há dezenas de livros a reproduzir (sempre parte) da obra original de Hokusai. Quanto à obra do Calza, é uma grande referência, com a qualidade incontornável da Phaidon. Seria uma compra excelente, se cara.
Há também uma banda desenhada, uma biografia, recente, de Shotaro Shinomori, de que falei, mas aconselharia a outras fontes, se pretende um estudo mais profundo, claro.
Obrigado,
Pedro.
Compreendo. É que uma vez li um artigo em que afirmavam que Hokusai tinha sido o primeiro mangaka da História mas também não o souberam explicar.
ResponderEliminarReferia-me a este livro:
-> http://www.amazon.co.uk/gp/product/4756240690/ref=ox_sc_sfl_title_1?ie=UTF8&psc=1&smid=AGT4PZ7DAM13B
O preço do livro de Gian Carlo Calza na Amazon UK rondaria os 31€ (portes incluídos). Se o livro é realmente bom penso que deverá valer a pena.
Obrigado.
Cara Ana Luísa,
ResponderEliminarEm primeiro lugar, não me quero responsabilizar pela sua compra! Se se arrepender, não quero levar culpas! :)
Fora de brincadeira, o volume da Phaidon é uma excelente compra. Não existindo coisas definitivas, esse é um volume que tem muita informação sobre a vida de Hokusai, explica as suas séries e carreira, e até alguns aspectos técnicos. É um livro da Phaidon, e isso deveria ser suficiente para ser prova da qualidade do trabalho científico e formal do livro.
Quanto ao outro livro que me enviou, é uma enorme colecção das imagens dos cerca de dezoito (cito de cor) cadernos de desenhos de Hokusai que se intitulavam "Hokusai Manga". Não gosto da opção da cor, mas das duas uma,ou se torna a sua primeira introdução a esses desenhos, e é excelente desse ponto de vista, ou então tornar-se-á o primeiro livro de Hokusai que compra, pois depois quererá ir comprando-os a todos...
Talvez, como primeira aposta, o primeiro livro seja uma melhor introdução, que a ajudará a saber o que procurar depois. É uma ideia.
Em francês também existe muito material.
Desejo-lhe uma boa escolha.
Pedro Moura
Não se preocupe!
ResponderEliminarJá estava a pensar em comprá-lo há muito tempo :)
Tenho um pequeno grande livro sobre Hiroshige mas gostava também de explorar o trabalho de Hokusai. Vou optar pelo livro do Calza.
Obrigado
Só para a aborrecer e convencer em gastar uma pipa de massa, a esses nomes não se esqueça do inefável Utamaro. A Phaidon tem livros maravilhosos sobre todos... e o Calza ainda tem outro monumental livro chamado "Ukiyo-e", maravilhoso mas caro para burro. Já o vi e degustei, mas não o tenho. É a sorte das bibliotecas de amigos!
ResponderEliminarPedro
P.S. E se entrar pelo terrenos das imagens eróticas e pornográficas, as "shungá", ainda terá outro mundo imenso a explorar!
Por favor, mais tortura não! A minha lista de livros para ler já é monumental X)
ResponderEliminarDe shungá conheço pouco. Ainda.