25 de agosto de 2007

Lendemains de Cendres. Séra (Delcourt)


Amanhãs de cinzas é um título, a um só tempo, perspectivo, introspectivo e falso. Séra é o nom de plume ou alcunha de Phoussera Ing, um artista de origem cambodjana (paterna) que se viria a refugiar em França após a tomada de poder dos Khmer Vermelhos. Após ter dado corpo gráfico a vários projectos de banda desenhada escritos por outros autores, aos poucos tem-se aproximado de um projecto, que se presume de longa duração, de revisitar as suas memórias do Cambodja, mas também as do próprio país, onde confluirão diatribes contra a violência exercida pelo regime de Pol Pot, os abusos das ideologias, os erros diplomáticos, o sofrimento das populações. Impasse et Rouge e L’Eau et la Terre foram os primeiros blocos desse edifício, Lendemains de Cendres será o terceiro. Uma outra dimensão dupla a confluir aqui é o encontro, nada fortuito e de certa forma habitual num fazer contemporâneo da banda desenhada, da autobiografia e da ficção. Não necessariamente nessa forma híbrida da autoficção, mas onde a reportagem de guerra –construída não só das experiências directas e pessoais como da pesquisa e investigação – acaba por ser melhor transmitida se pelo filtro de personagens e da sua específica estória; neste caso, um homem, Nhek, e uma mulher, Chantrea, cujo cruzamento por acaso os unirá na fuga das paragens de guerra.
O título é perspectivo pois olha para trás. O intervalo de tempo deste livro são os últimos anos do regime Khmer antes de entrar em conflito directo com as tropas vietnamitas. O “amanhã de cinzas” trata-se assim da única visão possível das pessoas que experienciaram esses momentos. Apesar de seguirmos mais atentamente, no grosso da narrativa, o périplo de Nhek e Chantrea, Lendemains de Cendres é uma daquelas obras que facilmente se podem juntar à categoria do polifónico. Faz todo o sentido empregar esta expressão, uma vez que para além das vozes das personagens actantes na acção, cruzam-se no plano diegético citações de discursos políticos, quer dos agentes do regime quer dos seus opositores, excertos dos programas dos Khmer Vermelhos, inclusive Pol Pot, letras de canções populares e revolucionárias, notícias reais, e imagens provindo de fotografias, televisão, filmes documentais (de Rithy Panh, que já antes prefaciara L’Eau et la Terre) e ainda citações da época áurea do Império Khmer original, cujo auge rondará os séculos XII e XIII. Desta forma, o exercício da memória colectiva é empregue da forma mais variada possível para que possam emergir vários e diferentes pontos de vista que construam, não uma imagem unificada, mas prismática. Não há um afastamento da parte do autor, mas a sua moralização directa é mantida a alguma distância. Por outro lado, tornam-se claras certas continuidades, como a de um certo pendor para a violência dos Khmer, quer os antigos quer os modernos, se bem que a violência antiga pareça revestir-se de uma espiritualidade que está ausente da moderna. O que não é de estranhar, pois os carrascos de hoje poderão vir a tornar-se nos heróis de amanhã (todavia, as cinzas manter-se-ão cinzas). Vejamos um detalhe: numa das muitas citações apresentadas, há uma marcante. Dizem “os filhos dos quadros dos Khmer vermelhos”: “A independência é ser-se responsável pelos seus actos: os mortos devem enterrar-se a eles mesmos”. Seguramente que na nossa cultura nos lembraremos de imediato das palavras de Jesus (Lucas, 9:60), os mortos que enterrem os mortos. A literalidade da primeira frase, dos ideólogos, não se revê na expressão cristológica, que aponta a um distanciamento dos assuntos terrenos. O sistema dos Khmer é uma das muitas formas que mostra como as ideologias e as revoluções não podem deixar de ser utópicas pois ao atravessarem a actualidade humana acabam por se prender às paixões do indivíduo, que corromperá os princípios abstractos em aplicações abusivas. O sistema dos Khmer não era de modo algum espiritual, obviamente, e o seu propósito materialista levou a um suicídio imbecil paulatino – não só na ascensão dessa terrível e famosa expressão, “campos de morte”, apontando aos milhões de pessoas mortas, mas à destruição contínua e sustentada pela máquina do Estado da inteligência, da diversidade espiritual, da vida da flora e da fauna... como diz Nhek a determinado momento, o seu propósito é “privar do futuro”.

O título é, assim, igualmente introspectivo. O autor materializa-se mais directamente no final do livro, onde inclui trabalho de fotografia e desenho que recolheu aquando do seu retorno à sua cidade, Phnom Penh, em 1993, ou seja, quase vinte anos depois de ter fugido. A voz imaterial que atravessava os interstícios da narrativa anterior surge subitamente com um peso e presença reais, com uma voz que se assume dialogante com o passado e com o presente, através de nós, os leitores. Os Outros. Pois há um propósito, também de reportagem, aqui presente, que poderá ganhar o nome de lição, alerta ou despertar da consciência. Não se trata de uma ficção de entretenimento, mas uma ficção de descobrimento (“retirar aquilo que cobre”). Alguns momentos da acção narrativa são como que abandonados somente à sequência de imagens, o que torna um pouco difícil a sua interpretação consensual ou a clareza. A manipulação digital dos desenhos originais e do material apropriado de várias fontes constrói ainda uma outra faceta de indecisão e diáfano que aumenta o primeiro grau de estranheza. No final de contas, talvez seja mesmo esse o comportamento desejado a um relembrar dos traumas, colectivos ou individuais, que surgem em imagens repentinas sem nexo ou elos, e que apenas despoletam, de novo, de novo, esses mesmos medos antigos. Haverá diferença entre o pesadelo e a realidade, pergunta-se o protagonista? Haverá diferença entre os relatos dos poemas épicos e bélicos antigos, os pesadelos populados pelos infernos do deus Yama e aquela realidade que Nhek atravessa nos seus dias de vigília, de estradas e caminhos juncados de cadáveres? É este mergulhar que torna Lendemains de Cendres um relato associado a uma voz pessoalíssima, ainda que transmissível, já que toda a poesia é transmissível. E há aqui frases escondidas que são tão resistentes como versos soltos: “Aqui, no país dos outros, temos muito frio”.

O título é, finalmente, falso, por uma razão paradoxal. A primeira cena do livro (e que dá a imagem capa igualmente) é quando Nhek leva o prato de sopa de arroz à boca. Essa sopa é cozinhada pelo Partido, e serve como símbolo da “unificação” do país. Para encontrar a igualdade, todos comerão do mesmo, e não há acesso a outros alimentos senão esta sopa. “É totalmente insípida”, diz Nhek. Não tem sal. O sal é o que dá sabor, o “sal da terra” (para recuperar outra expressão conhecida) é aquilo que lhe dá a vida. As cinzas representam a morte, o término. Um “amanhã de cinzas” não é um amanhã, foi um hoje arrasado até à sua mais elementar existência, no limiar da aniquilação. O paradoxo está no facto de que o sal, na terra, mata a vida que nela se encerra, ao passo que as cinzas a regeneram. Um “amanhã de cinzas” assim torna-se falso pelo caminho levado a cabo por Nhek e por Chandrea, e ainda pelo o narrador e o autor (que podem ou não coincidir), revelando-se que ao mexer nelas, nas cinzas, poderá despertar novamente o fogo que levará a um amanhã sem adjectivação. Só amanhã. E é isso o que um amanhã deve ser.

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