17 de setembro de 2007

Un Taxi Nommé Nadir. Romain Multier e Gilles Tévessin (Actes Sud)


Notas para a apresentação deste livro

  • Entrar num táxi não é somente uma escolha de um meio de transporte, mas penetrar numa idiossincrasia, numa personalidade, numa história de alguém. Quando entramos num táxi, sozinhos, a maioria das vezes sabemos que estaremos a entrar num diálogo – indesejado, inevitável, fomentado, simpático, há-os de todos os paladares – com o taxista. Poder-se-á falar somente do tempo, de um recente jogo de futebol, de um qualquer tema do dia, mais ou menos requentado, mais ou menos temperado por uma mistura de ideias feitas e opiniões férreas da parte do taxista.
  • Milan Kundera, em A Lentidão, provem-nos de uma imagem magnífica: quando caminhamos, pode surgir-nos nas dobras da cabeça uma pequena ponta de memória; se for uma memória de que nos queremos recordar, caminhamos mais devagar, como se ao mesmo tempo estivéssemos a puxar por essa ponta para nos recordarmos na totalidade; mas se adivinharmos ser algo penoso ou desagradável, então estugamos o passo, para que se possa essa ponta dissipar o mais rapidamente possível. Talvez pudéssemos acrescentar, pobremente decerto, a esta imagem, que um homem cuja profissão é conduzir, isto é, uma actividade de passeio e caminho mas a velocidades superiores, acaba por pagar esse acesso à memória e mergulha no mito, na ficção, na estória. Conduz-se para ficcionar.
  • Un taxi nommé Nadir é precisamente isso: a um só tempo, entramos com os seus autores num táxi, na vida do taxista, na estória que se desenvolve ao longo das páginas. São poucas as informações internas ao livro que nos desvendam o modo de trabalho que levou à produção deste livro, mas podemos apercebermos de que a distribuição das responsabilidades, tão típicas neste modo de expressão, coloca nas mãos de Romain Multier a parte que cabe às palavras e nas de Gilles Tévessin a que cabe às imagens. No entanto, e essa é uma das características que, não sendo original, é ainda atípica, estes autores não pugnam para transformar este num veículo das suas ficções, mas sim para transportar a voz de Nadir, um taxista de Paris, de ascendência argelina (tema que se torna significativo ao longo do livro, pelas suas considerações sobre a integração na França moderna, pelas paragens especiais em restaurantes com petiscos típicos), que tanto cita Rabelais como rosna entre dentes de situações menos próprias um pouco por todo o lado. O que importa salientar aqui é que a equação da banda desenhada acaba por pertencer a este Nadir (a personagem do livro, não a pessoa real, impossível de discernir e fora do âmbito da obra) e não à presença dos autores, que se dilui na estruturação, ou é a estruturação, mas não a parte dialogante com o leitor.
  • Fazer generalizações é sempre lateral a um crime quando diz respeito a pessoas reais. Assim sendo, estes dois autores optaram por dar lugar a um só condutor e não à elaboração de uma personagem compósita, que fosse de facto construída a partir de generalizações, clichés, ou preconceitos. Nesse sentido, associar Un taxi nommé Nadir a obras desse recente género da banda desenhada a que se pode dar o nome de reportagem ou de entrevista não será um risco de qualquer espécie, é uma simplicíssima constatação de factos. Agregar-se-ão nesse género autores tão diversos como Grenberger, Joe Sacco e Emmanuel Guibert. Aliás, não é por acaso que é este último, autor de Le Photographe e La Guerre d’Alan (onde se lançam complexas implicações em torno do trabalho de entrevistador e repórter, supostamente objectivo e que dá a palavra ao outro, e de amigo e autor, que tem a liberdade para tornar sua a voz do outro), quem escreve o prefácio deste livro presente, não só como dando a sua bênção mas também como garantindo a inscrição desta obra num espaço que ele ajudou a encetar.
  • Porém, há que ser rigorosos, e asseverar que não estamos perante uma obra tão forte como as desse autor. Há aspectos curiosos, como transformar o que foram provavelmente várias entrevistas a Nadir numa só viagem nocturna – a diegese inicia-se nos momentos em casa antes do turno, atravessamos uma Paris nocturna magnificamente diversa nas suas gentes, culturas e níveis de existência, e por ruelas e desvios não só geográficos mas da vida de Nadir igualmente, e voltamos a casa novamente -, a de transfigurar Paris do outro lado das janelas de um carro num espaço mudo mas habitado pela diversidade, a pequena ilusão de que somos passageiros no banco de trás escutando Nadir, os pequenos afastamentos do “texto” central para seguirmos um qualquer figurante (o cliente da prostituta, os “gunas” a curtir uma mini-moto). E apesar da personagem Nadir ser, sem dúvida, uma personalidade garantida, segura, redonda, “interessante”, como se costuma dizer, não há uma sua metamorfose pela e na banda desenhada, como acontece com Alan Cope ou Didier Lefèvre.
  • As imagens são um encontro de duas qualidades ou mesmo naturezas: os cenários, espaços, interiores de lojas, alguns objectos, parecem ser fotografias posterior e densamente retrabalhadas por computador (tornando-as um exemplo curioso entre a ilusão de naturalismo e objectividade da fotografia e a construção sígnica do desenho); as personagens são desenhadas de um modo muito simples, quase básico, e segundo os pequenos limites que programas fáceis de desenho por computador permitem a qualquer pequeno esforço (o que não invalida a emergência de um “estilo” ou da continuidade de uma perspectiva gráfica de todo o livro, mas não abona a favor de uma aproximação estética forte).
  • Não obstante, e seguindo a ideia de Borges de que não existe um único mau livro sem pelo menos uma frase memorável, apresento aqui as duas páginas que me parecem as mais sólidas em termos de trabalho conjunto e de especificidade do livro:

  • Finalmente, e mais uma vez numa comparação, se em Sacco e em Guibert há uma procura mínima pela ilusão do realismo, e se no primeiro se opta por revelar o mais claramente possível a natureza das entrevistas e relações interpessoais, e no segundo se opta antes por uma composição a partir das vozes dialogantes numa só voz autoral, neste livro de Multier e Tévessin é dada totalmente a voz à personagem Nadir, sendo ele quem nos conduz (literalmente!) pelas “cerejas” que a sua conversa suscita, sem direito a resposta, como, e perdoe-se a generalização, sói a um típico taxista.
  • Nota final: agradecimentos a Corine Saulneron pela oferta do livro e pelo convite feito em nome da Nouvelle Librarie Française, onde decorreu a apresentação deste livro, integrado no Festival Táxi.

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