3 de setembro de 2007

Yôrahop. Ang Kô (Sé Manhwa Check)


Uma das características mais permanentes de um certo fazer da autobiografia da banda desenhada é um certo grau de autocomiseração. Como não pode deixar de se esperar, essa qualidade poder-se-á tornar, de acordo com os graus verificados, fonte de irritação de um público menos atreito a tais ensimesmamentos; em alguns casos, o equilíbrio interno dessa qualidade, que se deve reconhecer com um espectro largo, pode levar à criação de textos de banda desenhada merecedores de uma atenção mais pausada.
A autocomiseração leva a dois gestos obrigatórios aquando a sua transformação ou transfiguração em obra de arte (entendido aqui num sentido de factura, não de uma qualidade que se atinge ou falha): a capacidade de se humildar a si mesmo, de aperceber e declarar a sua própria marginalização, pequenez, fragilidade, por um lado e por outro, a fortaleza de encontrar uma via de esperança ou mesmo a conquista da redenção. Há autores que se movem somente num espírito de ironia: apequenam-se a si mesmos com tal violência que qualquer momento contrário a esse movimento ganha contornos de salvação. Em graus diferentes, Crumb, Kominsky, Joe Matt, Brunetti, são autores que perseguem essa via. Outros preferem essa via confessional, quase crística, que os absolve pela distância que colocam entre o passado (aquilo que está representado na obra como um “foi”) e o presente: Chester Brown e Craig Thompson são dois exemplos maiores. Não pretendo aqui esgotar o espectro nem sequer estabelecer uma tipologia desta possível leitura. Apenas estabelecer um espaço de entendimento de diferenças. Há uma outra via, a que me referi na abertura deste texto. Um equilíbrio. Nem apresentando um retrato absolutamente demolidor da própria pessoa, nem estabelecendo distâncias de um passado que se considera “ultrapassado”, nem procurando uma absolvição final fulgurante. Apenas criando um retrato que se pretende genuíno, senão mesmo “honesto” (mas que nos levaria à questão da relação entre a obra de arte e a verdade: em última instância, questão inaveriguável). Mais uma vez, em graus diferentes deste terceiro espectro parcial dessoutro espectro maior indicado, alguns nomes: Liz Prince, Jeffrey Brown, Lewis Trondheim e, de modos mais complexos, mas aqui contíguos, Fabrice Neaud, Edmond Baudoin e David B.
A autora sul-coreana Ang Kô (( pseudónimo de Choi, Kyoung-Jin, e que surge nos diálogos da protagonista com as restantes personagens) inscrever-se-á nesta terceira facção.
Este livro, cujo título significa simplesmente "Dezanove" (dos anos de idade), reúne na totalidade as histórias, todas curtas, que a jovem artista criou para as mais variadas publicações sul-coreanas votadas à banda desenhada ou à cultura mais contemporânea, urbana e alternativa nesse país. Assim sendo, não será surpreendente encontrar, ao longo das páginas, com as histórias dispostas cronologicamente, encontrarmos aqui um pequeno percurso e desenvolvimento estilístico da autora. É sobretudo no aspecto gráfico, de uma progressiva descontracção em relação ao desenho, que se verifica essa “evolução”. Mas desde as primeiras histórias nos apercebemos de que o verdadeiro objecto de contenção e desejo de Ang Kô é a batalha que se dá todos os dias, não contra as contrariedades que se nos apresentam, mas contra a contrariedade que nasce em nós em relação ao que nós entendemos como obstáculos. Por outras palavras, é um antídoto simples em relação à fórmula “o inferno são os outros” (compreendendo-se que esta não é uma mera fórmula e que as suas implicações profundas podem ser exploradas de maneiras multifacetadas) através de um outro adágio, talvez mais verdadeiro: “o inferno, os obstáculos, as contrariedades, as contradições, os constrangimentos, criamo-los nós e a nós apenas nos pertencem”.
Nem todas as histórias são autobiográficas, mas a cada nova entrega e história, a autora aproxima-se de si mesma enquanto objecto de trabalho e exploração. Há como que uma urgência, de resto natural em qualquer acto criativo, de expressão, mas que talvez se revela das formas mais claras nestes territórios da banda desenhada, em o autor se colocar a si mesmo no centro da análise existencial a que se entrega, em que a sua vida se torna o texto a descortinar, o mistério a deslindar, o caminho a tornar mapeável pelo segundo texto que então se ergue, se escreve, se desenha. Talvez esta disposição seja apenas uma tendência, ou um “facilistismo”, como poderiam acusar, depreciativamente, alguns sectores de crítica. Mas talvez se deva igualmente pela banda desenhada colocar no centro do palco uma equação complexa de auto-representação, que passa pelos dois domínios, o actancial (narrativo, verbal, estruturado enquanto continuidade) e o visual (o figurativo, o auto-retrato, a auto-representação do modo mais literal e manifesto possível). Não é uma questão de superioridade (nem inferioridade) em relação à literatura (pela ausência, nesta, da imagem) ou do cinema (pela obrigação da filtragem multi-pessoal, económica, neste): trata-se tão-somente de repartir e de redistribuir de um modo que lhe é particular as dificuldades e potencialidades de cruzamento dessas formas de auto-representação.

Desenha-se o próprio corpo, coloca-se esse corpo numa função actancial, há como que um desprendimento desse seu próprio eu transformado em marioneta que mimará, de novo, os movimentos cumpridos anteriormente.
Ang Kô mostra-se quase sempre em contraste com outras personagens, à primeira vista superiores a ela (em termos de sucesso social, confiança perante os outros, estádio de felicidade aparente) ou, num caso, inferior (uma louca). Em todos os casos, o propósito é, apenas através dos factos mais banais, e jamais através de uma catástrofe – no seu sentido literal, de reverter as expectativas – ou de uma consideração fora e acima da narrativa – como quando através de uma voz narradora exterior à diegese que se desenrola -, mostrar como essas hierarquias são falhas. Como os pratos da balança são sempre diversos e as perspectivas se podem inverter por um simples desviar do fiel. Noutras histórias, a autora centra-se antes na sua relação com as suas pulsões e incapacidades de trabalho, e com as soluções facilitistas que estabelece para garantir o cumprimento das primeiras e ultrapassar as segundas: jamais funcionam da maneira esperada, mas sempre lhe revelam modos de satisfação existencial. Outras ainda, finalmente, e as mais tocantes delas, são pequenos retratos do seu relacionamento com as criaturas que lhe são mais próximas: a avó e os cães presos no exterior do que parece ser um ferro-velho. São criaturas frágeis e não se percebe, pois o que se deseja confundir é essa mesma relação, se a proximidade da personagem Ang Kô destas criaturas se deve à fragilidade comum entre eles, ou se é a fragilidade que é suscitada pela proximidade. Isto é, as relações de causalidade passam a ser indiscerníveis e, assim, indissociáveis de ambos os termos. Um implica e identifica-se com o outro.
A Coreia do Sul, como outras sociedades ditas avançadas, prezam de um modo cego e ávido esse fantasma chamado “juventude” em detrimento de qualquer outra etapa da existência, as mais das vezes em detrimento dessas outras etapas. Os velhos, ao contrário do que nos querem fazer crer as mistificações do “Oriente”, não têm lugar na acelerada sociedade. Os cães não vivem na mesma relação de companheirismo, usual e pelo menos superficialmente, que se cultiva entre os europeus. Ang Kô coloca-se assim do lado dos “fracos”, dos que acabam por comer sozinhos, dos que dormem no frio, dos que ficam “lá fora”. É com eles que as defesas dela caem, é com eles que pode mais sorrir, chorar, ficar chateada com coisas tão estúpidas como a avó abrir a porta enquanto ela está na casa de banho porque o “telemóvel está a mexer”. Aborrece-se com isso, é certo, mas com todas as outras pessoas nem essa paixão fina do aborrecimento emerge. Apenas uma indiferença mútua que expressa o profundo desinteresse pela humanidade autêntica.
Uma das razões que leva a muitos “leitores de banda desenhada” não apreciarem este tipo de ficções, auto-ficções e auto-retratos prende-se com o facto de fazerem prostrar o espírito humano no seu mais humilde traço, e não se render de modo algum a aspectos que remetam às possíveis fantasias que alienam dessa natureza verdadeira. Estas narrativas ou retratos não “excitam”, não “prendem a leitura”, não “abrem novos mundos”. Reflectem, tão simplesmente, a nossa mais banal das respirações. O que esses leitores parecem não captar é que conseguir uma reflexão dessa natureza é já em si um gesto quase hercúleo, pois é necessária uma equidistância do que melhor sabemos e somos e do que mais desejamos projectar. Equilíbrio sempre difícil. Curiosamente, jamais se acusam autores do cinema ou da literatura, que tenham mergulhado no que erroneamente se chama de “realismo” (porque inatingível no seu absoluto ou essencial, ou porque mesmo inexistente), de falharem em construir discursos da magnificência do maravilhoso ou do fantástico. Talvez ainda se exerça sobre a banda desenhada uma exigência limitativa, uma proibição mosaica de algum tipo em não poder representar o ser humano à imagem... do ser humano. Quiçá esses leitores e sectários das leis mosaicas da banda desenhada “tradicional” falhem igualmente em encontrar, considerar e degustar essas outras obras de cinema e literatura que cumprem esse campo, e logo exigem da banda desenhada tal comportamento, exponenciando nesta aquilo que já propõem como desejável nas outras esferas expressivas.
A redenção estética pode nutrir-se de vários componentes e expressar-se de vários modos. Ainda que a mais famosa catarse se vislumbre somente pelas mais altas comoções e paixões humanas, séculos e milénios da exploração literária e artística e dezenas de anos de banda desenhada mostraram, e permitem, que se procurem outros caminhos que a tornem tangível. Podemos reconsiderar a história da banda desenhada de vários modos, mas uma perspectiva consensual o suficiente aponta para que o género autobiográfico da banda desenhada se tenha formado sobretudo após os anos 60, e em especial nos Estados Unidos e depois em França. Temos portanto cerca de quarenta anos de uma busca permanente e reinvenção de vários parâmetros para, não criar, mas ir criando obras semi ou autobiográficas em banda desenhada com uma presença sólida. E tem-se conseguido. Não direi que o livro de Ang Kô seja uma pedra de fecho, nem sequer um ponto de viragem. Mas é seguramente mais uma pedra no meio do caminho que integra esse mesmo caminho.
Nota: existe uma edição recente em língua francesa desta autora sul-coreana, nas Éditions Phillippe Picquier. Trata-se de Jindol et moi. O nome da autora está grafado como “Ancco”. De acordo com as notas dessa edição, e tendo em conta que “Dezanove” reúne a totalidade das suas obras, presumo que seja o mesmo material em ambas as edições.
Nota 2ª: agradecimentos a Yunseon Yang, pela tradução. E tudo o mais.

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