A oportunidade parece exacta, a coincidência óptima. Mas Birmanie. La Peur est un Habitude foi publicado em 2003, revelando que a sua preocupação não é de agora, apesar de um mais global despertar para a mesma o é. Livro sobre a violação de um princípio, que mais do que “da democracia”, “da liberdade”, “da opção”, “dos direitos”, é antes de mais a um princípio mesmo de se ser ou de se poder ser. Porque a Dita Dura (para aproveitar um título do José Palomo Fuentes) é, como a própria origem da palavra o demonstra, uma exacerbação do poder do dizer (dicere, dictare), um dizer que se torna tão poderoso que é apenas esse dizer (duro, inflexível, intransigente,) que dá e tira o direito à existência. A linguagem torna-se assim um veículo dessa operação/opressão, facto apercebido de uma maneira plástica por Sylvain Victor, que anima a escrita birmanesa em veículos de morte, dentro dos parâmetros da qual “não há escolha”.
Tanta possibilidade retira esse dizer à existência livre, que a única fímbria de total liberdade individual que resta – e isto aconteceu em Portugal, de que restam ainda hoje resquícios – se cinge ao medo, um medo que se torna hábito. A segunda parte do título deste projecto poderia assim ser ofertado a qualquer circunstância de ditadura, praticamente.
Mas se o medo é um hábito, então qualquer gesto que o ultrapasse, a mera possibilidade de dizer qualquer coisa que não o permitido existir pela ditadura tem de ser um acto de coragem assombroso. Dizê-lo é já uma vitória de resistência. Dizê-lo assumirá várias formas, modos, qualidades, seguramente. Todavia, como ler um acto de resistência face a uma realidade com os olhos famintos pela esfera do “belo fazer” e do “belo dizer”? Não é que o assunto, o tema, o objecto de atenção ganhe algum contorno impenetrável a uma leitura interpretativa e crítica. Essa seria uma confissão de fraqueza própria, pois dizermos que algo é “indescritível”, “incomunicável”, ou que em relação a esse algo “nos faltam as palavras”, não é uma indicação da coisa em si, mas de uma falha nossa em (re)contruir a relação que com ela estabelecemos através de laços de palavras, de uma incapacidade nossa em comunicar essa primeira e existente relação.
Todavia, existem construções de natureza artística – mesmo que a reduzamos aqui ao seu sentido de “técnica” – que, reportando-se a temas precisamente ou intimistas ou de uma pertença indelevelmente atribuída a um sector apartado (por movimento próprio ou alheio) da humanidade, parecem querer deslizar para fora do discurso crítico, ou de um possível discurso crítico. Os primeiros rondam obras que versam as experiências mais pessoais, os relacionamentos humanos mais intransmissíveis, os pecados mais internos do seu “confessor”. Mergulham, estes, num campo a que querem chamar de “realidade”, à qual não parecem ser aplicáveis instrumentos de apreciação crítica que revelem de algum formalismo, de integrações num fluxo de tradições que lhes é externo em termos de experiência directa, de uma mera deslocação de sentidos. Por exemplo, o filme Tarnation, de Jonathan Caouette, cai nessa categoria: como posso dizer “é melodramático?” ou “existem interdependências abusivas que arruínam o crescendo narrativo?”, quando todo o material que compõe o filme é de “documentos reais”? Notar-se-á a fraqueza do argumento, indefensável, pois por sobre o factor do suposto “real” elaborou-se a marca da construção, da estruturação, da mise en scène que o autor (já não experienciador) optou seguir. E toda a história específica da autobiografia de banda desenhada faz-nos encontrar todo um espectro de qualidades flutuantes, recorrentes, ou níveis de proficiência estética que, sendo repetíveis, não são nem contínuos nem herdáveis. Quando ao segundo grupo de temas, os que constituem a herança de um grupo específico, tratam-se de todas as histórias dos sofrimentos ou traumas “nacionais” ou “étnicos” ou quejandos. O exemplo máximo – não por qualquer mensurabilidade da dor, mas precisamente pela construção de discursos em torno de – é obviamente a Shoah. As discussões em torno deste tema são inúmeras, infindáveis e extremamente controversas. A discussão que opôs um filme, e as atitudes que ele comporta, como Shoah, de Claude Lanzmann (cuja característica mais marcante é não ter quaisquer imagens de arquivo e construir-se com testemunhos de sobreviventes; o que leva à ideia de “irrepresentabilidade”, ou pior, de “inimaginabilidade”), e o estudo em torno das fotografias dos Sonderkommando tiradas nos campos de concentração por Didi-Huberman (em Images malgré tout) é uma das mais relevantes facetas dessa impossibilidade de distância. Mais, A Lista de Schindler, de Steve Spielberg, viria trazer outros pontos de contenção. Sendo todos radicalmente diferentes uns dos outros, estes textos, lançam todos eles profundos problemas sobre a representação de comunicabilidade do evento em si, daquela matéria elusiva que parece estar para além da sua mera descrição (o seu contorno actual) e, se calhar, até da sua própria vivência. De novo, independentemente do grau da experiência havida, ela parece escapar-se à capacidade racional da descrição verbal, às palavras, à razão. É o horror.
O horror de cada um a cada um pertence, e já antes faláramos aqui do grau de comunicabilidade e de transmissão dessa experiência. Cada um entende a sua como uma dor única, e não é errado assim a considerar. Todo o mundo é composto de unicidades lutando pela sua autonomia, conseguindo-o em maior ou menor grau.
A Birmânia – retornar ao nome colonialista servirá de resistência ao SPDC? - vive um momento que talvez venha a ser significativo no futuro. Encontra-se, neste momento presente, no centro das atenções e preocupações “humanitárias” das nações livres. Não há outro modo de o dizer: está na moda. Porque há uma moda que pertence à distribuição da atenção mundial pelo sofrimento dos outros. E para que uma qualquer situação entre na moda, é preciso que existam alertas que tornem a distribuição cada vez mais próxima desse encontro. É quase natural que sejam as televisões, em todos os seus sentidos, desde o aparelho às cadeias internacionais ao seu valor etimológico, as que ganhem primazia nessa distribuição. Mas outros instrumentos existem. As mais das vezes, não é com força e individualismo que se desenvolvem as bandas desenhadas votadas, desde a sua génese, a um propósito qualquer, uma função. São legião as bandas desenhadas empregues à transmissão de um conhecimento, de informações, de conselhos, transmissão essa que é sua função principal, e não algo que decorre da naturalidade de serem veículos de signos e do mundo. Conteúdos políticos, campanhas da Amnistia Internacional, programas panfletários, nada disso é alheio a esta linguagem. Birmanie. La peur est une Habitude está no interior desse movimento, tratando-se de um projecto da Khiasma e Info Birmanie, que reúne testemunhos (témoignages é a palavra empregue, não deixando dúvidas) de vários birmaneses que viveram a ditadura militar, curtas bandas desenhadas de autores famosos que mostram, através das suas formas e modos, uma possível experiência dessa realidade, seja de forma externa (o turista, o voluntário, o repórter) seja interna (o guerrilheiro, o soldado, a refugiada), e vários anexos informativos (livros, sites, listas de organizações oficiais, não-governamentais ou outras dedicadas a este combate) que servem de continuidade da educação. As bandas desenhadas são de José Muñoz, Markus Huber (ambos numa colaboração com o escritor Frédéric Debomy), Olivier Bramanti, Olivier Marboeuf, Sylvain Victor (todos estes associados aos projectos da Amok/Frémok, de contornos políticos) e Séra (que também determina como seu espaço de trabalho a denúncia e o reparo de crimes).
Na banda desenhada de Debomy e Muñoz, há duas situações iluminadoras e que parecem explicar este gesto global, demonstrando ao mesmo tempo como a força estética, afinal despontando em textos “funcionais”, pode também se pode servir dos seus instrumentos próprios, aparentemente não implicados na vida do real, para o redesenhar, redizer: a primeira é uma citação de Aung San Suu Kyi, “Penso que será a sua [dos ditadores] própria estreiteza e limitações que os faz temer a amplitude do possível”; a segunda é a vinheta aqui mostrada, que contrapõem a limitação dos carrascos e esbirros através do desborde conceptual e formal, sublinhando-se onde se encontra a verdadeira resistência, já apontada acima: “há sempre qualquer coisa que extravasa”.
Mas se o medo é um hábito, então qualquer gesto que o ultrapasse, a mera possibilidade de dizer qualquer coisa que não o permitido existir pela ditadura tem de ser um acto de coragem assombroso. Dizê-lo é já uma vitória de resistência. Dizê-lo assumirá várias formas, modos, qualidades, seguramente. Todavia, como ler um acto de resistência face a uma realidade com os olhos famintos pela esfera do “belo fazer” e do “belo dizer”? Não é que o assunto, o tema, o objecto de atenção ganhe algum contorno impenetrável a uma leitura interpretativa e crítica. Essa seria uma confissão de fraqueza própria, pois dizermos que algo é “indescritível”, “incomunicável”, ou que em relação a esse algo “nos faltam as palavras”, não é uma indicação da coisa em si, mas de uma falha nossa em (re)contruir a relação que com ela estabelecemos através de laços de palavras, de uma incapacidade nossa em comunicar essa primeira e existente relação.
Todavia, existem construções de natureza artística – mesmo que a reduzamos aqui ao seu sentido de “técnica” – que, reportando-se a temas precisamente ou intimistas ou de uma pertença indelevelmente atribuída a um sector apartado (por movimento próprio ou alheio) da humanidade, parecem querer deslizar para fora do discurso crítico, ou de um possível discurso crítico. Os primeiros rondam obras que versam as experiências mais pessoais, os relacionamentos humanos mais intransmissíveis, os pecados mais internos do seu “confessor”. Mergulham, estes, num campo a que querem chamar de “realidade”, à qual não parecem ser aplicáveis instrumentos de apreciação crítica que revelem de algum formalismo, de integrações num fluxo de tradições que lhes é externo em termos de experiência directa, de uma mera deslocação de sentidos. Por exemplo, o filme Tarnation, de Jonathan Caouette, cai nessa categoria: como posso dizer “é melodramático?” ou “existem interdependências abusivas que arruínam o crescendo narrativo?”, quando todo o material que compõe o filme é de “documentos reais”? Notar-se-á a fraqueza do argumento, indefensável, pois por sobre o factor do suposto “real” elaborou-se a marca da construção, da estruturação, da mise en scène que o autor (já não experienciador) optou seguir. E toda a história específica da autobiografia de banda desenhada faz-nos encontrar todo um espectro de qualidades flutuantes, recorrentes, ou níveis de proficiência estética que, sendo repetíveis, não são nem contínuos nem herdáveis. Quando ao segundo grupo de temas, os que constituem a herança de um grupo específico, tratam-se de todas as histórias dos sofrimentos ou traumas “nacionais” ou “étnicos” ou quejandos. O exemplo máximo – não por qualquer mensurabilidade da dor, mas precisamente pela construção de discursos em torno de – é obviamente a Shoah. As discussões em torno deste tema são inúmeras, infindáveis e extremamente controversas. A discussão que opôs um filme, e as atitudes que ele comporta, como Shoah, de Claude Lanzmann (cuja característica mais marcante é não ter quaisquer imagens de arquivo e construir-se com testemunhos de sobreviventes; o que leva à ideia de “irrepresentabilidade”, ou pior, de “inimaginabilidade”), e o estudo em torno das fotografias dos Sonderkommando tiradas nos campos de concentração por Didi-Huberman (em Images malgré tout) é uma das mais relevantes facetas dessa impossibilidade de distância. Mais, A Lista de Schindler, de Steve Spielberg, viria trazer outros pontos de contenção. Sendo todos radicalmente diferentes uns dos outros, estes textos, lançam todos eles profundos problemas sobre a representação de comunicabilidade do evento em si, daquela matéria elusiva que parece estar para além da sua mera descrição (o seu contorno actual) e, se calhar, até da sua própria vivência. De novo, independentemente do grau da experiência havida, ela parece escapar-se à capacidade racional da descrição verbal, às palavras, à razão. É o horror.
O horror de cada um a cada um pertence, e já antes faláramos aqui do grau de comunicabilidade e de transmissão dessa experiência. Cada um entende a sua como uma dor única, e não é errado assim a considerar. Todo o mundo é composto de unicidades lutando pela sua autonomia, conseguindo-o em maior ou menor grau.
A Birmânia – retornar ao nome colonialista servirá de resistência ao SPDC? - vive um momento que talvez venha a ser significativo no futuro. Encontra-se, neste momento presente, no centro das atenções e preocupações “humanitárias” das nações livres. Não há outro modo de o dizer: está na moda. Porque há uma moda que pertence à distribuição da atenção mundial pelo sofrimento dos outros. E para que uma qualquer situação entre na moda, é preciso que existam alertas que tornem a distribuição cada vez mais próxima desse encontro. É quase natural que sejam as televisões, em todos os seus sentidos, desde o aparelho às cadeias internacionais ao seu valor etimológico, as que ganhem primazia nessa distribuição. Mas outros instrumentos existem. As mais das vezes, não é com força e individualismo que se desenvolvem as bandas desenhadas votadas, desde a sua génese, a um propósito qualquer, uma função. São legião as bandas desenhadas empregues à transmissão de um conhecimento, de informações, de conselhos, transmissão essa que é sua função principal, e não algo que decorre da naturalidade de serem veículos de signos e do mundo. Conteúdos políticos, campanhas da Amnistia Internacional, programas panfletários, nada disso é alheio a esta linguagem. Birmanie. La peur est une Habitude está no interior desse movimento, tratando-se de um projecto da Khiasma e Info Birmanie, que reúne testemunhos (témoignages é a palavra empregue, não deixando dúvidas) de vários birmaneses que viveram a ditadura militar, curtas bandas desenhadas de autores famosos que mostram, através das suas formas e modos, uma possível experiência dessa realidade, seja de forma externa (o turista, o voluntário, o repórter) seja interna (o guerrilheiro, o soldado, a refugiada), e vários anexos informativos (livros, sites, listas de organizações oficiais, não-governamentais ou outras dedicadas a este combate) que servem de continuidade da educação. As bandas desenhadas são de José Muñoz, Markus Huber (ambos numa colaboração com o escritor Frédéric Debomy), Olivier Bramanti, Olivier Marboeuf, Sylvain Victor (todos estes associados aos projectos da Amok/Frémok, de contornos políticos) e Séra (que também determina como seu espaço de trabalho a denúncia e o reparo de crimes).
Na banda desenhada de Debomy e Muñoz, há duas situações iluminadoras e que parecem explicar este gesto global, demonstrando ao mesmo tempo como a força estética, afinal despontando em textos “funcionais”, pode também se pode servir dos seus instrumentos próprios, aparentemente não implicados na vida do real, para o redesenhar, redizer: a primeira é uma citação de Aung San Suu Kyi, “Penso que será a sua [dos ditadores] própria estreiteza e limitações que os faz temer a amplitude do possível”; a segunda é a vinheta aqui mostrada, que contrapõem a limitação dos carrascos e esbirros através do desborde conceptual e formal, sublinhando-se onde se encontra a verdadeira resistência, já apontada acima: “há sempre qualquer coisa que extravasa”.
Quanto mais nos apercebemos que a fórmula “nunca mais” não funciona, e que os horrores, por mais incomparáveis que sejam entre si, por mais irrepetíveis que sejam nas suas características singulares, se sucedem de facto, experimentando atravessar novos limiares – em “pontos negros” do mundo, como Ruanda, Coreia do Norte, Arménia, Tchetchénia, Tamil Nadu, Cambodja, Curdistão, e agora mais visível, Myanmar/Birmânia – importa antes empregarmos os esforços e talentos no aumento da visibilidade e comunicabilidade do incomunicável e irrepresentável, para que essa realidade seja, cada vez mais, “sempre menos”.
Nota pessoal: quando entrei na Birmânia pela fronteira da Tailândia, e me demorei apenas um par de horas na cidade-mercado que me foi permitido visitar, tornou-se essa uma das experiências mais vexantes que jamais tive. Passear por entre a miséria com a segurança intrínseca do conforto para onde se pode retornar colocou-me por cima dos ombros uma capa de obscenidade que não sabia existir. Para mais, quando a vontade de proximidade e genuína simpatia existia da parte de algumas das pessoas com que me cruzei, que me passaram, gesto mínimo de afeição, a costumeira noz de areca enrolada na sua folha de bétel para mastigar, e tendo aceitado, acabaria por cuspir à primeira oportunidade, num canto, escondido. É como se tivesse recusado da pior maneira uma das formas de os conhecer. É dessa indizível vergonha que livros como este nos tentam redimir.
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pelo empréstimo do livro.
Nota pessoal: quando entrei na Birmânia pela fronteira da Tailândia, e me demorei apenas um par de horas na cidade-mercado que me foi permitido visitar, tornou-se essa uma das experiências mais vexantes que jamais tive. Passear por entre a miséria com a segurança intrínseca do conforto para onde se pode retornar colocou-me por cima dos ombros uma capa de obscenidade que não sabia existir. Para mais, quando a vontade de proximidade e genuína simpatia existia da parte de algumas das pessoas com que me cruzei, que me passaram, gesto mínimo de afeição, a costumeira noz de areca enrolada na sua folha de bétel para mastigar, e tendo aceitado, acabaria por cuspir à primeira oportunidade, num canto, escondido. É como se tivesse recusado da pior maneira uma das formas de os conhecer. É dessa indizível vergonha que livros como este nos tentam redimir.
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pelo empréstimo do livro.
boa tarde, pedro. fantástico blog tu tens!!!!!
ResponderEliminarum grande abraço
jorge vicente
Venho por este meio convida-lo a visualizar e comentar, trabalhos de alto gabarito no meu humilde blog...
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