10 de novembro de 2007

já não há maçãs no paraíso. Max Tilmann (Mmmnnnrrrg)


Se a maçã (do Paraíso) deve ser entendida como não somente o fruto proibido mas como aquele fruto que nos daria acesso ao conhecimento do Bem e do Mal, ou seja, um Verdadeiro Conhecimento, e portanto Para Além do Bem e do Mal, então poderemos ler este título de ecos tão bíblicos quanto o anterior como indicando ser possível um retorno ao Paraíso, através, quiçá, da sua reconstrução na terra, permitida pela tecnologia (um Paraíso 2nd life?), mas no qual jamais se poderá esperar reencontrar esse acesso, pecaminoso ou não. Não é possível saber. Tudo nos é permitido, mas é-nos vedado ser.
Lucrécio cria que dos objectos, das coisas, se libertavam membranas que nos vinham aos olhos para nos dar as suas formas, apontado-nos para uma outra maneira de “ver”, táctil. A epígrafe de Blake, neste livro, “O que é o Homem?/Toda a Luz que o Sol mostrar/Depende do nosso Olhar” (e no texto inglês o sentido dúbio é marcado quer pelo pronome em “The Sun’s Light when he unfolds it”, pois “he” pertencerá ora ao Sol ora ao homem, quer pelo verbo “unfold”, que implica uma acção táctil, de toque, processual – e que é mimada pela nossa acção de leitor quando viramos as páginas do livro, desdobrando-lhe o sentido, criando-o – e ainda pelo facto de se sublinhar a existência de um “órgão” que observa), permite voltar a essa observação-pelo-toque. É aí que surgirá a diferença do “olhar” e da “visão”, que José Gil explora em A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções: “O olhar não se limita a ver, interroga e espera respostas, escruta, penetra e desposa as coisas e os seus movimentos”. Max Tilmann cria objectos (desenho) ou um objecto (um livro com uma série articulada de desenhos) que nos obrigam a olhar, que vêm ao encontro do nosso olhar e o obrigam a pensar.
Antes do mais, é importante que se proceda a uma descrição deste objecto, não para explicar o livro, ou pior, esperar explicitar o tema, mas antes para evitar mal-entendidos: unfold/desdobrar para fold-with/com-plicar, esclarecer para (nos) enredar. já não há maçãs no paraíso, após a epígrafe e uma folha de rosto, é composto por duas séries paralelas, apresentadas intermitentemente: uma primeira onde confluem desenhos ora de traços finos, apenas contornos, ora de traços grossos, manchas e traços a pincel, por vezes representando outras imagens, que se sobrepõem, linhas raiadas, balões de fala ora vazios ora preenchidos por um muito característico trabalho do autor de tramas apadronizadas, cabeças flutuantes, símbolos, reconhecíveis ou não. Tudo, sempre, sempre, ocupando quase toda a página, a preto e vermelho, e acompanhado de um texto, uma, duas palavras, a que se poderia chamar de nome ou título (“aborto clandestino”, “cancro”, “violência doméstica”, “refugiados”). A segunda série é composta por desenhos também de linhas finas, quase desconexas no interior dos seus contornos que desenham formas humanas, no que poderíamos entender como as várias possibilidades do encontro sexual.
Encontrar-se-á uma certa ordem, ordenação, composição, progressão, em ambas as séries, independentemente de estar ou não relacionado com um efectivo modo de produção (consciente, diríamos, se caíssemos nessa esparrela facilitista) do autor, que não podemos interrogar senão através da obra. A primeira, a das “crises da humanidade” inicia-se de um modo complexo, como toda a concorrência das formas atrás descritas a cada página, como que se sobrepondo várias formas de representar a “crise” indicada: no caso da pena de morte, poder-se-ão reconhecer quatro tipos de execução, sendo uma delas o que parece ser a crucificação, aliás, o descer da cruz de um corpo, adivinha-se... Estas sobreposições parecem aumentar de modos cada vez mais cerrados e completos (veja-se “deliquência juvenil”) para subitamente explodir e voltar a uma forma condensada: as seis últimas crises (a saber, “exclusão social”, “mendicidade forçada”, “repressão sexual”, “consumo e obesidade”, “estigmas físicos” e “estigmas sociais”) apresentam-se somente como personagens a contornos simples que encerram fortes manchas a negro – o tecido que cobre os corpos – e manchas a vermelho – as partes do corpo a descoberto, as mãos, a cabeça), precisamente por serem crises que não se partilham sob a forma de confronto, ou de partilha, mas de um sofrimento que se dá na solidão (quase ou mesmo) absoluta.
Também a outra série, a dos “encontros sexuais” se apresenta com séries internas: tarja preta, tarja vermelha, parceiro a negro, contorno geral vermelho suave, contorno geral vermelho obtuso, mas não parece haver qualquer correspondência interna entre essa tipologia formal e a das “posições” representadas (se bem que pareça existir uma maior regularidade, de 5 imagens cada série, com duas excepções por excesso e por defeito). Estes desenhos em particular são mais raramente preenchidos por pinceladas grossas de negro (com a excepção de uma das séries internas), ou ao lado das quais paira uma mancha vermelha, ou em cuja margem se espraia uma superfície de tramas e manchas carregadas, aparentemente sem relação directa com os actores representados. Digo actores, mas apenas em termos gerais lembrarão corpos humanos, mas são-no, apesar de tudo. E não há qualquer texto. São, por assim dizer, “silenciosos”. Há qualquer coisa de incómodo nesta segunda série, e nada tem a ver com a “pornografia” a que superficialmente parece apontar. Radicalmente ao contrário, estas imagens mergulham (“cavam”) na tradição do feio ou do grotesco; são anti-eróticas. Se sexualidade existe, é diminuída à sua mecanicidade animal. Isto nada tem a ver com o “choque”, nem sequer, ou muito menos, em termos de “choque moral”, é um mergulho na sexualidade para a evitar.
As cores insistentes e do jogo de Tilmann, vermelho, negro e branco, fazem-me recordar um poema de Camilo Pessanha, um dos mais famosos, Branco e Vermelho, e com o qual se podem descobrir afinidades (para além da falsa dicotomia das cores): há um pequeno ciclo de repetições cuja insistência num mesmo sentido, quase sem desvios, mais do que procurar provocar diferenciações internas, aturde o seu sentido original, como a uma sensação que, repetida até a exacerbação, se dissipa na insensibilidade. Esta aparentemente simples, superficial e nominal enumeração de “problemas” e “crises” da humanidade parece apontar em duas direcções morais, ou melhor, da moralidade: por um lado, a mais banal das indicações desses problemas, como surge aqui e ali em campanhas, slogans, verdadeiros produtos da solidariedade, meras modas que vão sendo substituídas à medida que as novas surgem...; por outro, decorrendo daquela insensibilidade que emerge pela estimulação excessiva, a sua completa dissolução. Nomear, repetida e superficialmente, não é dizer a coisa, mas antes arrancar-lhe o direito de nome. Retornando a Pessanha, parece refazer-se a imagem do poema, o “tema” de Tilmann: “Da insigne dor humana.../A inútil dor humana!” (meu sublinhado).
Já não se trata de “acabar com o juízo de Deus”, como diria Artaud, pois Deus perde o seu lugar neste segundo passo de Tilmann (já o havia perdido nos campos de céu aberto do livro anterior, mas restava-lhe a sombra), mas de encontrar estes cartuchos vazios, estes nomes, estes programas, desprovidos de interior, e estes corpos engalfinhados uns nos outros mas sem quaisquer paixões, encontros, sem alma. O Paraíso é de certo modo tangível, mas Deus dele se ausentou (ou nunca lá esteve e apercebemo-nos agora do vazio), e as maçãs, se o forem, serão apenas frutos envenenados e não acesso à beatitude. “É a hora da morte e à hora da morte tudo é possível ser-se. É a hora da morte e jamais o homem morreu como hoje”, escreveu Virgílio Ferreira. Max Tilmann pensa, pelas imagens, o mesmo, mostrando para além das formas das mortes a natureza dessa mesma morte. Porque no fim, no fim de tudo, de todas as dores repetidas, de todas as morais marteladas, e para além de tudo, que resta? Pessanha, ainda: “Não sinto já, não penso”.
Nota: Agradecimentos a Marcos Farrajota, pela oferta do livro, a Tiago Manuel, pelo livro em si, a Sara Figueiredo Costa, pela leitura do livro.
Nota final: para a compra de um exemplar, aconselha-se a distribuidora Chili com Carne.

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