Eis um exemplo de uma revista de banda desenhada que apresenta um projecto simples, perfeitamente delimitado no seu escopo de acção e públicos visados e que, por essas mesmas razões, os cumpre cabalmente, tornando-se assim um projecto coeso. Não adiantará fazer futurologia, pois o mercado espanhol de banda desenhada, sendo naturalmente mais forte que o português, e também mais feliz, e talvez mesmo mais inteligente, não significa porém que seja alheio às várias crises que poderão assolar de qualquer direcção. No entanto, tendo em conta ainda a estratégia comercial que seguem (em consonância com outras experiências anteriores naquele país, e outros), é bem possível que atinjam um grau de pragmatismo mais protector.
O princípio de coesão da espanhola (Valência) Argh! inicia-se na superfície. Até à data apareceram 3 números, cada qual com sua cor, segunda cor de impressão também no interior. É tentador encontrar no uso específico de cada cor um ditame sobre as histórias no interior. O número um é vermelho, e será por essa razão que surgem ilustrações e histórias onde está presente no centro o coração, o sangue, a língua, o assassinato e o suicídio, as operações macabras. Número dois, azul: plasmas de fantasma, água de esgotos escuros, patinagem no gelo, amores não correspondidos, esquimós e bebés mortos de gripe. Número três, amarelo: bílis, urina e outros fluidos e odores corporais, sóis abrasadores, fogos, tigres e ouro. Tudo isto, porém, pode ser uma ilusão, não mais do que uma sugestão que, alterada fosse a cor, me levaria a sublinhar outras valências no interior das mesmas histórias.
A coesão continua um pouco mais por dentro. Apesar de existirem estilos muito diversos, e pequenos contrastes, como por exemplo a que existe entre a linha rotunda e plástica de Félix Diaz e a ligeiramente mais angular e mais devedora da caricatura de Jorge Parras (para apenas falar dos mentores e editores do projecto), há como que uma “linha geral” que os une. Uma linha que se pode encontrar em ilustradores como Roger Hargreaves (Mr. Men) e que se mantém hoje através de Pete Fowler, James Jarvis, Gary Baseman, Tim Biskup, Yoshitomo Nara ou J. Otto Seibold. Não será por acaso que esta fiada de artistas esteja relacionada com uma outra linha de desenvolvimento artístico a partir de algumas das forças comuns à banda desenhada, ilustração e uma certa cultura quer urbana (adulta, mundana, bebendo de várias fontes) quer infantil (um certo tom jovial, a propensão para o coleccionismo, o brincar permanente independentemente da idade, etc.) que se verifica no que já se chama “toy art”. Ou áreas contíguas. Tudo tem a ver com uma certa dose de simplicidade, de rotundidade das formas, de cuteness até. Mas, e ainda de acordo com muitos dos autores citados daquelas áreas, estas figuras aparentemente cândidas e capazes apenas da mais prazenteira das presenças, revelam-se afinal instrumento de uma outra natureza diametralmente oposta, já indicada pela listagem de objectos e temas acima.
As histórias rondam territórios da violência, do sexo, do horror, do obsceno, do fantástico e do fantasioso, de uma grande dose de atitudes adolescentes e piadas “cocó-xixi” para com tudo o que o mundo tem (aproximando-nos do seu título como descritivo), mas em que essa aparente debilidade não se deve à debilidade ela mesma, mas a um posicionamento irónico que mima as debilidades para com ela espelhar tudo o mais (Johnny Ryan e Ivan Brunetti são duas referências neste campo). Digamos que se o amor fosse sentido com o estômago, estaríamos perante aqui um caso de gastroenterite.
Há um punhado de autores regulares e outros colaboradores que se adivinham. Richard Câmara, por exemplo, participou no terceiro com mais uma das muitas versões do Capuchinho... aqui, amarelo. Para além do trabalho de Diaz, que é insuportavelmente apetecível de ser olhado várias vezes mesmo que o que represente nos possa incomodar em termos semânticos (“gelado de rabo”, por exemplo, não soa nada agradável – ver a imagem, dos seus personagens regulares Honky e Smonky), e o de Parras (cujo metralhar de piadas de mau gosto e secas acabam por se tornar a razão da sua graça – ver a imagem de um especial isqueiro), encontramos trabalhos de Luci Gutiérrez, Miguel Porto, Pau Masiques, Luís Demano e Brais Rodriguéz, cada um com a sua prestação estilizada mas segundo pulsões muito próprias, ou trabalhos de Bob Flynn e Martín Lopéz, que são quem melhor desarruma a candura das formas figurais que apresentam, entre outros autores. E apesar de apenas haver uma das suas ilustrações no no. 3, o nome de Moki tem de ser sublinhado.
Conforme todo este espírito moderno, de pragmatismo, comunicabilidade, colaboração internacional, e um trabalho efectivo, o site da Argh! tem toda uma série de dimensões informativas para além da revista, sem deixar de nos centrar a atenção nela como o seu mais forte rosto. Mas a partir daí, poderão descobrir os mundos de cada um dos artistas, e fortalecer mais a linha que os cose a todos na publicação.
Uma curiosidade, mas mais por contraste do que por imanência da Argh!: é o facto de não ter qualquer texto programático, nota de intenções, editoriais ou diatribes contra o “estado das coisas”, de que padecem tantas novas publicações – mormente em Portugal – que querem “trazer novidade” ou “dar uma pedrada no charco” ou “marcar a diferença”. É possível que esta revista o consiga, ou talvez não: mas se o fizer, fa-lo-á fazendo. Alles klar?
Nota: agradecimentos a Félix Diaz e a Jorge Parras pelo envio dos três números da Argh! Gracias, es la hostia!
Brilhante finalização do seu ensaio crítico, atribuindo à publicação Arghh! a qualidade de mostrar o que quer fazer, fazendo, e não anunciando previamente qualquer intenção programática. Se calhar essa atitude não foi deliberada antecipadamente, mas o Pedro Moura detectou a singularidade.
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