Remeto ao post anterior, sobre a série destes mesmos dois autores Sleeper para algumas informações mais circunstanciais no que diz respeito ao trânsito e progresso de Brubaker, mas também de Phillips.
Criminal é uma outra série que, pertencendo à Marvel, o pertence a uma subsidiária, a Icon, que apresenta, através da possibilidade dos autores serem os detentores dos seus direitos, trabalhos ligeiramente mais autorais e sem obrigatoriedades para com políticas internas dos “universos” da companhia. Brubaker e Phillips optaram pela assunção de uma série cujos “volumes”, “arcos” ou “estações” (para mimar as estruturas de séries televisivas) se centram nesta ou naquela personagem, mas em que todas elas pertencem a uma rede maior, ainda que ténue, de relacionamentos. A fórmula dessas uniões, desses elos, é feita através de referências que transitam de livro para livro: uma personagem que se cita num dos episódios ocupará o lugar central num outro, um mesmo espaço de cruzamento torna-se o centro nevrálgico das ocupações das personagens (o bar “Undertow”, um magnífico trocadilho – Undertown, baixa, perde o n para se tornar a ressaca ou contracorrente que puxa para o interior do mar os mais desprevenidos). O género, mais uma vez, sem quaisquer excusas para com a crescente derrocada desejada pelo pós-modernismo desses mesmos géneros, é o “policial”. Na verdade, muito mais do que Sleeper (que ainda vivia sob o signo dos super-heróis, tanto quanto, se bem que não de modo tão directo, Powers, de M. B. Bendis e M. A. Oeming), Criminal retorna ao que parecia os primeiros ensaios de escrita em banda desenhada de Brubaker, mergulhando de caras em todo o manancial de chavões esperados, situações e crises típicas do mesmo género para dele emergir incólume e com uma obra não apenas verosímil, como louvável e forte. Isto é, quase poderíamos quebrar toda a intriga e até mesmo a caracterização destas personagens em módulos e, depois, examinando-os e/ou recombinando-os, identificá-los com elementos idênticos que foram empregues no mesmo género ao longo dos anos nas mais diversas linguagens (literárias, cinematográficas, televisivas, etc.). Não obstante, isso não invalida a obra em si, não se trata de repetições, epigonismos, ou pior, algo entendido como “falta de originalidade” (seja o que isso for): trata-se antes de um profundo conhecimento das peças necessárias à edificação de um policial para, a partir dele, permitir-nos aceder a algo de humanamente identificável: as pessoas.
Pode-se dizer que Criminal faz um retrato das famílias do crime da cidade retratada (sem nome), e é exactamente as relações familiares que estão no centro dos dois episódios, Coward e Lawless. A família, aqui, deve ser entendida aquela que é unida pelo sangue, sem dúvida, mas de dois modos: o que transita de pai para filho, que é partilhado entre irmãos, mas também aquele que é derramado entre amigos e companheiros na sua actividade. Despojados de quaisquer poderes sobrenaturais ou de um escopo de acção monumental, todas estas personagens movem-se num prisma relativamente apertado, senão mesmo claustrofóbico, em que cada acção parece expressar o desejo de dele escaparem.
Coward foi o primeiro “arco” e centrou-se na personagem de Leo, uma espécie de ladrão com alguns princípios éticos e preocupações máximas no seu profissionalismo – nesse aspecto recorda a personagem de De Niro em Heat, de Michael Mann – mesmo que isso acarrete um confronto directo com os seus “colegas” mais excitados com a possibilidade de quebrar a lei. Juntem-se a isso a responsabilidade que tem em cuidar de dois toxicodependentes a tentar escapar ao vício, a protecção ao longe de uma criança, o tentar esquivar-se de polícias corruptos e de uma apertada malha de tráfico de droga, e Leo passa do que prece ser um cobarde a afinal uma personagem que havia ponderado bem o viver num carreiro só seu. A narrativa de Coward é linear, com uma grande intervenção extradiegética da voz do protagonista (a dita voz off), pois o que interessa é preencher ao máximo a perspectiva de Leo sobre todo este mundito que o rodeia. Tudo parece caminhar num só sentido, que se pode mais ou menos adivinhar (ainda que o desenlace de Coward seja iluminado ou explicado depois, em Lawless), parece fazer esse sentido, o que torna muito curiosa a presença regular e ritmada da leitura interna, pelas personagens, de uma tira de banda desenhada policial publicada no jornal local, um misto de Chester Gould e Paul Auster e Daniel Clowes intitulado Frank Kafka, Private Eye. E o autor é um tal de “Jacob K.” Aperceber-nos-emos facilmente dessoutra rede de relacionamentos que é aqui desejada. Todavia, o que mais importa é entender essa tira que apenas surge um punhado de vezes como uma mise-en-abîme de todo o Coward. Tal como as suas personagens “não entendem”, isto é, não captam o estranho sentido dessa tira, também elas mesmas se encontram presas num movimento sem sentido aparente, quase niilista, das suas vidas. O mesmo poderia ser dito da nossa própria, da realidade. Viver-se no interior de uma ficção, seja ela como for, vive ainda numa qualquer natureza de unidade. Final feliz ou infeliz, Coward tem essa unidade, no cômputo final das coisas. Lawless elabora uma unidade tão ou mais forte que o arco anterior, sobretudo por seguir uma estrutura muito menos linear, feita de avanços e recuos, analepses e prolepses que nos vão ofertando todas as peças da história que temos de construir juntamente ao ritmo da narrativa. Desta feita, seguimos uma outra personagem feita de uma massa bem diferente, Broderick Lawless, um comando saído desse mundo criminoso, passado a ferro pelo exército norte-americano nas suas missões mais violentas (e supostamente secretas), que retorna à sua origem para se inteirar da morte do seu irmão e, se possível, exercer vingança. A descoberta de quem é que lhe matou o irmão é quase uma questão secundária. Mesmo quando o descobre, é quase anti-climática essa descoberta, como o é ainda mais a resolução final de Lawless em relação a esse saber. É tão secundário que nos vamos apercebendo que as relações de Lawless e o seu irmão morto eram algo definhadas, quase um silêncio e indiferença. Porém, é como se existisse um código que os obrigasse a todos, a estas personagens, a uma reacção, a uma resposta, automaticamente provocadas por uma acção primeira, também ela afinal programada. Mais uma vez, descobrir-se o quão preso se está à natureza finalista que emerge no interior de uma ficção, espelhando de maneira enviesada o que se passa em nosso torno.
Brubaker explicou em várias entrevistas que o seu conhecimento dos trâmites do mundo do crime é em primeira mão, e que os graus de violência são muito densos. A violência em Criminal passa obviamente pelo uso de pistolas e punhos, mas há muitas outras violências exploradas, sendo a familiar a principal. E essa violência, menos espectacular, é bem mais profunda e espessa e sobrevive durante muito mais tempo.
Os desenhos de Sean Phillips encontram um excelente equilíbrio entre um realismo desejado e a estilização. Não caindo nas linhas de um absoluto geométrico chiaroscuro como o de Gould ou de Frank Miller, mas evitando as armadilhas maniqueístas deste último igualmente, Phillips apresenta-nos corpos que respondem na perfeição às necessidades da narrativa: expressividade e dramatismo que baste, mas sem ser histriónico, descolando-se das personagens trevas de dentro para fora, cores (por Val Staples) que respeitam o ambiente, a um só tempo ou destacadamente nocturno, nostálgico e abjurado – não há uma única vinheta diurna em Lawless, independentemente de alguma menor acção ser “de dia”.
Nenhum dos arcos de Criminal, até agora, mostraram ser condescendente ou amáveis para com as suas personagens. Isto não quer dizer que se desejasse um fim “feliz”, redentor, nem tampouco que consideremos os fins absolutamente niilistas, como apontámos acima. Simplesmente que retratam os modos improvisados com que a retribuição, a justiça e o equilíbrio têm e com que teimam em surgir.
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