A banda desenhada, na sua origem, apresentava um percurso, isto é, a acção necessária para ir de um ponto A a um ponto B, da forma mais directa e linear possível, numa implicação de causalidade material quase absoluta e, as mais das vezes, sem quaisquer alterações intrínsecas para aquele que percorre, a não ser a ideia de vitória. Aliás, este sentido desportivo é corroborado pelo sentido etimológico de cursus, aplicado às corridas. Se em William Hogarth ainda se mostravam, através de largos e alegóricos episódios espaçados da vida de uma determinada personagem (a “Harlot”, o “Rake”, etc.), progressos (morais, entenda-se, e usualmente de derrocada), Töpffer instituiu a ideia de aventura, de viagem, de deslocação, cujo acme se encontra talvez em Docteur Festus ou nos pequenos nós de movimento da Histoire de Monsieur Cryptogame. Este ideia de movimento quase-perpétuo seria tornada numa regra de construção aquando da transformação desta linguagem num veículo de entretenimento infanto-juvenil, e estou em crer que é Saint-Ogan o nome mais importante nessa transformação: as aventuras de Zig e Puce são uma linha recta esticada entre o ponto de partida, França, e o ponto desejado de chegada, a América, e em que cada nódulo narrativo é desencadeado por uma causa qualquer, ao acaso, parece-nos, mas que se constituem como contribuições para a continuidade desse movimento.
A história da banda desenhada viria a oferecer-nos muitos exemplos de narrativas complexas, que empregam todos os dispositivos narratológicos disponíveis nas suas histórias, criando obras de múltiplas leituras, ou de camadas sobrepostas de sentidos e direcções, capazes de suscitar polifonias internas ou movimentos envolventes e de vaivém... Mas pode também trazer-nos à consideração uma narrativa perfeitamente linear, sem transigências para com uma vontade de tornar mais complexa a história, mas felizes de se tornaram uma flecha, recta, directa e certeira. Jacaranda é uma flecha. A sinopse explica quase tudo: num pequeno bairro residencial da cidade de Tóquio, um dia, brota de debaixo do alcatrão uma árvore de jacarandá. Ao princípio, é apenas uma curiosidade para os habitantes desse local, e depois para os jornalistas. O jacarandá, porém, não se limita a crescer um pouco. Atinge antes proporções colossais, e o seu avanço, do tronco que engrossa, das raízes que se espalham, da copa que abarca a cidade, vai arrasando a cidade, demolindo casas e edifícios, invadindo esgotos e túneis de metro, fazendo explodir condutas de gás, disseminando incêndios, provocando tremores de terra e muitas catástrofes à escala humana.
Não há aqui personagens principais humanas. Apenas a árvore que vai crescendo é a protagonista, vista de todas as perspectivas possíveis à sua volta, recordando assim, de certo modo, as 36 Vistas do Monte Fuji de Hokusai, obra a qual, não sendo uma narrativa propriamente dita, faz emergir uma noção de protagonismo, de imortalidade divina em contraste com a vida dos homens, fugaz, que igualmente se espelha em Jacaranda. Há muita mortandade, e mesmo – estritamente a uma escala humana – crueldade, mas a glória final do jacarandá florido com as suas claras e lindas flores desabrochando por sobre a destruída Tóquio acaba por impelir os sobreviventes a uma epifania, um louvor à manifestação do divino sobre a terra. As associações dessa árvore, até pela sua figuração, a sua forma, com as explosões atómicas ou nucleares é aventada nos textos que acompanham esta edição, e numa entrevista ao autor revelam-se algumas das leituras e intenções aqui envolvidas. Nas suas palavras, Kotobuki explicita que “o processo de renascimento é transmitido por uma dimensão trágica”. Todavia, quase que nos desapaixonamos da escala humana que referi, e as tragédias, mesmo aquelas que vemos representada de perto (um desastre de automóvel, uma mãe e uma criança desaparecendo numa explosão, pessoas a caírem de prédios) são apresentadas num turbilhão cada vez mais rápido nestas quase 300 páginas, para podermos rapidamente chegar ao propósito, isto é, a esse renascimento: uma árvore plantada no centro da cidade, deixando-nos adivinhar toda a espécie de mudanças radicais e quase utópicas que se seguirão.
Essa velocidade é de tal modo que, apesar de já o traço de Kotobuki ser muito solto, em que as personagens humanas parecem ser feitas por uma acumulação de traços ao acaso, à medida que nos vamos adentrando na catástrofe, a figuração vai também sendo progressivamente engolida nesse vórtice de traços, de riscos, não já símbolos de movimento, não já onomatopeias dos horríssonos acontecimentos, mas sinais abstractos dessa mesma vertigem. Veja-se esta imagem como exemplo disso. Quase parece estarmos perante uma obra de caligrafia clássica, onde algumas das linhas paralelas e cruzadas nos poderiam fazer adivinhar um ideograma e, assim, um qualquer sentido oculto na destruição que representa. As associações a Katsuhiro Otomo serão óbvias, sobretudo se tivermos em conta que esse autor parece ser “mais interessado o conceito de destruição do que no de construção” (João Miguel Lameiras e João Ramalho Santos no excelente artigo Urbanismos de Papel. As cidades na banda desenhada, in Biblioteca 3/4 de 1999). Não obstante, a destruição de Otomo é uma destruição meramente física, superficial, e mesmo a exploração que esse autor faz dos fenómenos sócio-religiosos que surgem em Neo-Tóquio não deixam de ser uma leitura relativamente simples das dependências mais imediatas do homem aos rituais. Em Jacaranda, porém, parece estarmos a assistir a algo mais profundo. Existe uma sequência atroz de destruição, sim, do espaço físico e dos objectos que ele encerra. Existem mortos. Mas Tétis tentou que Aquiles se tornasse imortal precisamente mergulhando-o nas águas do Estige, um dos rios infernais.
A árvore e a mortandade que a acompanha – ou anuncia? Ou lhe abre caminho? Uma espécie de oráculo ou precursor, que traz um “baptismo de fogo” – faz uma escolha, e os humanos que sobrevivem, de ar derrotado, abandonado para trás a vida citadina, material que tinham, tornar-se-ão os seus acólitos e primeiros discípulos. Atente-se ainda à forma como estas duas páginas duplas seleccionadas mostram o modo como Kotobuki gere e direcciona, de modo rápido, o olhar do leitor em linhas horizontais, verticais e diagonais que, mais do que a instauração de um dinamismo próprio, vem reforçar essa ideia de um mergulho cabal da humanidade na prova da qual surgirá transfigurada, à sombra do jacarandá.
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