É natural que uma história curta procure estabelecer ritmos muito diversos daqueles que são permitidos por uma mais longa, sem com isto se querer precisar uma maior valorização de uma sobre a outra. Na cultura ocidental moderna, em termos literários, é o romance o modelo mais apreciado e defendido, mas nem isso corresponde a uma verdade histórica nem é algo que se tenha sempre verificado. A transposição destes géneros literários, em sentido restrito, para a banda desenhada, raramente funcionam, e o emprego de expressões como “novela gráfica” (já em si uma corruptela, e não tradução rigorosa, de “graphic novel”) as mais das vezes provoca uma percepção errónea. A extensão de um livro de banda desenhada, por comparação material, física, com um livro literário é sempre menor em relação, em primeiro lugar, ao número de eventos dispostos na diegese e, em segundo lugar, à natureza da abordagem desses mesmos eventos. Mais uma vez, não está em causa uma hierarquia de valores, já que ambos modos – literatura e banda desenhada – são incomparáveis entre si: somente elementos constituintes isolados. Dito isto, de que nos serve?
Quando passeamos numa livraria, folhear um qualquer livro ao acaso de pouco nos diz do seu interior e recorremos sempre a informações que lhe são externas: o nome conhecido do autor, a editora ou a colecção, o título que nos remete a algo, o texto na badana, uma opinião anteriormente lida ou ouvida. Todavia, há uma percepção entrelaçada em intuição que nos ajuda – mesmo não conhecendo o livro – a identificá-lo e diferenciá-lo em termos de género: romance, colecção de contos, novela, etc. Num livro de banda desenhada, isso nem sempre ocorre, e a sua dimensão material pode por vezes iludir-nos. Um volume, por mais espesso e completo que seja, de Krazy Kat jamais nos prometerá um “romance”; um livrinho tão pequeno como The Curious Sofa, de Gorey, não nos havia preparado para a condensação de relações que alberga; os clássicos franco-belgas (Hergé, Jacobs, Christin, Charlier) geram tramas densas num espaço físico menor, em menos páginas, do que autores norte-americanos em obras imensas (Kirby, Vaughan, Bendis, Jeff Smith, Craig Thompson). É a leitura efectiva que nos permite o entendimento do seu ritmo e, consequentemente, do género exacto.
Como é sabido, no que diz respeito à narratologia, o ritmo é a relação do “tempo da fábula” com o “tempo da história”. O primeiro diz respeito à cronologia, ao avançar (aparentemente) natural e uno do tempo, mensurável em unidades (segundos, anos, milénios,...), sobre cujo eixo os eventos da fábula (os eventos, interrelacionados causalmente) se organizam. O segundo é antes o tempo ou a velocidade que leva a apresentar esses mesmos eventos na superfície do texto, o que é mensurável pelas unidades do material específico do meio empregue. No nossa caso, poderemos falar das vinhetas como essas unidades, sem bem que possa tornar-se mais complexo.
Shortcomings é um livro que colige uma história que havia sido apresentada tal qual na série de Adrian Tomine, Optic Nerve, números 9 a 11, logo uma história composta por três episódios separados materialmente. Tomine trabalhara até então sobretudo em narrativas curtas, e este é o primeiro exercício numa história mais estendida, em termos materiais. O tema é o de sempre, em Tomine: as relações humanas. E a inexorável verdade de que jamais poderemos nutrir amores perfeitos por outras pessoas se acreditarmos que o amor perfeito significa relacionarmo-nos com algo menos do que uma pessoa, isto é, alguém sem a liberdade de ser, acima de tudo, humana, logo, com todas as contradições e flutuações que nos são inerentes. E são precisamente essas contradições e flutuações (de humores, vontades, desejos, disponibilidades, ânimos) que estão no centro de Shortcomings. Apesar das atenções estarem sobre o protagonista, Ben Tanaka, e apenas em breves momentos se nos permitir focar na sua namorada, Miko, não é isto suficiente para que acabemos por nos aproximarmos de Ben – naquele movimento a que usualmente se dá o nome de “identificação”. Isso não é possível porque a gestão que Tomine faz das informações que nos chegam acabam por tornar frágil a personalidade de Ben. O que não sabemos de Miko reforça-a enquanto pessoa, e quanto mais defeitos vemos acumulados em relação a Ben, mais o fiel passa a fazer-nos compreender o afastamento progressivo de Miko. E, como Tomine pretende eliminar a estratégia do narrador dirigir-se-nos directamente, desvelando de chofre o que poderemos descobrir em contexto e sob o domínio da acção, Ben tem sempre uma confidente, a lésbica coreana-americana Alice Kim. Estas duas informações sobre a deuteragonista não são gratuitas, mas sim fulcrais para dar a entender um ou vários dos outros territórios complexíssimos em jogo no livro, a saber, os problemas inerentes às segundas gerações de imigrantes de comunidades ditas “menores” num país cuja heterogeneidade se apresenta como mítica e inabalável por todos os canais (neste campo, podemos recordar os livros de Kim e de Luen Yang), o peso do exercício de poder (social, político, etc.) que se perfaz através da sexualidade, os modos como as amizades por vezes ultrapassam todos os inertes preconceitos adjacentes às várias “tribos”, e como toda a educação e abertura do mundo pode entrar numa brutal derrocada quando o amor dilui as defesas.
Importa-me, no entanto, destacar o modo como não obstante estarmos perante um livro com cerca de 100 páginas, termos em Shortcomings uma construção que segue o ritmo, ou a velocidade própria de uma história curta, a que Tomine nos habituou. Vejamos dois exemplos que talvez nos exponham o modo como esse ritmo é construído. Já vimos o que o ritmo é, uma relação, mas não explicitámos que esse ritmo pode ser variado, ora acelerando-se ora diminuindo a representação dos acontecimentos. Os dois pólos são ocupados pela elipse – não se representa o tempo, ainda que nos apercebamos ter havido um “salto” – e a pausa – há uma qualquer representação, mas não um avanço cronológico da acção. A banda desenhada é obrigatoriamente uma arte cuja estrutura de base implica a elipse. Uma vez que temos várias imagens, colocadas em sequência, há como que um intervalo invisível. Não concordo com Scott McCloud quando este diz ser aí, nesse intervalo (a que ele chama “gutter”), que se dá o aspecto mais importante desta arte, e muito menos creio na existência de uma “terceira imagem” existente nesse espaço virtual. O que se passa é bem mais subtil, a meu ver, e complexo, a que tentativamente dou o nome de “Ponto Nulo”, já debatido noutros lugares, mas cuja discussão suspendo mais uma vez. Em todo o caso, todos concordaremos que há um “salto”, algo que “não se dá a ver”.
Além dessa elipse, digamos, estrutural da banda desenhada, há a elipse de natureza literária: há um salto no tempo, e apercebemo-nos que foram ocultados determinados eventos, não representados, e que podem ser de interesse nulo - o que Ben comeu ao pequeno-almoço? - como de um interesse absoluto - o que é que Ben respondeu à última frase de Miko – a rapariga com um sinal no queixo - nesta página? Não saberemos, apenas nos contentamos com a reacção de Alice – a rapariga de óculos – a essa frase. Mais, esta estratégia de saltos entre o que se passa entre Miko e Ben e a “terapia” deste com Alice é repetida em mais que uma instância. Existem ainda as elipses visuais, contíguas à natureza fragmentária na representação dos corpos na banda desenhada, que podem assumir um menor ou maior grau de efeito dramático, como o caso do rosto de Ben, literalmente cortado ao meio, como se já estivesse “posto do lado de fora” da vida de Miko, empurrado para a sua periferia – ela não precisa da opinião ou conselho dele.
Mas um outro modo de elaborar essa elipse é fazer uma representação “descentrada”. Estoutra página fixa-se no carro de Ben parado no estacionamento, enquanto ele acompanha Miko ao aeroporto, de onde parte para Nova Iorque – e, compreenderemos, para longe de Ben em todos os aspectos – e retorna. Cinco vinhetas absolutamente iguais, excepto outras duas, uma com ambas as personagens a se afastarem, outra com Ben a voltar. Mas a acção, a última discussão em Berkeley, o adeus quase-definitivo (cujos pormenores ser-nos-ão posteriormente ofertados) está fora do nosso alcance: como se nos tivéssemos tornados prisioneiros daquele espaço e o narrador (há sempre um narrador em meios visuais, que se confunde com a focalização), egoísta, não nos permite estar onde sabemos se centrarem os eventos.
São apenas duas estratégias, mais ou menos idênticas a outras empregues no livro. Em todo o caso, são estes mecanismos aparentemente simples de, num curto momento do texto, acelerar e desacelerar o ritmo dos eventos que leva a que o cômputo geral seja o de um apertado núcleo de acontecimentos e relações, e que podemos qualificar de “curto”. Mas um curto relato apenas nessa abordagem de género, superficial, que não esconde a amplitude e profundidade com que Tomine elabora este pequeno tecido humano. Podemos ser levados a crer que o nível de realismo é mantido pelo tipo de diálogos, de representação, mas na verdade isso apenas se deve por o autor combinar de uma maneira excelente os elementos que compõem essa ilusão de realidade e as ferramentas mais agudas que a ocultam.
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