O trabalho ininterrupto de José Carlos Fernandes, o seu esforço contínuo em lançar novas linhas (ou séries) de narrativas, que se podem ou não cruzar – na nossa imaginação, deformamos as coisas para que se cruzem -, a sua peculiar maneira de elaborar com precisão os ditos “universos” de cada livro não o fazem merecer a preguiça mental da maioria dos textos que dão notícia da sua obra. Continuamente, também, surgem apenas as ideias agora feitas em torno do trabalho de José Carlos Fernandes, como blocos obrigatórios de passagem para a feitura de um artigo sobre ele e os seus livros, que se passa por “crítico”, o artigo, mas que revelam da mais pura cegueira da individualidade de cada um dos momentos da sua obra, das especificidades de cada trabalho, de cada ritmo de respiração, desembocando portanto nessa preguiça a que me referi, que pouco surpreende, pela falta de treino de visões amplas e ponderações acabadas da parte de quem os escreve.
Essas ideias-feitas são, por exemplo, a da “imensa cultura” do autor, quando não se nota que essa “cultura” é apenas um forma exacerbada, explodida, absurda e por isso cómica da citação caótica e impertinente, acabando precisamente por servir como crítica contundente das ilusões que essa “cultura” implica. Fala-se da sua qualidade “literária” como se fosse um ingrediente mensurável e concreto, passível de ter sempre uma mesma valia entre autores diferentes e entre contextos diferentes, e pouco se explora o progressivo afastamento de José Carlos Fernandes de uma certa poeticidade paradoxalmente serôdia e adolescente, e adomingada, dos seus primeiros trabalhos, na direcção de uma pesquisa por uma cada vez maior concretude e acuidade das suas descrições, inclusive dos mecanismos emocionais das suas personagens. Outra é de se tratar por “soberbo” o seu trabalho gráfico, quando a força reside num intervalo desse mesmo trabalho, já que não é o virtuosismo nem a beleza “desinteressada e livre” o seu território de cultivo. Outra é a de salientar a sua “imaginação”, açaimando esta faculdade humana como simples repositório de fantasias e não como poderoso instrumento de formação de imagens, que se pode e deve exercer sobre todas as direcções e matérias do mundo. Mas a imaginação de José Carlos Fernandes leva-o a pegar num comportamento humano natural, verificado, e levá-lo, talvez não necessariamente às últimas, mas a avançadas consequências, uma sua hipérbole, o que desperta o seu lado ridículo, absurdo ou até mesmo trágico (se bem que o trágico, em Fernandes, seja as mais das vezes risível): há sempre um avô a quem lhe doem os joelhos, prevendo-se a chuva; JFC leva a que a personagem sinta com a dor desse mesmo joelho a mais precisa intensidade e direcção do vento, a medida da chuva, a ondulação certeira nas costas, a temperatura correcta. É preciso, antes do mais, ler os livros de José Carlos Fernandes, e não manter-se apenas atrás das linhas das barricadas dos “fãs”, que colocam a sua capacidade de juízo e discernimento em descanso, e abrem os seus peitos para quaisquer aceitações.
José Carlos Fernandes é um autor de personalidade autoral forte (enquanto pessoa, terá o direito à privacidade, naturalmente, e não é papel do crítico imiscuir-se na sua esfera íntima), cujas características anfractuosas marcam cada um dos trabalhos, e notar-se-ão as suas forças de modo desigual, aqui mais vincadas, ali mais diluídas por um outro programa. Haverá, em termos pessoais, um método de entrega a cada um dos trabalhos, que o autor seguramente asseverará ser idêntico, profissional, contumaz na sua execução. Mas é da(s) obra(s) em si que desprende a flutuação dessas características e forças que habitam no autor e se vão expressando. Porque flutuam. Não há, em José Carlos Fernandes, uma constante.
O que está escrito nas estrelas. Anos I & II parece-me ser um desses exercícios que se colocará no mesmo círculo que a Última Obra-Prima de Aaron Slobodj ou as personagens “cabeçudas” (v. Quadrado Vol. 3, no. 3). Exercício, como tudo o que essa palavra tem de transitório e de aproximativo e de intervalar. Não se trata de um gesto acabado, rotundo, mas antes de uma forma de respirar mais calma a que José Carlos Fernandes se permite no meio da sua profusa tarefa.
De que trata este livro? De uma inversão, ou de um retorno, ou de um fortalecimento.
A astrologia, de acordo com Walter Benjamin e, antes dele, Aby Warburg, é uma das formas sobreviventes de “atitudes cognitivas humanas primitivas”, um resquício de uma mundividência que era habitada por sombras muitas, rotundas e com uma presença mais marcada no mundo, que entretanto se dissipariam com o advento da dita iluminação da razão e da ciência, e do seu músculo positivista. Esse último autor, porém, notava nela uma dialéctica, um equilíbrio entre a “fantasia concreta” e a “abstracção matemática”, isto é, não apenas a parte que desenhou figuras monstruosas (“que mostram”) nos céus mas também aquele que previa, com precisão, e à distância, os mecanismos dos fenómenos celestes. Apenas mais tarde se faria uma progressiva separação entre essas partes constituintes, dando uma origem à astronomia e às ciências correlatadas, e a outra a esse exercício cada vez mais generalista – mas não mítica, precisamente porque se desligou totalmente dos mitos que lhe deram origem, e sem essas histórias originárias, não entendemos a trama, apenas os fragmentos e restos - e que hoje se reveste numa sua forma redutora e caricata nos horóscopos de jornal, um coluna de cinco linhas para mil ou mais cidadãos diferentes. E as fracas e incontroláveis correspondências (cada signo com sua parte do corpo, e pedra preciosa, e dia da semana, e santo Católico, e flor, e cor, e tipo de carro, e tipo de chá, e marca de champô) que esta astrologia por atacado serve apenas desagrega o mínimo poder que ela poderia ainda assumir nesta era que ainda pensa ser possível esgotar todo o saber.
Por isso é curioso que neste livro, nos textos apócrifos que o acompanham, se indique que este horóscopo seja de um “assombroso rigor científico” (o oximoro não é inocente) e se fale de um apoio, para além do mágico, científico (o telescópio Hubble e o CNRS). Ou melhor, não é curioso, é revelador. Revelador, pois as ciências atingiram um limite nos nossos dias que as remete a um discurso abstracto, hermético, quase oculto: as escalas femtométricas diluem-se numa impensável Lilipute, as p-branas parecem pertencer aos contos de Hofmannsthal, as possibilidades da biotecnologia às bancadas de Hefesto, a implicate order de Bohm aos desígnios de Zeus, os comportamentos dos buracos negros a mistérios antigos...
E, então, como reequilíbrio dessa questão, O que está escrito nas estrelas propõe um retorno da astrologia a essa concretude antiga e absoluta: mas tão abusada que se torna portanto totalitária, tão exacta e determinista, que atinge uma natureza ridícula mesmo. É essa a sua Ideia.
As personagens não têm espaço para a fuga, o determinismo é-lhes sufocante, se não mesmo violento. Para as pequeníssimas histórias que José Carlos Fernandes instaura para cada mês destes dois anos previstos, o autor aproveita contos populares, conselhos típicos da publicidade, sonhos demasiado literais, cenas do quotidiano (a história de Abril do Ano II atinge uma crueldade perfeita, por ser, já, verdadeira) para as encerrar, às personagens a quem cabe esse destino, numa morte prometida. E é por isso que elas caem... Quase todas as personagens estão em queda neste livro. Ou literalmente, ou em quedas invertidas, ou em pequenos desvios e tormentos, ou encontram-se em espaços intervalares, praias, desertos, ou num combate e diálogo com uma criatura que lhes promete algo que não cumprem porque lhes é interrompida a promessa, ou deparando-se com criaturas fantásticas ou menos fantásticas mas que assumem um papel fantástico.
José Carlos Fernandes não é propriamente um virtuoso do desenho, um artista-artesão que domine toda uma série de mecanismos precisos da arte da representação através das formas. Este livro, em todo o caso, reporta-se a uma fase anterior da sua carreira mais contemporânea. Lenta, graciosa e felizmente, José Carlos Fernandes tem a oportunidade de ver sair da gaveta toda uma série de projectos que aí residiam até agora, e os seus “projectos na gaveta” ganham com a fórmula de Horácio, pois atingem um direito de cidadania não apenas sustentável como garantido. Todavia, não devem entender estas palavras como uma espécie de denegrir do seu trabalho. Bem pelo contrário, encontram-se nestas unidades narrativas singulares (desenho e pequeno texto que informa ou dá nova forma ao desenho) o mesmo princípio que nalgumas das obras de Blake, outro autor de quem, sendo menor a capacidade artística (enquanto disciplina regrada por princípios estanques) do que a poética, compensava com esta força, nos poemas, aquela fraqueza, dos desenhos. Também José Carlos Fernandes é um artista a pleno direito por infundir nos desenhos uma força que provém da sua Ideia, construída pela presença dos textos, singulares, e toda a estrutura do livro, enquanto texto maior.
Nota: são muitos os blogs e sites, inclusive os da editora, onde encontrarão imagens do interior do livro, a eles vos remetendo e por eles justificando a ausência de imagens neste post.
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