Pequena nota introdutória: quando se entra em qualquer loja de banda desenhada – ou livraria com secção dedicada a ela – em Espanha, apetece dizer “hay de todo!”. A edição em Espanha atravessa uma crise idêntica à de muitos outros países, quer no que diz respeito a originais nacionais quer às traduções (dos Estados Unidos, do eixo França-Bélgica, mas de outros locais também), mas em comparação com o que nos é possível, é muito. Não é com inveja que observo as prateleiras no país vizinho, mas com pesar de não poder aceder a elas mais vezes. Mas delas darei conta em alguns dos próximos posts, com publicações espanholas. Numa coordenação editorial, a Planeta DeAgostini publica num mesmo intervalo de tempo a série OMAC (numa publicação a preto e branco, de papel de jornal e muito barata, que recordará uma versão "gibi" do formato Showcase Presents, da DC), um original de Jack Kirby de 1974, a série do mesmo personagem por John Byrne, de 1991, e a mais recente Omac Project. Falaremos aqui sobretudo da primeira.
Uma sinopse das linhas gerais tornará mais claras as notas que se seguem. Esta série desenrola-se num hipotético futuro próximo, em que existem grandes diferenças em termos de tecnologia e cultura, mas que se adivinham desde logo no presente. Existe uma Agência Global da Paz (uma super-ONU) que, preocupada com a subida do crime e da sua natureza, desencadeia um processo ultra-tecnológico na criação de um supersoldado (ecos do Capitão América e Superhomem), o O.M.A.C., “One Man Army Corps”. Os agentes, homens e mulheres, desta agência usam máscaras de “aerossol cosmético” para que não sejam reconhecidos e até para que sejam apenas vistos enquanto agentes globais, e não identificados com qualquer nação em particular (uma variação do véu que cobre o rosto da justiça). O homem que escolhem para ser alterado, via “cirurgia electrónica” por um satélite robotizado, o Brother Eye (corruptela benfazeja de Orwell?) é um fracote chamado Buddy Blank, sublinhando a pouca importância da sua personalidade antes de se vir a tornar OMAC (pois acaba amnésico da sua existência anterior com a transformação) e mesmo depois (mal termina uma missão, tem de se lançar numa outra, e jamais revela quaisquer traços de ser humano, apesar da patética tentativa de lhe obter uma “família”). Para além de toda uma série de estratégias que Kirby reutiliza, requenta, de experiências anteriores, OMAC parece mergulhar numa espécie de angústia sobre as potencialidades do futuro que abarca a própria criação do autor. OMAC é o seu título onde a desumanização de todas as personagens, inclusive a do herói, é uma constante. Neste futuro, é possível fazer colheitas de corpos jovens para colocarmos os nossos cérebros, existem salas de violência como forma de terapia rápida, formas de entretenimento de uma extrema crueldade e ilusão de realidade, pessoas que são torturadas e tornadas em monstros por deverem dinheiro a máfias multinacionais...
No fundo, Kirby faz ainda parte – e aqui revela-se como tal abertamente - da longa tradição do romantismo que desconfia do avanço tecno-científico, e até mesmo – pela própria natureza das ficções que propõem – apresenta laivos antiracionais. De acordo com Matei Calinescu (As cinco faces da Modernidade), há um entendimento desenvolvido nas últimas décadas do século XIX e nos inícios do XX, mas que se prolongaria (até hoje, poderíamos acrescentar), de que “um alto grau de desenvolvimento tecnológico surge perfeitamente compatível com um sentido agudo de decadência” (esta entendida como o não alcance do tão prometido progresso existencial e conforto moral.
O desencantamento e desumanização que está presente em OMAC, e até mesmo o facto de que não há tempo nem espaço para criar uma verdadeira personalidade do herói – a série apenas durou oito números, mas o próprio ritmo das aventuras impele-o de uma missão para a próxima, cada vez mais perigosas até à sua aparente destruição; e, aliás, muitas vezes a lógica interna das histórias sofre com isso, com acções inexplicadas, um abuso ao recurso a deux ex machina, pontas perdidas... não estamos perante a melhor "escrita" de Kirby – poderá levar-nos a pensar que se trata de uma espécie de mágoa de Kirby expressa pela ficção: afinal de contas, ele mesmo é também “blank” na medida em que tem é de criar o mais depressa possível trabalhos para uma agência sem rosto – a forma como foi tratado na Marvel espelha isso. A mohawk que OMAC leva espelha claramente os estilos de penteados que surgiram nessa altura associados ao punk, e apenas posso imaginar que Kirby, tendo nascido em bairros pobres e violentos de Nova Iorque mas sendo um homem de provecta idade, veria nesses sinais de moda algo dúbio entre a expressão pessoal e uma cultura que lhe escapava. Tudo isso aliado leva-o a criar mais um outro título apocalíptico. Lembremo-nos de que pouco tempo antes, também na DC, havia criado Kamandi, The Last Boy on Earth. Mas se nessoutro título o apocalipse já se havia dado e o que observamos nele é a esperança da sobrevivência, em OMAC vemos o desespero do fim dos tempos e a tentativa de impedir essa derrocada. Porém, essa tentativa é gorada por vários aspectos: em primeiro lugar, por a própria série ter chegado ao fim num momento de fraqueza máxima do herói (retornado à forma de Buddy Blank); em segundo lugar, por mais tarde se fazer uma associação de OMAC a Kamandi, em que o primeiro seria o avô do segundo, compreendendo dessa forma que o mundo de OMAC chegaria a um fim irreversível e que ele não evitou; em terceiro lugar, porque mesmo este outro gesto de Kirby em lançar raízes de organização ficcional do universo apenas levou – ou será esse um elemento intrínseco deste género de banda desenhada? – a maiores e maiores níveis de destruição no seu interior.
É curioso, portanto, que a ressurreição deste conceito, mesmo com as alterações necessárias, no mais recente OMAC Project, que por sua vez faz parte da estratégia narrativo-comercial a longo prazo das “Crises” (uma forma de restabelecer os parâmetros de organização interna dos seus Universos, com repercussões não apenas a nível criativo mas igualmente económicas, obviamente), tenha a ver com mais uma variação da tecnologia independentizada do homem, do seu criador (Batman, neste caso) e que, sem a avaliação moral subjectiva, implementa políticas lógicas, sem quaisquer falhas, mas que significam obrigatoriamente morte e aniquilação. As paradas são cada vez mais altas nestas ficções de super-heróis, por isso sobem igualmente as escalas dos conflitos, as repercussões no interior dos seus universos: a maravilha está em entender como é que esses mundos ficcionais aguentam um estado de permanente catastrofização. No artigo sobre o livro de Evanier, disse que Kirby era Profeta, Rei e Arauto. É deste último papel que OMAC faz parte, como primeira tocha lançada no interior da fortaleza, que ele próprio havia erguido. Isto não constitui um paradoxo, mas sim a intrínseca condição das
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