Este é o primeiro volume de três, que visa apresentar-se como a primeira edição totalmente integral, em estreia mundial, desta famosa/desconhecida série de Jack Kirby e seus colaboradores. Uma vez que incluirá as páginas de Domingo a cores (o que é, de facto, inédito), torna-se, portanto, uma substancial melhoria em relação à edição mais completa anterior, da Pure Imagination (2000). É uma excelente edição, que ainda conta com introduções variadas, material extra que tanto revela do contexto da sua época, como dos processos de trabalho, curiosidades da sua publicidade, ou da vida e arte de Kirby e Wood, etc. (por comparação, ainda torna mais interessante e forte o trabalho de Manuel Caldas, fora de uma instituição editorial convencional).
O título deve ser lido e traduzido como “Sky Masters da Força Espacial”, já que indica o nome do protagonista, a alcunha pela qual é conhecido nessa agência, mas cuja ressonância mitógrafa é claríssima (tal como outras personagens, jogando com o significado dos nomes, quer por antonomásia ou metonímia: Flash Gordon, Dickie Dare, Dan Dare, Steve Canyon, Modesty Blaise, Odd Bodkins, Johnny Galaxy, Jonny Quest). Em Portugal era conhecida somente como “Sky Masters”, aquando da sua publicação - grande parte dela - na colecção Espaço (do Mundo de Aventuras, publicado pela Agência Portuguesa de Revistas): começando no número 6, de 1961, foi publicado o primeiro “episódio”, completo, intitulado em português “Os fantasmas do éter”. Seguir-se-iam, nesta mesma colecção, no 13º “Traição no Espaço”, 18º “Planos de Mayday”, 23º “Perdidos na selva”, 27º “Bólides humanos”, e no 32º “A estação do espaço”. (mais tarde seriam reeditadas na nova edição da revista, com capas da série televisiva Espaço 1999 [poderão confirmar estes dados na excelente base de dados da BD Portugal, apesar de eu ter acesso às próprias publicações em si]). Tendo estas revistas o formato do “gibi” brasileiro, muitas das vinhetas foram reenquadradas, cortadas, manipuladas, enfim, mutiladas de uma forma ou outra. O formato das tiras é totalmente perdido para que haja uma ilusão de haver uma construção em página. Não servem estes comentários como moral retroactiva sobre a ética de trabalho desse tempo, seguramente pautada por princípios ligeiramente diferentes daqueles que nos movem contemporaneamente, mas se se dão essas alterações empobrecedoras, por outro lado foi um modo de divulgação. Tome-se com sal. Os nomes dos autores não são destacados em parte alguma, mas como as assinaturas são visíveis, estamos em crer que seria possível concluir-se a quem pertenceria o trabalho. Não deixam esses objectos da colecção Espaço de serem passíveis de curiosidade, nostalgia, coleccionismo, seguramente, mas esta edição espanhola vem permitir uma glória e estado prístino à série inédito (pois nem a primeira edição no jornal permitira observar certos detalhes das linhas - no entanto, as imagens que aqui coloco são de digitalizações dos originais, encontrados na internet onde são vendidos a coleccionadores abastados).
Trabalhando no interior de todas as convenções da sua época em termos de ritmo da história, de distribuição de caracteres, de tipos de resolução, Kirby avança com algumas estratégias visuais inéditas, como a sua predilecção pelo escorço (aqui, ainda não totalmente liberta como o estaria na Marvel dos anos 60, na era Stan Lee), uma vincada representação das tipologias dos corpos, a curiosa “falta de gravidade” e orientação dos objectos quando no espaço, imitando as condições reais dessa presença espacial, e, para mais, uma quantidade esparsa mas judiciosamente empregue de vinhetas “silenciosas” que marcam momentos de uma intensidade particular, de uma indizível emoção, tornando a ideia de “space opera” mais premente, sem dúvida, mas com razão... O trabalho de Wood é analisado na introdução e a inclusão de vinhetas mostrando as várias fases do seu trabalho de tintas e sombras é muito eloquente e esclarecedor.
Esclarecedores são também todos os textos que se incluem e se prometem incluir nesta edição. A conturbada história por detrás das condições de produção de Sky Masters será contada no segundo volume, mas aquilo que lemos já no livro de Evanier é o suficiente para nos apercebermos que nem todos os dados são definitivos – existem detalhes contraditórios entre as duas versões – mas que foi peculiarmente doloroso para Kirby. O que, apesar de tangencial em termos de análise textual, aumenta a apreciação impressionista da qualidade deste trabalho, arrancado nessas condições.
Ainda de acordo com uma das introduções, que apresenta um contexto histórico, político e cultural, de Álvaro Pons, Sky Masters of the Space Force não pode ser somente visto como mais um exemplo ou variação da ficção científica (que beberia imediatamente do Flash Gordon de Raymond), mas antes uma torção original desse género, “que abandona a fantasia para entrar nos caminhos da tecnologia e da política-ficção, numa pura aventura ancorada na realidade”. A quantidade e amplitude de informação real e disponível utilizada para a execução das histórias e imagens explicitam de uma forma cabal esse ancoramento, e a ausência do maravilhoso garantido por extra-terrestres, invasores espaciais, etc. A tensão criada pelos episódios prende-se com aspectos que, não sendo reais (ainda, alguns deles, na altura), eram pelo menos previsíveis, expectáveis e credíveis na visão científica da sua época.
Apesar da série ter sido publicada seguidamente, sem quaisquer interrupções ou mudanças, foram identificados vários “episódios”, nesta edição baptizados pelos nomes conhecidos. Além da óbvia centralização e segregação desses episódios uns dos outros, é importante notar como cada um deles parece beber de um tom ou estilo diverso, ainda que sempre subordinado ao tema geral da conquista espacial e dos sacrifícios necessários: o terror em “First Man in Space”, a intriga político-religiosa em “Sabotage”, a comédia/drama amoroso em “Mayday Shannon”, um cruzamento muito estranho entre o fantástico e o policial com “Alfie”... No que diz respeito a Kirby, nada de surpreendente, dado todo o trabalho que ele já vinha desenvolvendo, quer nas variadíssimas tiras de jornal, quer nos comics de acção ou românticos. Mas o mesmo também poderia ser dito de Wood, em termos da dimensão visual, que já arrecadara grande fama nos seus trabalho para a EC Comics.
Nesse sentido, Sky Masters of the Space Force abriu caminho ao trabalho de muitos outros autores e séries que se seguiriam, de uma ficção científica informada de facto com os patamares da ciência do seu tempo, e cujo maior representante actual (na banda desenhada) é, penso, Warren Ellis, especialmente com Orbiter e Ministry of Space. Há uma cena num dos episódios de The Authority, de Ellis et al., em que a personagem Engineer voa até à Lua pela primeira vez. Enquanto se aproxima, diz: “Este é um lugar estranho que vi na televisão, onde parámos de vir antes de começar a ler. Porque é que parámos de vir a uma coisa tão bonita como esta?” essa espécie de maravilha, de nota romântica de esperança, não se coaduna com o nosso tempo, por toda uma série de razões, as primeiras das quais económicas. Mas é esse tipo de atitude de olhos esgazeados e boca escancarada num sorriso de surpresa que perpassa por toda a série de Kirby e Wood, criada no preciso momento em que a “corrida ao espaço” começava a ganhar alento nos Estados Unidos. Toda a construção e informação científica está lá, mas é como se pertencesse a um cenário cuja função fosse destacar a atitude positiva dos homens envolvidos nessas missões. Kennedy disse que a corrida à Lua deveria ser feita não porque era fácil, mas porque era difícil. Kirby, apesar dos factores da ficção, não torna as dificuldades menores, mas mostra a facilidade com que mostrava esse fascínio.
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