Those crazy japanese. 1 de 3. Introdução: Mais do que uma mera generalização na fronteira do racismo e da incompreensão, a frase feita “those crazy japanese”, repetida inúmeras vezes nos mais diversos contextos (experimentem no Google para o confirmar), aponta para um reconhecimento, também ele generalizado, de que a cultura japonesa tem toda uma série de características, algumas históricas e outras mais recentes, que os torna ligeiramente afastados da esmagadora dos princípios que pautam a fabricação cultural, a moralidade, as formas de trabalhar a contemporaneidade de outras sociedades a um mesmo nível de comparação civilizacional, tecnológica ou política. As razões dessa especificidade, que a distancia a um grau considerável da vizinha e mais conservadora Coreia do Sul ou da milenar e ainda feudal China, são incrivelmente complexas, e é a especialistas e teses de doutoramento que competirá o seu escrutínio exacto. Quanto a mim, prefiro seguir as lições de Ian Buruma (por exemplo, Inventing Japan ou A Japanese Mirror) e encontrar pelo menos uma forma de entender essas características, que tanto nos podem encantar com a exploração da cultura pela convergência multímoda de Mizoguchi ou os pequenos dramas familiares de Ozu, como nos podem sobressaltar ou enfastiar ao sermos expostos a toda a cultura hentai, ero-guro, cosplay, aos filmes de bukkake, aos concursos de televisão, etc. & tal.
Os três pequenos livros de que darei breve relação aqui mostram algumas das facetas dessa estranha imagem que nos é dada “para fora”, se bem que esse “fora” deva ser relativizado. Não é apenas o Ocidente, mas o restante mundo, tendo em conta que o mesmo fascínio pela cultura contemporânea e popular japonesa é exercida sobre países como a Tailândia e a Coreia do Sul, ambos havendo sofrido uma ocupação japonesa na Segunda Grande Guerra que não deixou muitas saudades às gerações mais velhas (e que leva à incompreensão face ao fascínio dos mais jovens). Por outro lado, mesmo no seio do Japão, estas manifestações culturais estão à margem do que é mais visível, naturalmente; ainda que seja um grosso fluxo, é lateral, e não corre sob as pontes principais.
Presumo que Le Lézard Noir seja uma pequena editora francesa com contactos privilegiados com o Japão, aliás, com uma cena muito particular da banda desenhada japonesa, pelo que se depreende do seu catálogo, particularmente devotado à edição da obra do campeão e mestre do ero-guro (isto é, o cruzamento do erotismo com o horror mais visceral), Suehiro Maruo, e autores menos famosos, mas não por isso menos de entranhas à mostra, literal e figurativamente, como Daisuke Ichiba, ou Romain Slocombe, autor francês de banda desenhada associado à Humanoïdes Associés e à Futuropolis desde fins da década 70 e inícios da de 80, e que se têm dedicado também à fotografia, com modos de ver e dar a ver que estão muito próximos do imaginário japonês dos fetiches extremos (Nobuyoshi Araki poderia ser uma referência, mas Slocombe segue linhas mais duras, próximas de um underground ou mesmo da indústria do fetiche, que nada têm a ver com a busca de uma beleza relativamente consensual).
No seio do seu catálogo, existem estes dois livros que apresentam e discutem o trabalho artístico de Makoto Aida (nascido em 1965) e de Akino Kondoh (nascida em 1980). Ambos são artistas que se expressam pelas mais diversas linguagens, algumas delas transdisciplinares, desde a pintura à instalação, do objecto-de-arte ao vídeo, mas o que nos importa mais, e à editora, é que também o fazem através da banda desenhada. Isto é, a banda desenhada não aparece como pecadilho da juventude, nem complemento, mas como uma outra dimensão do trabalho dos artistas.
**No caso de Makoto Aida, este artista prefere chamar as coisas pelos nomes, por isso diz “arte” em relação à sua pintura, etc., e “mangá” em relação à banda desenhada. Mas não fará parte do mesmo movimento, gesto, respiração? É visível que as técnicas e abordagem diferem de um território a outro, mas essa é mais uma questão da estratégia particular de Aida do que uma obrigatoriedade intrínseca das linguagens empregues. Se derem uma vista neste vídeo, uma pequena reportagem (em japonês) sobre Makoto Aida, encontrarão alguns dos seus trabalhos discutidos no presente livro, além de o ver a ele em acção. Todavia, não é clara a razão dessa distinção líquida da parte do autor, já que se aprende que este livro fazia parte de uma exposição intitulada War Picture Returns, de 1996, que consistia numa série de pinturas em biombos, imagens que de uma forma ou outra recordavam os conflitos nos quais o Japão esteve envolvido. Pode-se considerar que esta edição francesa é nova, uma vez que é a primeira edição a cores e em forma de livro.
Quer este livro quer o de Kondoh têm duas capas, entrando-se pela capa à ocidental, que mostra uma pequena selecção do trabalho mais propriamente artístico dos autores, discutindo-se o seu contexto, forças, etc., ou pela capa à Japão, acedendo-se à história de banda desenhada. O trabalho de Aida mistura toda uma série de referências, desde as mais comerciais e chãs às mais históricas e políticas, resultando numa mescla que nem sempre é fácil de entender, por mais “pop” que nos pareça. O autor do estudo chega mesmo a citar a filosofia por detrás do tristemente famigerado movimento Aum Shinrikyo, que chegou a utilizar a banda desenhada como veículo de publicidade das suas ideias, território do qual muitos dos temas mais clássicos eram integrados nos princípios religiosos (o que não é muito diferente da Cientologia, por exemplo, ou, se pensarmos bem, de nenhum religião). É óbvio que o objectivo de Aida não é um mero efeito de choque, nem o de doutrinação, mas o de, através de uma junção inesperada ou mesmo violentamente crua, sublinhar os exageros que haviam sido perpetrados por aqueles que exerciam o poder de não o fazer.
E é aí que surge Mutant Hanako, a história de banda desenhada. O desenho rude, bera, de qualidade amadora e sem qualquer filtro de regras, é de Aida, mas a história foi criada por um especialista de mangá fantástica sobre as notas do autor. Trata-se, muito simplesmente, da história de uma jovem de doze anos, Hanako, que é eleita pelo Imperador para salvar o Japão das terríveis agressões dos americanos... Esta é uma obra revisionista, como é óbvio, mas o revisionismo e o exagero é de tal ordem que todo o ridículo está sempre presente ao longo da história, e esse ridículo é repartido em igual medida a todos. O Imperador aparece como uma criatura quase angélica, um homem normal apenas preocupado com os seus súbditos, o General MacArthur surge como um terrível demónio verde, de cornos, irascível e cruel, e com uma apetência particular por rapariguinhas impúberes (como Hanako), e o presidente Roosevelt ainda está vivo (Truman é um “fantoche”, diz ele) mas é um pénis mutante enorme (sim, a imagem que vêem aqui é uma espécie de dragão de várias cabeças de pénis, e é Roosevelt na sua forma verdadeira e mais poderosa)... Poderíamos continuar com detalhes, todos eles mais espatafúrdios, incongruentes, ilógicos, brutais do que os anteriores – como o combate entre Hanako e MacArthur em que cada um utiliza alimentos dos respectivos países, os “venenosos” dos Americanos (Coca-Cola, bifes cheios de colesterol) e os “saudáveis” dos Japoneses (o benfazejo chá verde, a soja fermentada) – e, por isso mesmo, deliciosamente divertidos. Suehiro Maruo já havia apresentado uma fantasia em que MacArthur tinha sido derrotado, e decapitado pelos vencedores japoneses, mas se Maruo pretendia sublinhar os aspectos mais negros e virulentos do nacionalismo japonês (tão ridículo e perigoso como quaisquer nacionalismos), Aida pretende antes ridicularizá-los até à exaustão, mergulhando-o na hipérbole dos temas da cultura popular (monstros mutantes, super-poderes, desastres nucleares, milagres espirituais).
(continua aqui)
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