O primeiro facto que surpreende neste livro é não se perceber exactamente o medo da Moulinsart em que existam abordagens à personagem Tintin, ou à obra de Hergé, que escapem ao seu próprio imprimatur. Quando mais se anicham nessa posição, mais prazer surgirá nos “prevaricadores”... Aquilo que supostamente pertenceria à cultura, i.e., vivo, parece querer tornar-se o mais empedernido possível pelos tintinólatras. Um bezerro de poupa de ouro. Bezerro cujos acólitos levaram a De Ponent a retirar o livro do mercado no ano passado, quando da sua publicação. Mais um apócrifo a vender atrás do balcão.
Tintin y el Loto Rosa são dois livros num só objecto. Um dos livros é ao alto, e de que mostramos aqui a capa. Trata-se de uma série de textos organizados enquanto pequeníssimos episódios de uma novela, na qual um Tintin que sobrevive a Hergé tenta levar uma vida como bem pode, caído num quotidiano ao qual havia escapado graças às Aventuras, e finalmente vivendo a vida como jornalista, da mais sórdida espécie de jornalismo, a que vive de boatos e da vida das estrelas... Tintin encontra-se a bordo de um navio chamado Sherezade, acompanhando centenas de estrelas do cinema contemporâneo para a comemoração do centenário do cinema, numa viagem de Nova Iorque a Londres, na qual se urde um segredo há muito montado, e revelado no fim (curiosamente, sem grandes alaridos, tal qual a montanha pare um rato em As Jóias da Castafiore)... Não deve ser difícil adivinhar quem está por detrás desse plano “diabólico”.
Todavia, o mais importante nesta novela não será a sua trama principal, mas sim o modo como este novo Tintin leva a sua vida, amargurado, abandonado, longe de todos aqueles que haviam feito o círculo de companheirismo tão típico da banda desenhada que protagonizou, vergada aos constrangidos limites do género e do momento histórico a que pertenceu. Apenas diremos aqui que o “lótus rosa” tem a ver com Catherine Deneuve, com quem Tintin... contracena.
Já outras versões houve da personagem de Hergé bem mais politizadas – empregues num contexto ideológico mais vincado – ou bem mais pornográficas. Estes textos de Altarriba tentam alcançar um nível literário e de inteligência mais elaborados, mas não conquista um espaço particular surpreendente. É um exercício curioso, até divertido, informado no mythos de Tintin, mas pouco mais. Altarriba já havia feito outros livros com ou em torno de um punhado de autores espanhóis de banda desenhada ou ilustração que, por cumprirem os estreitos princípios do virtuosismo do género a que se entregam, e agregarem em seu torno um número suficiente de fãs acríticos, têm a vontade de conquistar os círculos das artes visuais mais debatidas, mas que acabam por se ficar por esses mesmos virtuosismos de satisfação pífia... Luís Royo é um deles, e Hernández Landazábal é outro. A pintura deste último surge a ilustrar as páginas de Tintin y el Loto Rosa à vez enquanto peças visuais que despertaram ou inflectiram a prosa de Altarriba ora como complementos da história que construiu.
O segundo livro, encadernado ao anterior, é ao comprido, e apresenta quatro textos separados de Altarriba, ilustrados sobretudo por uma série de pinturas de Ricardo Castells (autor do magnífico terceiro volume Lope de Aguirre, escrito por F. H. Cava, e da antologia de histórias curtas Araia), que mostram versões anti-linha-clara (carregadas de sombras de cor, com a própria cor desenhando os difusos contornos das personagens, uma espécie de Tenebrismo colorido e sangrento) de várias vinhetas dos Tintin de Hergé.
Depois de uma breve introdução, em que Altarriba como que explica este projecto na sua totalidade, querendo demonstrar como nem a imensa bibliografia académica, parodística ou derivada que passou nem aquela que virá poderá apagar a glória da personagem e do seu autor – no fundo, Altarriba confirma a sua posição enquanto idólatra de Hergé: “A pesar de tan pluridisciplinar recorrido, la poliédrica configuración del mundo de Tintín no queda ni muhco menos agotada” – passa a apresentar a primeira série que revela, em curtos textos de prosa, os segredos por revelar das personagens mais próximas de Tintin, os quais, soubesse-os, o surpreenderiam, chocariam, estranhariam. Estes são os únicos textos de tom literário desta parte.
Depois seguem-se como que três ensaios, um sobre a obra de Hergé em geral, a sua contextualização história e ideológica e estética, outro sobre “as máscaras de Tintin” e das restantes personagens, perseguindo-se alguns dos aspectos recorrentes nessa série de livros, e um outro ainda especificamente dedicado ao álbum mais discutido, As Jóias da Castafiore. Em todos estes textos, Altarriba segue caminhos que já haviam sido tentados anteriormente por outros escritores, investigadores ou alucinados. Não deixa de fazer surgir aqui e ali uma pequena nova ideia que poderia levar a um desenvolvimento interessante, a nível intelectual ou hermenêutico, mas não seguindo precisamente esse caminho académico, não atinge esse mesmo patamar de desenvolvimento. Depois de Lire Tintin. Les Bjoux Ravis (a sua tese de 1978, reeditada em 2007) de Benoît Peeters, ou de Tintin and the Secret of Literature (2006) de Tom McCarthy, ou do pequeno mas forte Tintin Schizo (2008) de Pierre Sterckx, qualquer abordagem desse tema deve muscular-se na certeza de novos trilhos, novas iluminações. Não é, no entanto, o caso presente.
Não obstante, ambas as “metades” não são indignas da nossa atenção, quer por obrigarem a apreciação contemporânea de Tintin ter de atravessar um aproveitamento e transformação que diga algo de verdadeiramente vivo em relação a essa contemporaneidade quer por conseguir criar uma simples mas interessante largueza de vistas quanto às potencialidades dessa nova fabricação.
Nota: agradecimentos a Paulo Seabra, pelo empréstimo do livro.
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