25 de setembro de 2009

Masterpiece Comics. R. Sikoryak (Drawn & Quarterly)

Gostava, em primeiro lugar, de indicar em nota pessoalíssima que este é um livro que desejaria ter editado e publicado. Tendo seguido na medida do possível os vários trabalhos do elusivo R. [Robert ou Roy] Sikoryak por onde ia surgindo, cada nova leitura era sempre uma fonte de um estranho misto de redescoberta, da “camada literária”, da “camada visual” e da camada do próprio “traço de artista” que, por se apagar sobre a “camada visual”, mais forte surgia. Cada nova história – que agora se vê integrada em Masterpiece Comics – dá-nos a ver outra vez qualquer coisa que vemos pela primeira vez. E, à medida que ia descobrindo e lendo cada nova peça, sempre imaginei que seria um projecto interessante de editar em formato de antologia. Ei-la. (Mais) 

A premissa destes trabalhos é muito simples. As histórias que Sikoryak apresenta são um típico caso da maneira como a dicotomia “conteúdo” e “forma” jamais podem ser entendidas separadamente sem que se destrua o modo que nos é dado, ainda que a descrição de um e outro seja perfeitamente possível. Nestes casos, os “conteúdos” tratam-se de clássicos da literatura ocidental e a “forma” toda uma série de bandas desenhadas e veículos de entretenimento modernos norte-americanos. Recontam-se os primeiros através de adaptações aos segundos, os quais pareceriam veículos indignos ou impossíveis de transportar essas personagens, tramas, ideias, mundividências mas que se revelam uma fonte inesgotável de exptáveis jogos de ironia e derisão mas também de inesperados ecos de ressonância comum.

Vejamos, e perdoem a listagem exaustiva, quais são essas “uniões”: Masterpiece Comics apresenta a criação do mundo, do homem e da mulher, a tentação da serpente e a expulsão do Paraíso tal como contados no livro de Génesis através do veículo da série Blondie de Chic Young, circa 1950: resultando em “Blond Eve”; todo o Inferno de Dante é condensado a dez curtas bds de invólucro de pastilha elástica do Bazooka Joe: “Inferno Joe”; o horripilante Gardfield, de Jim Davis, é o veículo para dar a ver de novo o mito do Dr. Fausto, na sua versão isabelina de Marlowe: “Mephistofield”; segue-se MacBeth, de Shakespeare, em duas páginas surrupiadas à “soap comics” Mary Worth de Allen Sanders e Ken Ernst: “Mac Worth”; o Cândido de Voltaire mescla-se com o Ziggy em “Candiggy”; o conturbado e comevedor romance de Emily Brontë, O Monte dos Vendavais, é contado nas páginas de um típico trabalho de uma das mais famosas séries da EC Comics dos anos 50, Tales of the Crypt, pela pena artística de um Feldstein, para chegar a “The Crypt of Brontë”; segue-se A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, como se pudesse viver nas páginas daquelas aventuras fictícias do Detective Aranha (o Bolinha) de Luluzinha, de John Stanley e Irving Tripp: “Little Pearl”; o Crime e Castigo do Raskolnikov de Dostoiévski assenta que nem uma luva ao Batman de Dick Sprang, formando “Dostoyevsky Comics”; O retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde, pode encontrar uma nova forma de apresentação em todos os salões de espelhos que populavam a Slumberland do Pequeno Nemo de McCay, em “Little Dori”; é possível que Kafka, tão adverso à ilustração paupérrima a que poderia ser votada a sua Metamorfose, acabasse por se render ao assombroso e triste modo como a sua novela se adapta aos Peanuts de Charles Shulz em “Gregor Brown”; os leitores do Super-Homem original, de Shuster e Siegel, não encontrarão grandes distâncias entre a primeira versão adulta e cínica do super-herói mais famoso de todos e o protagonista d’O Estrangeiro, de Camus: “Action Camus”; e, talvez o mais absurdo casamento de todos, À Espera de Godot, de Beckett, é reduzido a uma página com as inenarráveis personagens de Mike Judge, Beavis and Butthead, em “Waiting to go”.
Uma adaptação é, por natureza, lesante em relação ao “texto” originário. Pouco importa o tipo de relação magistral que se possa criar ou os exemplos maiores que possamos agregar: as ilustrações de Botticelli para A Divina Comédia jamais serão A Divina Comédia, quaisquer ilustrações que possam surgir em torno do Quixote poderão alguma vez preencher a ideia do romance, e o 2001 de Kubrick é puro cinema, impossível de verter sem perda em qualquer outro meio. & etc.

De que se trata o trabalho de Sikoryak, afinal? A primeira ideia que poderá surgir ao leitor é que se trata de pastiche, mas essa palavra não é exacta em relação ao se trabalho. Nem paródia. A primeira aponta para a utilização de elementos (estilísticos, formais) tomados de empréstimo de obras anteriores para criar uma nova obra que devolva a mesma impressão. O segundo termo aponta para uma noção mas vincada num grau, digamos, moral, em relação à primeira, dado que se empregam esses mesmos elementos emprestados mas com um intuito de zombar da obra “copiada”. A razão pela qual o próprio autor emprega a palavra “paródia” é compreensível, sobretudo do ponto de vista legal, visto que é permitido parodiar determinada criação cultural (as obras literárias mas também as personagens de banda desenhada, algumas das quais trademarks de grandes companhias), mas não procurar o seu uso com intuitos meramente de plágio ou aproveitamente comercial (em que existiria um dúbio e quiçá disfarçado emprego dos tais elementos como se fossem originais). Aliás, ainda que haja uma espécie de pacto de cavalheiros que permite um certo grau de brincadeira da parte de Sikoriak sobre material de autores ou companhias que lhe poderiam arranjar problemas (Jim Davis, a DC Comics), a ausência de personagens Disney faz-nos entender não apenas uma estratégia autoral como uma previdência legal sapiente. Mas apesar desse argumento legal, também não penso ser paródia o termo correcto.

Em “Un premier bouquet de contraintes”, o texto crítico-pragmático do projecto Oubapo escrito por Thierry Groensteen em OuPus 1 (L’Association), o autor aponta para, no capítulo referente aos exercícios oubapianos de limitações transformadoras, a “reinterpretação gráfica”. Esta “transformação lúdica” consiste no acto de “modificar o estilo gráfico do modelo sem tocar no tema. Torna-se assim possível, apenas pela mudança da escrita gráfica, trasvestir uma banda desenhada ‘realista’ num estilo caricatural, e vice-versa”. Groensteen fala de exemplos simples e de outros, potenciais, eventuais, mais complexos. Penso que muitos dos leitores conhecem as imagens que Moebius fez de certas personagens da Marvel (Homem de Ferro, Super-Homem, Homem-Aranha, etc.), ou que Bilal fez do Tintin caminhando por um esgoto, as muitas versões “mangá” de personagens de banda desenhada ocidental, etc. Essas imagens não são de nenhuma banda desenhada, são apenas esse exercício ilustrativo, mas o facto do traço dos seus artistas ser conhecido, cruzado com aquelas personagens, também conhecidas, leva a que se crie um fantasma ficcional que aponta para toda uma potencialidade (mais ou menos interessante, conforme os casos). Isto é, mantém-se o “conteúdo”, alterando-se a “forma”. Porém, “este tipo de reinterpretação conduz necessariamente à modificação, ou até mesmo ao abalo, da mensagem semtântica”. A palavra chave de Groensteen é a modificação, ou seja, a alteração de modo. A forma e o conteúdo nunca se mantêm incólumes de o outro elemento se transformar.

Há muitos exemplos de outras bandas desenhadas que se poderiam irmanar com as de Sikoryak: toda o conceito de fan-fiction cobre parte dela, de que existem inúmeros exemplos no circuito das bandas desenhadas, sobretudo no Japão com os seus particulares “fanzines”, os doujinshi; uma forma dessas “alternativas” seriam aquelas séries, como a da Marvel, “What if?”, que teria toda uma série de imitações e variações, como 1602, Ruins, Marvel Noir, etc., colocando todas as personagens dessa companhia – que vivem numa grelha de continuidade – em vivências “outras”; as estratégias visuais que encontramos na série 1963, de Alan Moore, e todo aquele modo que este autor instituiu, e seria imitado por outros, de revisitar a história interna da banda desenhada em questão para provocar falsas revisões e rememorações (acontecendo em Supreme, Promethea, outros títulos), também aponta para uma dessas ideias fantasmáticas da própria rememoração da banda desenhada. Por outro lado, poder-se-iam arrolar também as adaptações literárias sobejamente conhecidas, nos Estados Unidos, da Classics Illustrated (de que chegaram alguns títulos a Portugal, das versões mais modernas, como o Moby Dick por Sienkiewicz). Aliás, o próprio Sikoryak editou um livrito antes deste, intitulado The Seduction of Mike, com Michael Smith (pela Fantagraphics em 1997), no qual se fazia aquela história-memória reinventada. 

Atravessando toda uma história da banda desenhada norte-americana pelas relações que estabeleciam com um tal de Mike, uma espécie de personagem fantasma que é redescoberta (não muito diferente do que a Marvel mais tarde faria com The Sentry), elabora-se uma continuidade entre os vários géneros desta linguagem artística, desde os comics infantis dos anos 30, passando pelos war comics, romance comics, horror comics, underground comix, e não esquecendo mesmo o próprio círculo do autor, com uma versão da Raw (“Rag”, imitando o estilo de Mark Beyer) e da American Splendor (“American Slacker”, imitando Chester Brown).

Todos estes gestos criam uma espécie de mistura de modificação simples que nos faz projectar potencialidades ficcionais (e um desejo de seguir Sikoryak, como este artista). Paródia pode não ser a palavra certa, mas há elementos paródicos (provoca o riso sobre o novo texto de Sikoryak mas também sobre as duas fontes originais); pode não ser pastiche, mas ficamos maravilhados com o facto das dimensões principais das histórias se manterem incólumes e da quase-perfeita imitação dos estilos dos desenhadores das bandas desenhadas; pode não ser exactamente uma homenagem, mas não deixamos de perceber um certo carinho pelo cuidado como essa imitação é feita; pode não ser exactamente uma adaptação, por se afastar demasiado das expectativas de uma adaptação (se bem que por vezes aceitemos certas adaptações que se afastam em extremo da fonte porque é cumprida no interior de uma expectativa outra, social), mas não deixamos de as ler como “versões” do que citam…

Mas o mais importante é que a aproximação das duas incomensuráveis partes – a “forma” e o “conteúdo”, o “texto literário” e o “estilo da banda desenhada” -, por mais absurda e impossível que pareça ser, obriga-nos a repensá-las à luz umas das outras. Não será Meursault idêntico ao primeiro Super-Homem, no modo como toma certas acções nas mãos e se mostra acima das mais básicas emoções humanas? A decisão brutal de Raskolnikov, e a sua subsequente crise permanente moral, e eventual redenção, não constituem temas explorados – convenhamos que com instrumentos bem diversos – na contínua saga de Batman? Não é a protelação de viver e a distração ritmada de Beavis e Butthead derivada daquelas que haviam sido exploradas por Beckett na sua mais famosa peça? Não será possível encontrar na inevitabilidade do Fausto uma certa ponta do humor previsível das punchlines de Gardfield? Não é, no fundo, a nossa apreciação de Dante reduzida a trechos desirmanados como se fossem transportadas por invólucros de plástico de consumo imediato?

E não passaremos, ao contrário, a encontrar em Little Lulu alguns dos desmandos inevitáveis de uma sociedade que se deseja o mais regrada possível, como n’A Letra Escarlate? Ao olharmos para os Peanuts, não estaremos a tentados a encontrar a partir de agora algumas das características mais afectas à escrita de Kafka, desde a mediocridade das suas personagens aos insuperáveis obstáculos com que são confrontados (chegar ao castelo, perceber qual o crime de que são acusados, ler a sentença gravada na cerne não é muito distante de conseguir acertar na bola, fazer voar um papagaio ou falar com uma miúda de cabelo ruivo)?

Seria até possível, eventualmente, reler Masterpiece Comics à luz do grande ensaio de Camus, O Mito de Sísifo, no sentido em que Sikoryak não é simplesmente “pós-moderno” com estes seus exercícios de aproximação entre fontes eruditas e formas de entretenimento popular, mas alguém que entende o absurdo da existência mas que, consciente dela mesma, não se afunda na angústia, mas cria a sua felicidade através destes mesmos trechos de absurdo. “Viver é fazer viver o absurdo”, escreve Camus. É uma boa maneira, julgo, de entender Sikoryak.

Um problema inerente a uma antologia deste tipo é que todo o material tem de ser homogeneizado ao seu formato. É verdade que muitas das peças mantêm uma certa forma específica: “Little Dori” é impresso lateralmente, permitindo que duas páginas perfaçam algo próximo das pranchas dominicais de Little Nemo, “Action Camus” surge como uma colecção de capas de comics espalhadas nas páginas... Mas algumas das idiossincracias próprias dos trabalhos quando surgiram pela primeira vez são perdidas. “Little Pearl”, tendo sido publicada na própria revista da Drawn & Quartely mantém o seu tamanho, mas perde no que diz respeito à qualidade do papel; “Inferno Joe” foi impresso num formato mais pequeno, a duas cores somente, e numa paginação mais livre, tornando essa experiência o mais próxima possível da dos descartáveis invólucros, e o rearranjo neste livro faz perder parte do seu encanto; “The Crypt of Brontë” teria ganho se tivesse sido impresso no mesmo tipo de papel que as revistas da EC da década correspondente... Torna-se, porém, mais acessível a um público mais diversificado. Alguns trabalhos tiveram de ficar de fora, necessariamente, por não serem exactamente estas uniões literárias-banda desenhísticas. No entanto, não resisto a deixar aqui a prancha (a cores, diferente da versão original a preto-e-branco na Raw, vol. 2, no. 3) Garish Feline I-VI, atribuída a um eventual “Jim Dakooning”, encontrado no site The Daily Cross Hatch.
Nota: por razões técnicas, recorri a imagens sacadas da internet.

2 comentários:

  1. Muito interessantes essas paródias. :)

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  2. mortinho, mortinho, mortinho à espera que o meu exemplar chegue...

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