6 de setembro de 2009

Ma vie mal dessinée. Gipi (Futuropolis)


Gipi parece ter apurado os seus trabalhos anteriores, não só chegando a uma assunção de um desenho absolutamente caligráfico, apenas linhas no papel, coincidentemente finas com as letras escritas (foi o próprio Gipi que fez a caligrafia para a tradução francesa) – com a excepção das partes a cores, ou outras “interrupções” que pretendem dar a ver “ficções” em relação à história principal – como também no que diz respeito à estruturação dos sentidos, no uso das palavras, da estranha cartografia por camadas desta obra.
A utilização da linguagem é particularmente apurada em La vie mal dessinée. Há como que toda uma bateria de frases, de ideias textuais que, citadas, serviriam como haikus, breves prosas de uma linha, cenas memoráveis de uma história que não se desenvolveria mais, pois estaria toda concentrada nessas mesmas súbitas ideias, imagens-núcleos, sementes que jamais germinarão pois são elas mesmas já completas. Mesmo fazendo a violência de as separar do seu contexto visual, elas sobrevivem como sintoma desse primeiro gesto: “L’homme dans le noir parle beaucoup. Dans le noir, il n’y a que sa voix. Sa voix est le noir”; “J’étais un gamin. Je viellissais dans la voie sans issue. En attendant son apparition”; “- Vous êtes un psychologe. Et donc un imbecile. Vous ne pouvez pas comprendre”.
Tal como algumas das obras anteriores de Gipi, estamos em crer que La vie mal dessinée se trata de uma curiosa variação sobre a ideia de auto-ficção, aparentável com a obra de Debeurme, por exemplo. Um modo de deixar bem claro aquela crença de que todos os autores fazem influir nas suas obras experiências pessoais, confessando-o explicitamente através de subterfúgios, por mais paradoxal que isso pareça ser. Essas pistas estão espalhadas ao longo do livro, do relato da sua personagem principal, e cabe ao leitor discernir por entre a impressão fantasmagórica que sucede essa decisão.
É conhecido o trecho mínimo, invenção apócrifa de Jorge Luís Borges, Del Rigor en la Ciencia, em que se veicula um mapa cuja escala era idêntica à do território (e que “coincidía pontualmente con él”). Esses mapas existem de facto, ainda que a camada segunda – o que corresponderia ao mapa, aos signos que respondem, espelham, representam o território – seja tecida pelas projecções, sonhos, fantasias, alucinações, desejos, desvios momêntaneos da vigília de todos nós, por sobre a primeira camada – o território –, que seria aquela a que chamaríamos, julgando ser de facto compartilhável pelos demais, de “realidade”. Na verdade, o consenso absoluto não é de modo algum alcançável e a ideia de universos, ou pelo menos de mundos paralelos é por demais fácil de detectar, no simples e sempiterno confronto das nossas experiências pessoais e perspectivas com as dos outros, tornados mais outros quanto mais esse confronto for detectável.
La vie mal dessinée parece dar-nos a ver, ou permitir-nos vogar por entre as várias camadas que compõem o universo do seu protagonista, mesmo que não nos seja fácil identificar qual a sua ordem, hierarquia e arranjo final, se sequer acreditarmos que será eventualmente desenhar algo dessa natureza. Mas fazemos o esforço de entender essa ordem e, ao criar um curto-circuito restam-nos as impressões presas nessas camadas, o fantasma da sua ordem, que acompanham a sua leitura (ao entender, como no texto de Borges, a inutilidade das disciplinas geográficas de um mapa assim, atravessando “despedazadas Ruinas” abandonadas ao tempo).
O livro parece criar como que uma linha múltipla de séries narrativas, imbricadas umas nas outras de um modo tão indissociável quanto inanalisável, obrigando-nos à sua compulsão, à criação dessa hipotética cartografia de relações entre elas (por exemplo: “fantasia da infância”, “memória reprimida”, “passado objectivo”, “projecção ficcional”, “leitura”). Para nos apercebermos, no fim, que falhámos. E que falharemos sempre a cada tentativa. Há a história do protagonista, jamais nomeado (a menos que recorramos ao nome onírico de Crabou Cra, de ecos dantescos) que se divide no relato da sua doença venérea, a sua infância, a adolescência, o estranho episódio do “homem no escuro” no quarto com a irmã, as fantasias e os sonhos – onde confessa que gostaria de ser Tremal-Naik, um dos Tigres da Malásia - , os reencontros com os amigos em adulto, a história dentro da história dos piratas e da ilha dos selvagens “sfrush”, o mundo dos “fantasmas directores”, o final redentor. Entre essas divisões (e suas eventuais sub-divisões, nos vários episódios que retornam) há uma “distância íntima”, ou uma “diferenciação do mesmo”, ou uma expressão qualquer que dê conta dessa aparentemente paradoxal divisão de um ente, de uma identidade, em várias das suas afirmações, projecções, versões, sem que se criassem hierarquias entre si e nenhum delas assumisse um maior rigor de verdade em relação às demais.
Se existir algum motivo em comum – como na música – entre os vários movimentos, é o de um combate permanente de todos os avatares do protagonista contra a brutocracia que o rodeia: a dos piratas, dos médicos e psicólogos (terá o autor lido O Anti-Édipo, procurando desmascarar o edifício de palavras da psicanálise?), da sociedade em geral? No entanto, há uma brutalidade na qual ele se integra, bruteza da juventude, a vida selvagem da juventude urbana contemporânea, uma bruteza que, no fundo, é a forma cândida com que se procuram respostas num campo em que nem sequer as perguntas são claras. Contra quem lutam eles, afinal? Não têm obstáculos, por isso, inventam-nos e exercem a violência que podem contra eles. Moinhos de vento.
Mesmo sendo de uma família da classe média alta (um burguês), os seus comportamentos socialmente tipificados, o jovem protagonista procura rebelar-se como pode dessa ganga herdada, quer seja através da música (o punk), das drogas, da simples vida indolente pelas ruas, das pequenas diabruras com amigos, quer através daquelas linhas que nos vão surgindo de modo desirmanado, sem aparente centro organizativo, e que ganham corpo – na própria textura do livro – através das “ficções” (mormente a história encaixada dos piratas, a cores, que remete para um nível absolutamente diverso da imaginação do personagem principal), dos sonhos e projecções, nas representações das paranóias, e no pequeno desarranjo entre a suposta “verdade dos factos” e o modo como foi transposto para o discurso do livro – desarranjo a que só acedemos por a própria voz narradora no-lo confessar.
E se disse “cândido”, é porque rapidamente – a chegada à idade adulta, a inserção na lei, a aceitação da sociedade – essa bruteza é abandonada e vista como inócua. E a resposta dessa redenção, de tão simples, é justa.
Se com Notes pour une histoire de guerre, O Local, Baci dalla provincia, Gipi conjurava estas impressões de eventuais experiências pessoais para a criação de pequenos relatos quase sociológicos (O Local, mormente), ou integrados numa tendência fictícia contemporânea (Notes pour une histoire de guerre), o presente livro parece ter passado um grau, na direcção de uma maior dissolução de programas narrativos clássicos para atingir outras formas de sentido mais complexas. Curiosamente, ainda que não abdique totalmente do seu virtuosismo das aguarelas – como se comprovam, ou reforçam, nos segmentos dos “piratas” -, Gipi está muito mais presente na sua vertente de “escrita gráfica”, e tudo o que isso implica, igualmente apontado, quem sabe, a uma inflexão interna da sua obra. É como se, jogando com o seu título, quanto mais “mal desenhada” for, mais “sua vida” é.

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