Na sequência de um exercício já anteriormente tentado, com Filipe Abranches e Ana Biscaia, incursamos agora num conjunto de sete desenhos que Tiago Manuel criou para o novíssimo volume de poemas de Sérgio Godinho, O sangue por um fio.
O arranjo gráfico geral do livro, e consequentemente das relações directas entre os poemas e as ilustrações, é algo tímido, arranjado e limpo, não permitindo qualquer contaminação visual. Essa contaminação apenas surgirá a posteriori, com a leitura interpretativa. Nesse sentido, há quase o risco de tornar, as ilustrações, decorativas, e os textos, consolidadores exclusivos do sentido. Remetendo as ilustrações somente para as páginas titulares dos sete “livros internos” reforça esse grau de separação, e impedindo uma outra opção que permitisse uma mais livre circulação das linhas de força dos desenhos sobre os poemas.
Se se podem encontrar afinidades entre estes desenhos particulares de Tiago Manuel e outras instâncias, penso que não serão com os ilustradores “artísticos”, digamos assim, mas sim com aquelas inflexões esteticizantes do campo científico. Penso sobretudo, dadas as características físicas muito específicas destes desenhos – estruturas internas, a criação de manchas de cor e sombra através de pontos, a esquematização da composição e distribuição das imagens – nos desenhos de células de Robert Hooke no seu Micrographia (1665) ou nas belíssimas composições quase abstractas dos invertebrados em Kuntformen der Natur (todo o volume, 1904), de Ernst Haeckel. Nesta comparação, todavia, o “rigor” (o grau de pormenor, a técnica pontilista, o grão molecular) dos desenhos de Tiago Manuel não seguem a objectividade sintética da ilustração científica, mas sim a acuidade intrínseca dos objectos visuais que escolheu. Poderíamos, na tentativa de nomear esses objectos, recorrer a toda uma série de metáforas, mas provavelmente todas elas falhas (leia-se o poema No reino da metáfora): ovos, pedras, colónias de plâncton, dendrites, tecidos biológicos, vasos capilares, células indiferenciadas do “sangue por um fio” que se vai construindo a cada poema.
A faceta científica destas ilustrações encontra um eco nos textos de duas formas. Em primeiro lugar, pelo facto dos títulos de cada “livro” interno começar com “de”, recordando dessa forma os títulos latinos dos livros de Aristóteles, por exemplo, ou todas aquelas obras que procuravam efectivar uma descrição exacta das coisas do mundo. Por outro, no modo como Sérgio Godinho procura explicar de um modo definitivo essas mesmas coisas do mundo através de construções frásicas idênticas, curtas e decididas: “A desobediência é a forma às avessas da integridade.”; “A raiz, o centro da terra, é o silêncio.”; “A esperança é uma sabedoria branca e parda.”; “Cadeiras vazias são prova de vida.”; “Partir é um pré-balanço da vida: assim/fosse para sempre.” A insistência no verbo “ser”, descritivamente, traz um poder decisório aos ecos da sonoridade prosaica dos poemas, como se cada um deles fosse uma explicação da faceta do mundo com que se debate. Há sempre o carácter livro próprio do poema, mas esse é como que diminuído pela escrita de Godinho, como se houvesse uma procura pela exactidão (de resto impossível, mas que o próprio gesto de a querer contrariar revela). Há uma natureza dúplice que ainda encontrará outro alcance, como veremos adiante.
Essa explicatio atravessa ainda o emprego de toda uma série de frases feitas, fórmulas populares – “não há mas nem meio mas”, “há que acompanhar a moda”, “um diz mata o outro esfola”, “isto está pela hora da morte” –, como se se criasse um pequeno fantasma burilado a partir de pequenas resignações. O sangue por um fio é um livro composto por poemas que sabem a biografia velada, aqui mais, ali menos, de rememoração de tempos o mais recuados possíveis (a infância, a juventude, os primeiros amores, a tropa), mas também de testamento sob o medo da morte, e a contínua recuperação do gesto de escrever para cantar. Todas essas dimensões concorrem para uma “forma de ver” e, consequentemente, de “dar a ver”, de “explicar”, que é então continuada pelas imagens.
As figuras aparecem sempre a dois (mesmo quando uma dessas metades é composta por elementos vários). E estão separadas pelos títulos, os quais também apontam a dicotomias, a tensões entre forças antagónicas. Podem claramente ser elementos contrários ou complementares (“Das perguntas das respostas”, “Das quimeras e metáforas”), como podem ser oposições englobadas por um dos elementos (“Do dormir sem acordar”), como ainda podem procurar mostrar o trabalho marchetado de um elemento no outro, ora inflectindo-o, ora condicionando-o, ora configurando-o (“Dos ecos da viagem”, “Da guerra no mesmo mundo”, “Do amor à primeira vista”). E podem ainda apresentar impossibilidades ou generalizações que se anulam mutuamente (“Dos calendários perpétuos”). Cabe-nos tentar encontrar essas mesmas relações nos objectos visuais de Tiago Manuel.
Se por um lado essa natureza dúplice, a que já nos havíamos referido, está prevista no próprio texto - “As frases não ganham ritmo por si mesmas./Ou são ambivalentes – e nisso já são duas,/ou se estendem sem sentido/até se agarrarem a uma cor/ou coisa mais material” – poderemos, ainda, encontrar nas ilustrações uma tradução “material” dessas coisas a que se agarram as palavras para ganharem o sentido, sobretudo pelo facto dessa paridade.
Emerge assim a ideia de um diálogo, talvez mesmo promessa de síntese, entre essas formas díspares. Como se escreve num dos poemas, “Toda a faca tem seu fio –/ o amor, suas metades.”
Eventualmente, poderemos ver na ilustração uma das metades amorosas, cuja outra metade é o texto.
Sem comentários:
Enviar um comentário