Na continuidade desta colecção dirigida por Tiago Manuel, a escolha de Filipe Abranches caiu sobre um dos cinco filmes que juntou os carismáticos e problemáticos actor Klaus Kinski e realizador Werner Herzog, Fitzcarraldo (veja-se o documentário My Best Fiend para perceber a turbulenta relação entre os dois e, particularmente, as condições adversas das filmagens dos seus filmes conjuntos, inclusive este agora “traduzido”, que levou Kinski às suas mais explosivas invectivas).
O coração deste filme, desta história, é também um de trevas, como o do Kurtz, mas opera-se aqui uma completa inversão do programa da novela de Conrad. Se nessa o que se passava era a erosão do significado da civilização integrante a um homem no centro da barbárie, a personagem semi-ficcional de Herzog é antes um homem que deseja levar um sinal luminoso – de acordo com os seus cultores, o maior sinal – dessa civilização para o seio da mais selvagem das naturezas, ou a mais incipiente das civilizações. Fitzgerald deseja construir um teatro de ópera no seio da Amazónia. O esforço é de Sísifo, como seria de esperar (e como é repetidamente notado na crítica ao filme), e não haverá emblema mais nítido dessa acção do que a cena de um barco a vapor a ser transportado por sobre uma colina, entre dois rios, que é arrasada, e o preço humano dessa acção (ver as duas últimas imagens neste post). Seguidamente, a cena da descida dos rápidos mostra uma outra paga a fazer em nome da hubris do protagonista.
Sendo essas as cenas mais famosas e fortes do filme, e as que dão azo às imagens mais belas, aos planos mais marcantes, é natural que o olhar e a mão de Abranches recaiam preferencialmente sobre elas, ainda que não abdique de, através de uma forma de anotação pontual, fazer presente todo o filme neste pequeno livro de 32 vinhetas, irmanadas 2 a duas por cada página aberta, com a excepção da primeira e da última, espécie de prólogo visual de apresentação da personagem principal, e imagem última da dissipação total do sonho de Fitzgerald.
Há um aspecto curioso no desenho, ou nas opções de desenho, de Abranches, que tem a ver com a ausência de expressão das personagens. A primeira imagem revela-nos o protagonista com o rosto totalmente coberto de negro, e o da sua acompanhante (a amante Molly?) por desenhar; seguir-se-ão rostos cobertos de negro, ou longíquos demais, ou dos índios, impávidos. Subitamente, irrompe a imagem que mostra o nome do barco a vapor, Molly Aida (uma dupla homenagem de Fitzgerald à sua amante e a uma figura da ópera), apresentada sob a forma de um contrapicado colocando à nossa vista a placa com o nome, numa curva de pontas descendentes, e duas vigias. É impossível não ver neste desenho uma vontade em fazer emergir um rosto e, o que é mais, com uma expressão indesmentível (princípio de expressão ao qual Gombrich chamaria “lei de Töpffer”), reequilibrando, de certa forma, a expressão “em falta” de alguns dos rostos no livro, como se Abranches quisesse desviar esse grau de expressividade para fora das personagens humanas para sublinhar a importância, o valor central do acto sobre o barco. O que também pode ser interpretado como a desumanização necessária (o preço a pagar) pela assunção do triunfo de algo que, não obstante ser objectual (um barco, um teatro, uma ópera), lhe é superior (o que se almeja).
Só após essa vitória, portanto, a passagem de um navio sobre uma colina, de pouca dura, é que podemos retornar ao rosto de Fitzgerald, lado a lado das sombras dos ocupantes do seu barco, imediatamente antes de cair nas malhas dos rápidos.
Como é de esperar, e como se verificara já na transposição de outros filmes para a banda desenhada nesta colecção peculiar, que menos se preocupa com “versões em banda desenhada” mais costumeiras, mas sim a apropriações de alguma natureza criativa, Filipe Abranches opta por reescrever, com os elementos presentes no filme, uma outra leitura. Ou melhor, pelo facto de não procurar ser uma tradução completa e exaustiva (o próprio título aponta a esse aspecto necessariamente incompleto), nem sequer “clara”, a apresentação num objecto deste tipo, um livro, leva a que surja uma outra narrativa. O fecho desta narrativa, Fitz..., é uma estranha composição “positiva”, “vencedora”: depois da encenação breve de uma ópera, ou de algumas das suas árias, com a banda, e os cantores dando as mãos – mas separados na paginação, o que leva ao típico paradoxo, explorado no filme e no livro, da impossibilidade final de uma verdadeira união de vontades diferentes – vemos Fitzgerald fumando o seu cigarro, em pé junto à sua cadeira, no topo do barco. Um triunfo, de certa forma. A última imagem (colocada lado a lado com a penúltima, na página anterior) mostra-nos uma paisagem vaga, abstracta, com uma coluna de fumo atravessando diagonalmente o campo de composição. O fumo do charuto. O fumo do barco. Mas também, como dizia Gil Vicente, os “fumos da Índia”, a dissipação final deste esforço em nome da arte maior, que se pretende sublime, que em tudo ultrapassa a vida humana e, por isso, cobra um preço sobre-humano.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
Gostava muito de adquirir os volumes desta colecção.
ResponderEliminarComo poderei contactar a Ao Norte?
Cumprimentos
Já agora, só consegui descobrir o volume 4 aqui no Ler BD.
ResponderEliminarQuais são os restantes?
Caro Carlos Antunes,
ResponderEliminarTive a oportunidade de falar de cada um dos livros que saiu nesta colecção neste blog. Se procurar (no blog) "ao norte" vai lá dar. Aconselho, em primeiro lugar, consultar o site da associação que os editou: http://www.ao-norte.com/
Lá encontrará informações sobre ela (secção "bd/cinema"), assim como os poderá encomendar.
Obrigado,
Pedro Moura