14 de maio de 2010

Dois filmes, dois cartazes. Tiago Manuel e Blutch.

Nota inicial: Gostaria de tentar aqui uma leitura molecular de dois cartazes de filmes recentemente estreados em Portugal, não apenas por serem criados por dois autores que lemos continuadamente (Tiago Manuel e Blutch), mas porque penso serem uma relativa excepção de qualidade do que se faz, ou mesmo pode fazer, em matéria de cartazes de cinema com a ilustração. Ambos muito diferentes, mostrando objectos diferentes, estratégias de representação diferentes, ambos brilhantes. A esmagadora da produção destes materiais historicamente perecíveis e efémeros (salvo raras excepções; e de raras tradições de continuidade – salvo a Polónia?) recorre hoje à fotografia e ao design, nem sempre o mais feliz ou interessante, e as mais das vezes presidido por preocupações meramente económicas, procurando uma simplicidade de leitura que seduza o maior número de pessoas e as leve à compra do bilhete (ou do DVD). Neste último aspecto, fomos influenciados pela leitura de um artigo no The San Francisco Panorama que compara os cartazes de cinema de vários filmes e as capas dos respectivos DVDs, cuja abertura e interesse é maior nos primeiros. Esta leitura dos textos primários é ainda informada pela convergência de trabalhos teóricos de autores tais como Roland Barthes, Gilles Deleuze, Victor Burgin e Thomas Stubblefield. É Burgin, sobretudo, que ao explicar o modo como esses materiais efémeros e satélites do cinema (o poster, as fotografias do filme, o trailer, etc.) moldam uma sua “portabilidade” e deslocação, torna clara a forma como o filme “deita o seu conteúdo no fluxo da vida quotidiana” (The Remembered Film). Por outro lado, com Barthes aprendemos que a experiência de um filme perfaz-se não apenas com o próprio filme (nos nossos dias, graças a toda uma série de tecnologias, suportes e plataformas de divulgação, não já apenas consumido nas salas de cinema, mas noutros espaços vivenciais) mas também com a dispersão nesses outros objectos, levando a um “desdobramento permutacional” a que ele chama de “terceiro sentido”, um acesso especial ao fílmico o qual “paradoxalmente, não pode ser alcançável no filme em situação, no movimento do seu estado natural, mas apenas nesse grande artefacto, o still [“foto/grama de filme”]” (“En sortant du cinema”, in Le bruissement de la langue). Essa imagem estática ganha tal sentido por se associar a um “horizonte diegético”, isto é: estas imagens não se prendem somente a um significado que é mostrado, mas antes contado ou narrado: o acto de tecer uma narrativa, o desenrolar dinâmico de uma história e ideia. O cartaz deve funcionar, portanto, não enquanto uma mera “fatia” do que o filme encerra, mas uma promessa do que desenvolverá, do que desfiará.
Tiago Manuel. Cartaz para Ruínas, de Manuel Mozos.
O filme de Mozos é uma espécie de respigador de objectos abandonados, ou melhor, de fantasmas. Por um lado, as imagens de locais que, menos do que verdadeiras ruínas, são espaços que pareciam prometer uma qualquer glória e se esvaziaram da presença humana, ganhando uma dimensão fantasmagórica e unheimliche perturbadora. Serão “ruínas” no seu sentido monumental, como quereria Aloïs Riegl, que em Der moderne Denkmalkultus. Sein Wesen und seine Entstehung/O culto moderno dos monumentos, de 1903, nos fala da “amplificação progressiva do âmbito pelo qual o valor rememorativo se valida”, e estabelecendo três categorias de monumentos, nos ajuda a identificar aqueles filmados por Mozos como fazendo parte dos monumentos históricos, isto é, que apresentam uma “ideia do tempo transcorrido desde o seu aparecimento, e que se revela palpavelmente nas impressões que deixou”. Um sanatório nas Penhas da Saúde, no meio de um mato com laivos do fantástico, uma residencial à beira de uma estrada em Pegões que não lhe vota um minuto de atenção, a Hidroeléctrica do Douro que parece prenunciar uma narrativa de ficção científica de contornos de horror. Por outro, os textos coligidos a partir de uma camada de produções textuais usualmente negligenciáveis: cartas circunstanciais, regras institucionais, ementas, o romance de cordel associado aos makavenkos. Uma, duas excepções: o poema de Ruy Belo, a arrepiante canção dos mineiros de Aljustrel (“Trago a camisa rota/E sangue de um camarada, vê lá!”). No entanto, é precisamente esse carácter originalmente negligenciável que as torna “ruínas” e é ele que, recuperado no filme de Mozos, se recobre de uma vida assustadoramente presente. Uma espécie de espelho que nos devolve aquilo que irá ser já ao dobrar do dia. Ou ainda, como quer Paulo Varela Gomes (no seu artigo no ípsilon, 2 de Abril de 2010), Ruínas (título cuja exactidão filosófica o historiador contesta) “não se ocupa de nós como somos, mas como acabámos de ser”, na medida em que é como se estes espaços e estes textos mostrassem “a sua endurecedora recusa de partir em paz para dentro da noite”. Melhor definição de fantasma não haverá. O que o filme de Mozos pretende, ou assim o vejo, não é eliminar ou exorcizar os fantasmas (fito típico dos filmes populares que querem sempre assegurar a ordem “natural”, “normalizada” das coisas, de Poltergeist a Ghostbusters a Os Outros), mas antes reelectrificá-los para que possam conviver, com a vida que lhes resta, connosco (sem as evidentes associações narrativas, populares, e de estratégias simplistas, estará mais perto de Beetlejuice).
O instrumento condutor dessa reanimação é o contacto polarizado entre textos e imagens. É o próprio realizador que, numa entrevista (ípsilon, idem), discutindo a aliança que provoca entre as imagens colhidas nos espaços e os textos eleitos, alianças as quais, fossem diferentes, provocariam uma narrativa diferente, afirma: “Um texto ligado a uma imagem atira obviamente para um lado”. É curioso o vocabulário empregue, um tanto ou quanto vulgar, bruto: atirar. Como se fosse uma agressão. Mas é precisamente isso o que acontece: cada imagem faz com que avancemos, cada passo narrativo (imagem+texto) impele-nos (atira-nos) numa direcção (para um lado). Quase parece ser uma descrição de uma banda desenhada ou de um livro ilustrado.
Um cartaz de cinema é uma aliança particular: entre uma imagem singular, estática, e o “texto” que (todo) o filme é. Tiago Manuel cria um cartaz que abdica de quaisquer chamadas directas aos materiais empregues no filme propriamente dito (um espaço, uma referência), e constrói uma mancha branca generosa no centro da qual assenta uma gaiola de ferro em forma de coração encerrando uma rosa-príncipe acabada de cortar.
A apropriação de um objecto para que, nas suas características físicas inalteradas, passe a assumir um outro papel de representação, é algo que se entende ter raízes no readymade. A sua ligeira alteração, ou mescla com outras características, levará à emergência de uma verdadeira “metáfora visual” tal como é entendida por autores como, por exemplo, Noël Carroll: uma imagem que sobreponha num mesmo espaço compositivo duas imagens distintas, permitindo a sua dupla leitura, ou melhor, a leitura de uma coisa sem abdicar a leitura da outra. Um exemplo da História da Arte encontra-se na obra escultórica de Picasso, ora n’A Cabeça de Touro composta por um selim e guiador de bicicleta, ora na Babuíno e Cria, em que as cabeças dos símios são substituídas por automóveis. Quer num quer noutro caso vemos ambos os “objectos”, isto é, vemos selim e guiador de bicicleta + cabeça de touro, vemos babuínos + automóveis. Haveria outros exemplos, e outros esclarecimentos, aqui adiados.
Tiago Manuel cultiva esta estratégia em muitos dos seus livros heteronímicos, sobretudo em Tim Morris. O que aqui observamos é, a um só tempo, um coração e uma gaiola. Ambos “encerram”, “prendem”. Mas ao mesmo tempo, é essa pequena prisão que nos permite aceder a qualquer hora da nossa vontade, o prazer que leva lá dentro. Um pássaro ou um grilo em liberdade é mais belo, mas não acedemos tão facilmente ao seu canto e companhia.Também parece estarmos perante um emblema (à Alciato). Mas a carga alegórica não é particularmente pesada, cheia de objectos, cada um correspondendo a um significado mais ou menos hermético que precise de ser interpretado e agregado para chegarmos a uma “solução” final. Se falamos de rosa acabada de cortar, não é por acaso ou desejo de criar formas impressivas de discurso. A rosa está cortada, pois notamos no caule cerceado. As folhas e as pétalas não parecem estar murchas, gastas, ainda. O cálice está mesmo fechado, prístino. Uma rosa, uma flor cortada é já um ser morto, desligado da seiva, da terra a que pertence, mas ainda se mantém com um brilho ou uma vida aparente. É transitória, e sabemo-lo, mas por isso continua a servir de fonte de prazer, por mais mínimo que seja. Tal como Varela Gomes quer, também esta rosa “acabou de ser” e é-nos ofertada nesta gaiola.
Blutch. Cartaz para Les Herbes Folles, de Alain Resnais.
Aqui estamos num território totalmente diverso. Em primeiro lugar por o filme de Resnais ser uma ficção, uma história estruturalmente clássica: um homem, Georges Palet, encontra por acaso um objecto, uma carteira, pertencente a uma mulher, Marguerite Muir, e, querendo devolvê-lo, revelando pequenos traços de obsessão quase doentia, dá início a um movimento ondulado, de dança, em que a vida de ambos se começa a aproximar, a pautar pelo encontro com o outro, até finalmente se cruzarem definitivamente e caminharem, ou até se despenharem, num encontro derradeiro, dado fora de cena, calando a história principal.
Já muito foi escrito sobre o filme de Resnais, utilizando-se os instrumentos próprios da crítica cinematográfica, e é também sabida a relação de Resnais com o mundo da banda desenhada, do qual ele vai bebendo muitas ideias e soluções em relação à éclairage dos seus filmes (ele próprio escreveu sobre isso, revelando essas fontes). No caso deste filme, parece terem sido as cores não-naturalistas do comic book do The Spirit, de Will Eisner (dos anos 1940-50), que pautaram a fotografia de Ervas Daninhas.
As condições de produção do poster são relativamente simples. Resnais convidou Blutch para desenvolver o poster, encontrando-se com o artista, vasculhando por entre o seu estúdio e cadernos de esboços, apontando pistas de possível realização. Blutch, por sua vez, não pretendia revelar nada: evitaria a redução a uma acção representativa, queria manter parte do “mistério” e entregar-se a uma “paráfrase”.
O que vemos no cartaz? Duas personagens. Em pé, estáticas, no meio de uma planície de mato baixo. Do lado esquerdo, tudo nos leva a crer tratar-se de Marguerite, identificável pela sua fulva cabeleira vermelha e os botões enormes do seu sobretudo. Não lhe vemos o rosto, pois está de costas para nós. Do lado direito, tratar-se-á de Georges. Apenas vemos o seu casaco comprido, a camisola, a carteira dela na mão, e o rosto está também oculto. Ou não. Será aquele feixe de ervas daninhas não uma forma de ocultar o rosto de Georges, mas o seu verdadeiro rosto desvelado?
Durante todo o filme, é-nos constantemente indicado, mas nunca totalmente revelado, por pistas mais ou menos inábeis, um facto qualquer do passado de Georges que o levou a ter contas com a justiça. Todas essas pistas nos levam a crer tratar-se de algo do foro sexual: uma violação? Um acossamento? Tratamento abusivo de alguém? É na sua estranha relação, e consequentes falhanços, com Marguerite, que Georges se vai mostrando obsessivo, doentio e até mesmo violento. Apesar de Marguerite parecer mais equilibrada, também revelará sinais de fúria, como na cómica-horrífica cena no seu consultório de dentista, em que magoa os pacientes.
Seja o que for, é algo que não apenas está sempre a regressar sob a forma de memória (não mostrada ao espectador) ou de pressão (não quer ir à polícia, vacila numa decisão, evita uma acção, é impelido a cuspir injúrias e ofensas que se ligam a experiências anteriores), como é algo que irrompe súbita e intempestivamente, onde ou quando se menos espera. Como as ervas daninhas. Claro que não é totalmente sem se esperar, pois tais como as ervas, as condições estão lá: o terreno fértil, as sementes, as circunstâncias em torno que as fazem medrar. As ervas daninhas, contudo, são-no mais não quando irrompem no mato, por entre outras plantas, no plano do natural: elas são mais si mesmas quando esboroam o cimento e irrompem numa estrada, num passeio, num baldio onde existira um edifício. As ervas daninhas são mais daninhas quer quando impedem que o homem controle em absoluto o espaço onde elas existem quer quando recuperam aqueles espaços que o homem abandonara. Como quem diz: as tuas acções, ó homem, não são competidoras de força o suficiente contra nós.
A gestão do plano de composição e sobretudo as cores também contribuem para a eficácia e beleza deste cartaz. Se o rosto verdadeiro, intempestivo, irruptivo, que está oculto no mundo real, de Georges, se revela nessa metáfora do título, a opção de representar Marguerite (nome de flor brava) de costas, como se o seu rosto verdadeiro se revelasse por trás, na cabeleira farta e rubra, não é menos significativo. A relação entre as personagens é vista como uma oposição diametral, a qual, como todas, se revela sobretudo na sua complementaridade. Ele expande-se, ela contrai-se; ele estende o braço ofertante, ela puxa a bolsa para si, protectora; ambos comunicam em silêncio, ainda que dois silêncios de naturezas muito diversas. Mesmo nos momentos em que as personagens mais se aproximam no filme, e se parecem finalmente entender, sabemos sempre que existe um fio que os separará inexoravelmente. O poster revela esse abismo não só no intervalo que os separam, mas na forma como esse intervalo, de verde e silvestres ervas, se derrama em seu torno.
Nota final: agradecimentos à Associação Ao Norte, pela recepção e hospitalidade, e pelos Encontros de Viana, onde pude ver o filme de Manuel Mozos, e ainda a Tiago Manuel, pelo tour, e a José Marmeleira, pela troca de impressões. Todas as imagens são colhidas da net.

1 comentário:

  1. Deixo-lhe um comentário aqui porque não consigo encontrar um contacto de e-mail.
    Estou a tentar informar-me sobre como é que é a situação do estudo (teórico E prático) da banda desenhada em Portugal. Especificamente, se existem instituições às quais eu posso recorrer, e se a FCT (ou outras instituições) está habituada ou minimamente disponível para receber propostas para bolsas em projectos em BD.
    Se tiver oportunidade de trocar alguns e-mails, deixo-lhe o meu contacto:
    spectacular.mao@gmail.com

    Ou se quiser deixar aqui o seu, contactá-lo-ei mais tarde com pormenores.

    Agradeço-lhe desde já a atenção,

    Hugo Almeida

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