Pois a matéria com que Darcy trabalha é aquela de que os pesadelos são feitos. Aliás, a sua província é mesmo a do estranho, do fabuloso, recuperando tanto tradições antigas (contos de terror, canções de pirata) como de novas plataformas de expressão dessas mesmas pulsões antigas (bruxaria moderna, culto da terra, etc.).
O desenho de Darcy, as mais das vezes apenas a traço negro, quase esboçado, e que procura uma imitação impura, quase ao acaso, de tramas mais seguras, quer trazer à baila um ambiente vitoriano por demais óbvio, mas, do ponto de vista narrativo, sempre uma época vitoriana vista pelas lentes de algumas distorções criativas, sejam elas o afunilamento pelos penny dreadfuls, as baladas tenebrosas da época, os contos de L. L. Clifford ou toda a óptica de terror gótico ou do romantismo suicida (Poe, Mary Shelley, Byron, etc.), e, claro está, a figura tutelar das ficções de Gorey. Essas referências ganham também maior corpo ao vermos a quantidade de pequenas histórias baseadas em contos tradicionais, cantigas e lengalengas, ambientes que recordam filmes mudos, e até o convite feito a Alan Moore para escrever uma história, presente neste livro, que cria um círculo coeso entre os habituais elementos de Moore, Darcy e Gorey.
No entanto, sem querer tornar a questão do género uma bandeira desfraldada sem qualquer razão e ao desbarato, há também uma busca por termas femininos. Não é só por ser uma autora (esse seria o último argumento), nem as personagens serem femininas – com a excepção do erradamente galante, misógino e doido Wax Wolf (será este uma corruptela actancial, adulta, do Max de Sendak, Max-enquanto-lobo, mas já morto?)… mas por todas as questões que se levantam na representação dos corpos dessas personagens, o foco particular na fatídica fortuna de toda a classe de mulheres, a expressão de poder que elas exercem sobre os demais, mesmo que ganhem contornos violentos (há muitas princesas, rainhas, mulheres que simplesmente abandonam os maridos e os filhos por uma felicidade totalmente autónoma, etc.) E também Effluvia é o espelho dessa personagem, maléfica sereia que puxa marinheiros excitados contra as rochas (de certa forma, e no estrito círculo da cultura popular de massas a que pertence, é algo que Lady Gaga tenta cumprir nos seus vídeos: mulheres já não há beira de um ataque de nervos, mas que o controlam e dirigem contra os homens ou as mulheres que as impedem expressar esse mesmo nervosismo).
Nalguns momentos, o desenho de Darcy ganha um nível de maior complexidade, apenas a traço, tornando possível a associação a Tony Millionaire, por exemplo, nalgumas vinhetas. Neste volume existem ainda dois trabalhos de tiras ou desenhos reversíveis, recordando Gustave Verbeek. Ainda, incluem-se outros pequenos exercícios, tal como o da inclusão de bonecas de papel para vestir com as suas personagens, uma tentativa de materializar de uma forma mais desdobrada o seu trabalho (e aqui próxima do que Ware faz nos seus livros).
Estas várias dimensões da autora provam-se pelas outras actividades pela qual é conhecida, e que passam por disciplinas variadas como a música, o cinema, ou o fabrico de bonecas de pano. Todas essas actividades confluem-se no seu estilo de vida e de arte, que constrói uma constelação de referências mais ou menos coesas, como se foi vendo.
Nota: agradecimentos à autora, pela simpatia e troca de palavras no Festival de Beja. Tivemos a oportunidade de fazer uma entrevista em vídeo a Dame Darcy, da qual daremos notícias quando for caso disso; agradecimentos a Paulo Seabra, João Figueiras, Manuel do Espírito Santo, Paulo Monteiro e Filipe Abranches por todos os gestos que permitiram essa entrevista.
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