Até à data, este projecto, que começou individualmente pela vontade do autor e editor conhecido por Fil, mas rapidamente angararia o trabalho de André Oliveira (que tem aqui uma forma de apresentar muitos dos seus argumentos realizados, e que atravessam vários estilos e humores), conta com cinco publicações, a saber: Zona Zero (datada de Maio de 2009), Zona Negra (Setembro de 2009), Zona Fantástica (Março de 2010) e Zona Gráfica Vol. 1 e Vol. 2 (ambas de Maio de 2010). Todas elas apresentam-se no formato de revistas, com o interior colorido (à excepção da Zona Negra, a preto-e-branco, procurando uma exactidão com o género que aí visitava, o horror), flutuando pela centena ou as duas centenas de exemplares, em impressão digital e uma distribuição que vive dos festivais e feiras ou dos circuitos bloguísticos. Ou seja, trata-se não tanto de um projecto com uma estrutura comercial alargada, mas sim uma espécie de fórum de autores mais ou menos com propósitos comuns que aqui encontram uma maneira de publicar em papel (o fim último da banda desenhada ainda de acordo com muitas perspectivas), dar-se a conhecer e se cruzarem com outros autores.
Este tipo de projecto faz-nos recordar outras tentativas mais ou menos intervaladas nos últimos anos que tentam recuperar a ideia de revista de banda desenhada, depois da derrocada desse sistema ou modelo de publicação pelo início dos anos 90. Se durante décadas, sobretudo aquelas vividas na infância de muitos dos leitores actuais de banda desenhada, existiu uma permanência do modelo da revista semanal com um excerto curto de uma história, que se espraiava na expectativa de meses para depois coalescer num álbum, com o desaparecimento das revistas Tintin, Jornal da Bd, Selecções BD e outras quejandas, esse modelo viria a ser derrotado. Cabe à sociologia, ao estudo de mercado, à entrevista aos autores, editores e público o estudo das razões dessa alteração, que foi vista por alguns (nostálgicos) como o fim do único modo sustentável de criação de banda desenhada, por outros como um fim natural a uma certa forma de estar cultural da própria ideia de banda desenhada, e que entrara em crise. Esse modelo, seja como for, seria revisitado por muitos projectos, quer por círculos alternativos (que mais do que um fanzine auto-sustentável, procuravam fórmulas de sustentabilidade com a permanência de autores/personagens, temas, etc.) como nos casos da Hips!, da Ai-Ai, da Bizarro, quer por círculos preocupados com uma divulgação ampla do campo cultural que lhe era próprio, sendo o exemplo da Epitáfio o mais consolidado, pensamos. Nesse “modo de ataque”, também existiram gestos que procuravam a criação de bandas desenhadas redondamente inscritas em géneros reconhecíveis, sem grandes problematizações e que procuravam portanto conquistar estratégias criativas mais atreitas àquilo a que se pode chamar de banda desenhada comercial (sem que haja uma verdadeira conquista comercial, expectável por essa palavra). Aí tanto surgem exemplos de fanzines de círculos reduzidos (a título de exemplo, a 9 Gunas, de Aveiro) como tentativas mais arrojadas em termos de distribuição, como a Art Nove. Porém, quase todos esses projectos vieram sempre conhecer um qualquer fim e, na esmagadora maioria dos casos, um quase total esquecimento. Mais perto dos nossos dias, outras tentativas mais ou menos irmanáveis encontram-se em projectos como a Blazt ou a Sketchbook.
As bandas desenhadas incluídas nos projectos da Zona inscrevem-se nesse território a que dei o nome de “comercial” apenas no seu sentido de géneros, de tipologias de escrita e de desenho, ou de vontades criativas. Em termos pragmáticos de financiamento, edição e distribuição, o projecto arranca de uma forma humilde, mas sustentada, segura e associada a outros eventos (MotelX, um festival, etc.), de forma a querer talvez assegurar uma maior continuidade.
Os trabalhos que apresenta são muito variados, como é de esperar. Não podemos dizer –foco especial neste espaço – estarmos perante experiências inéditas em termos de escrita ou de desenho; os objectivos comuns e gerais destes autores são a criação de bandas desenhadas legíveis por um grande público, em géneros já estipulados (o humor, a ficção científica, o fantástico, o horror, nas suas variantes contemporâneas em torno de vampiros e lobisomens e ainda zombies...). Quase todos são pautados por uma construção mais ou menos convencional, e muitos procuram efeitos de uma espectacularidade relativamente simples. Nota-se como fundo idêntico uma atitude que se vê repetida vezes sem conta em toda uma série de projectos desta natureza, que é a da reprodução de formas de criação idênticas àquelas verificadas em certos circuitos de banda desenhada internacional, sobretudo norte-americana, provinda de projectos economicamente “alternativos” à Marvel, à DC e à Kodansha, mas que mergulham à mesma nas mesmas fontes de fórmulas. Ou seja, não se procurará na Zona outras naturezas da banda desenhada, experiências contemporâneas, explorações alternativas mesmo no interior de certos géneros, mas sim formas de respostas directas, de continuidade, de diálogo com essas construções.
Dito isto, é preciso ler estas publicações no interior desses limites. E, nesses limites, é um projecto que conquista o seu espaço de uma forma digna. Não apenas pelo visível ensejo em se apresentar com a melhor qualidade gráfica possível, que as tecnologias modernas de impressão digital tornam mais acessíveis (com a excepção de uns poucos acertos, a impressão é boa), mas pela reunião de autores portugueses, e alguns brasileiros e argentinos, como ainda pela forma de publicação a que nos referimos acima.
Repetindo, dada a natureza diversa entre cada número, é natural que se encontrem trabalhos de diferentes tons entre eles, e de várias valências. Uma das recorrências são as histórias curtas, que respondem ao tema em questãoora seriamente, procurando o “shock finale” do costume, ora de modo humorístico; outra são os “teasers” ou inícios de histórias, que se prometem continuar algures, mas raramente encontram esse desfecho e/ou desenvolvimento (Hugo Teixeira é o único que abre e fecha uma sua história, mas aquilo que abrira não desemboca da forma mais encaixada no fecho). Em termos de escrita, são variadíssimos os autores que pretendem auscultar aqueles temas recorrentes da crise existencial da suas personagens através de monólogos sofridos, usualmente acompanhados por acções extremas pelas mesmas, revelando um qualquer segredo ou trauma que está fora do nosso alcance, e deveria funcionar como isco para desenvolver essa personalidade, adivinhada a agir em futuros episódios. Mas as mais das vezes soam a promessas que jamais encontrarão a sua satisfação, precisamente porque se encostam em demasia em premissas banais, à trailer, mas que não revelam elementos suficientemente elaborados para virem a ser desdobrados numa história mais paudada e modelada. Fica a promessa, mas há um limite para promessas.
Em termos da dimensão visual, encontram-se todos os espectros: desde o fotorealismo de Man e Eduardo Monteiro (mais dado a pin-ups), às formas de alta legibilidade de Pedro Carvalho, Filipe Andrade, Carla Rodrigues, José Pinto Coelho e Rui Alex e o trabalho da dupla brasileira Matheus Moura e Caio Majado, a trabalhos mais expressionistas como os de Filipe Coelho ou Joana Afonso, a abordagens mais ilustrativas como a banda desenhada de Bruno Bispo e Victor Freundt, ou a desenhada por João Ataíde, ou ainda de contornos mais pessoais como Luís Lourenço (que recorda sobremaneira o trabalho de Pedro Morais nas tramas). Como um objecto de integração estranha, Richard Câmara também participa num dos números (ZG 1) com um pequeno exercício gráfico, quase oubapiano. Hugo Teixeira, talvez o mais conhecido deste grupo de autores, participa, como dissemos, com uma história em duas partes, relativamente afastada do seu traço mais regular, mas ainda assim próximo em termos de imaginário de autores como Tsutomu Nihei ou algo do género (ambientes pós-apocalípticos, pós-humanos, sem razões explícitas e abertas a uma exploração emotiva das razões que levariam a esse mesmo desastre).
Tudo isto constrói um cartão de visita suficientemente alargado para abrir alguma curiosidade e levar a uma convergência de autores que queiram conquistar um público interessado em abordagens mais convencionais e comerciais (em termos de criação) da banda desenhada. Alguns dos trabalhos sofrem de abordagens menos conseguidas, em termos artísticos, ou mesmo de escrita, mas não deixam de contribuir para essa mancha de sustentabilidade.
Para todos os efeitos, a Zona está criada.
Nota final: Agradecimentos a Fil, pela conversa. Para mais informações, seguir autores e aquisição, ver o blog da Zona.
Obrigado pelo interesse e pelo texto crítico com o qual concordo em absoluto. Vamos continuar a fazer evoluir o projecto.
ResponderEliminarUm abraço
Olá, André Oliveira.
ResponderEliminarEm primeiro lugar, parabéns. Espero mesmo que seja um fórum com alguma continuidade, mesmo que não seja sempre o tipo de banda desenhada que mais pessoalmente me persegue. O que importa é a sustentabilidade e a conquista de um público próprio. Sendo professor nalguns locais, tenho alguns alunos que gostaram do projecto e espero que alguma vez vos contactem e vos seduzam com os trabalhos deles.
Abraços e até breve.
Pedro