Num momento em que a banda desenhada é pasto para adaptação cinematográfica e televisiva, e tendo em conta que os maiores sucessos junto ao “grande público” e à “imprensa mainstream” ocuparão maior atenção – pensamos nos filmes em torno das personagens da Marvel e da DC, do Red, das séries The Human Target e Walking Dead, etc. - é sempre um ponto positivo ver transformações que bebem de fontes relativamente diversas, como o recente (mas cinematograficamente negligenciável) Tamara Drewe e este deliciosamente leve Scott Pilgrim.
Scott Pilgrim (6 vols., pela Oni Press, entre 2004 a 2010) foi apresentado em alguns círculos, logo ao seu início, como “mangá norte-americana”, e a verdade é que muitas das estratégias visuais, narrativas e emocionais da banda desenhada moderna japonesa são empregues de modo claro nesse título canadiano (antes que apontem um qualquer erro de argumentação, recordem-se que o Canadá é um país norte-americano, daí o epíteto anterior) No entanto, tudo isto é complicado pela ascendência coreana do autor, o que o coloca num paiol cultural de cruzamentos e influências que já não encontra obstáculos ou diferenciações de leitura em lado algum Como sair desse imbróglio de cruzamentos, linguagens e possibilidades? Como Scott: para a frente.
A parte visual e narrativa que o livro deve à “mangá” são as dimensões de mais fácil e imediata apreensão: um formato próximo daquele dos tankobon mais finos (seguido pela edição portuguesa); uma liberdade de composição de página que leva a um equilíbrio ora por momentos de alto dinamismo, típicos de acção ou imitando clichés de jogos de computador ou de animé, ora por estruturações mais calmas, permitindo momentos de diálogos calmos e pausados; uma figuração reduzida e estilizada mas que não deixa de conter todos os elementos necessários à transmissão das emoções necessárias (quase próximo da simplicidade/eficácia dos emoticons, para dizer a verdade); a capacidade para moldar um mundo fantasioso, ou melhor, efeitos fantasiosos, plena e naturalmente integrados num ambiente realista. Aliás, esses momentos parecem ser violenta e inesperadamente desligados do ambiente que havia sido estabelecido no início e a que se retorna depois na história restante, mas é essa mesma discrepância que dá algum charme a toda a diegese. Não estamos longe de escolhas aparentadas com títulos da mangá, propriamente dita, infanto-juvenil, de que as séries One Piece ou Naruto (pelas cenas de luta, sobretudo) são expoentes contemporâneos, mas a temática e o objectivo central de Scott Pilgrim é ligeiramente mais maduro. Uma maturidade cheia de humor escapista, ou um escapismo com laivos maduros. Ambas as leituras são, julgamos, possíveis.
O estilo de O'Malley é estilizado em extremo, através de uma busca por traços simples que recordam uma abordagem de suaves bandas desenhadas infantis. O facto de ter publicado pela Oni Press não é de somenos, pois é aí que encontraremos outros autores, norte-americanos, canadianos, etc., que se lhe aparentam na abordagem cool/estilizado/simples, de Brian Ralph a Scott Morse, entre tantos outros; mas O'Malley é aquele que mais se aproxima desse idioma mangá mundial. Mais, Scott Pilgrim é mais suave nesse sentido do que o seu livro anterior, Lost at Sea, o qual, mais realista e maduro no tema, não era pautado por este dinamismo bem-humorado.
Esta aposta da editora Booksmile, com experiência no mercado para crianças e adolescentes (tweens, na nova gíria), parece-nos ser bem-vinda, saudável e inteligente. A edição é muito cuidada (salvo uma ou outra página com um corte infeliz, mais radical do que na edição original), a tradução é excelente, fluida e integrada (não só mantendo o factor “cool” da linguagem adolescente para português corrente, o que é difícil, como encontrando trocadilhos com a nossa cultura, portuguesa, que funcionam bem. Exemplos: “Poo on you” = “Cocó para ti”, “Scott Pilgrim has two girls on the go” = “Scott Pilgrim tem dois amores”), e, o que é um aspecto importante, o preço é bastante convidativo. Esperemos que a sua distribuição seja cuidada e chegue ao público que merece, o qual, diríamos nós, flutua entre os adolescentes e os jovens adultos (o que não impede pessoas fora dessa classe de os ler, como nós mesmos). Além disso, o facto de ser um título relativamente recente e que terá a sua versão cinematográfica a estrear em breve, torna-o um produto de pensamento comercial bem pensado, ao contrário das apostas recentes da Asa, em dois títulos cujo “prazo de validade” é discutível.
Permitam-nos a continuação da discussão do livro (que na versão portuguesa apenas tem dois volumes para já, mas imaginamos que os completarão até a estreia nacional do filme, em Dezembro) através da sua versão cinematográfica, já vista por nós.
Scott Pilgrim vs. The World (Edgar Wright)
O filme em si é uma adaptação excelente. Não segue à risca o que estava previsto no livro, pois seria impossível respeitar todos os desvios que O'Malley cria em torno de Pilgrim, e o filme necessitava de uma maior concentração diegética (cujo grau de alteração tem sempre de ser aceite, mas depois verificado em relação à sua pertinência: o caso de Tamara Drewe é exactamente o contrário, demolindo-se o que havia sido conquistado pelo livro de Posy Simmonds). Por outro lado, as opções da versão cinematográfica em redistribuir papéis ou alianças parece-nos ter sido não apenas uma imposição dessa mesma linguagem como ainda um melhoramento em relação à trama emocional e construção psicológica das personagens. Por exemplo, algumas das opções de Scott são dadas ao companheiro Stephen, o que torna mais distribuída a relação entre os papéis das personagens e o facto de ser Michael Cera o actor torna a cagunfa de Scott mais tolerável, na opinião de muitos espectadores.
Além do mais, como é cada vez mais conforme neste mundo de franchising e merchandising, ou de media incorporados, a estreia do filme está implicada ainda numa rede de vídeo-jogos, animações, e outras parafernálias.
Há desde logo uma dimensão visual e de movimento que o cinema traz ao livro, um conjunto de instrumentos que lhe são próprios e moldam a história de modo diferente. A potencialidade que o CGI veio trazer ao cinema tem dado azo à exploração quase superficial dos efeitos que essas técnicas permitem, mas colocaram-se de lado totalmente as outras dimensões importantes no cinema, como, se quiserem, a escrita. Na falta de escritores verdadeiramente originais (salvas algumas excepções, como a óbvia e obrigatória referência a fazer a Charlie Kaufman ou Diablo Cody), esse sistema de produção de entretenimento vira-se para remakes (Dinner for Schmucks é um repescar de Le dîner de cons, de 1998, cujo protagonista “idiota” é um tal Monsieur Pignon, que influenciaria um autor português na criação da sua personagem principal...), fórmulas repetidas (“comédia romântica”, “crise adolescente”, “last stand”, etc.) ou então baseados em... jogos de computador, parques de diversões e até jogos de tabuleiro! (esperamos num espaço de 10 anos O Jogo do Galo. O Filme?). Um outro filão, obviamente, é o da banda desenhada, sobretudo a de super-heróis ou géneros contíguos. Aliás, “Hollywood has run out of ideas” é uma frase recorrente em alguma crítica norte-americana, mas essa crítica também poderia afectar outros pólos de produção cinematográfica. Apenas a título de exemplo, e para não citarmos blockbusters que criam fãs-acólitos automáticos, veja-se a curta-metragem de animação Sintel, cuja existência se deve basicamente para a promoção do programa de modelagem 3D, o Blender, e cujos restantes elementos o tornam num dos mais patéticos e terríveis exercícios criativos (e empregar esta palavra é uma benesse) dos últimos tempos. O CGI não é muito diferente do que antes de chamava “efeitos especiais”: se são eles quem se torna a espinha dorsal de um projecto, pode conseguir mesmo uma espinha concreta e sólida, mas despida de tudo o resto. A esmagadora desses efeitos, de resto, serve para a ontologia realista desses filmes, isto é, aquilo para que é empregue serve para sublinhar a “realidade” desse mesmo universo fictício: aqueles dragões existem mesmo, estes ogres são reais, estes miúdos montam mesmo vassouras voadoras e estes sabres de luz funcionam mesmo... raramente se procuram efeitos visuais que sirvam para a própria experiência visual, livre, do filme (talvez The Yellow Submarine seja um grande exemplo disso).
No caso de Scott Pilgrim, e em relação a esta crise dupla – crise da escrita, suporte pelo CGI – temos duas procuras positivas, porém: por um lado, a escrita, não sendo propriamente “the great Canadian novel”, ou sequer uma obra-prima para o século XXI, traz à baila uma rábula fantasiosa em torno das relações amorosas dos adolescentes contemporâneos bastante justa ao tempo, por outro, os efeitos, ainda que pertençam à ontologia realista da sua história, são tão deslocados e artificiais em relação à acção (em alguns momentos, recordar-nos-ão a cena dos “preços flutuantes” de Fight Club), que os tornam apetecíveis, cómicos, significativos e, mais importante, revitalizadores.
A utilização de toda a matéria do livro, já de si um pot-pourri típico da contemporaneidade do zapping e do “short attention span” dos saltos culturais torna Scott Pilgrim Vs. The World o que de mais perto poderá existir de encontro entre uma linha coesa narrativa e a estrutura youtube. Está tudo misturado, desde a cultura slacker (quase fora de moda) às bandas-animadas Gorillaz e Dethklok, as personagens-padrão trabalhadas (mais desenvolvidas no filme em termos de concept design, o que não poderia deixar de ser), as batalhas de músicos (recordando tanto as DJ battles ou os combates de instrumentos em concertos ou programas de televisão, como séries de animação), aos inevitáveis jogos de computador 8-bit (também isso pasto para novos sabores de índole punk), passando pela magnífica mistura de DDR e jogo de arcadas, imbuído naturalmente na cultura hipster japonesa (ninjas e o barolo). Nonsense? Não será antes um mega-diverso-sense? Talvez até seja ambos, mas qual é o problema? É um retrato mais fiel da vida do que as supostas lições de moral e de integridade que se transmitem com os melodramas Iron Man ou mesmo O Senhor dos Anéis. É um filme leve, não pensamos sequer que tenha pretensões de ser mais do que é.
Scott Pilgrim anda “na boa vida” e a vida dele é boa.
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