Estes dois livros pertencem à mesma colecção (Fleur) de três outros de que demos conta há algum tempo, sendo um de um autor recorrente, O. Deprez, e o outro de um estreante, Doublebob. Estão ambos, porém, na continuidade das explorações sobre as capacidades expressivas, estéticas e ontológicas da própria banda desenhada, como esta plataforma editorial nos tem habituado desde o seu início, em conjunto com toda uma outra série de autores ou projectos (como por exemplo Aidan Koch). Uma das palavras que surge associada à Frémok, enquanto nome de colecção ou título cíclico e exemplar de alguns dos seus projectos é a palavra “amphigouri”. E esta palavra é utilizada textualmente na apresentação do Lenin Kino de Deprez, e, retrospectivamente, a BlackBookBlack. Se historicamente aquele vocábulo dá conta de uma figura de retórica, a sua origem exacta é desconhecida e não consta de todos os volumes de retórica ou manuais de versificação, mas o que ela parece querer representar é a construção de um discurso carregadíssimo de referências ou instrumentos do pensamento a um tal ponto que ele se torna um monstro denso e confuso: onde parece ser criada uma legibilidade total por acumular explicações sobre explicações, elas vão-se anulando ou desviando, sem nunca cumprir um significado central. A palavra é composta por duas parte, sendo a segunda impossível de descortinar (goury parece ser composta ao acaso, mas Edward Gorey utilizou-a em alguns dos seus projectos, como as quatro antologias Amphigorey), a primeira o prefixo “amphi-” que quer dizer “ambos”. Ou seja, logo à partida quer apontar à co-existência de dois elementos que, à partida, não seriam compatíveis ou dois territórios que não poderiam coincidir enquanto recipientes de um mesmo objecto. Seja como for, na badana de Lenin Kino é dita ser “um tipo muito particular de narrativa [récit]”.
No caso da banda desenhada, mesmo no caso daqueles exemplos do seu campo mais expandido, isto leva-nos a crer que quererá apontar para algo mais do que a simples (nunca simples, mas…) ligação entre o texto e a imagem. Mais, faz-nos recordar aquela Gedankenexperiment do gato de Schrödinger, em que há hipóteses idênticas do gato estar vivo e do gato estar morto. Isto é, aplicado a este caso em particular, estes livros podem ser ou podem não ser tudo aquilo que eles parecem poder apontar ser: banda desenhada, livros de artista, apontamentos gráficos, estruturações de projectos artísticos, poemas gráficos…
O livro de Deprez é uma estranha combinação de pintura e construção textual (cada vinheta parece corresponder a uma superfície pintada, talvez acrílico), e pode haver um momento de distraído folhear que nos leva a pensar que não haveria uma associação de qualquer tipo entre cada duas imagens que ocupam as páginas deste livro, ou até que algumas das imagens sejam abstractas e não têm qualquer papel na figuração possível de Lenin Kino. O título aponta para duas coisas, embrulhadas uma na outra: em primeiro lugar, o pai (um dos pais) da Revolução Russa, em segundo lugar, a arte que esse homem pensava como sendo a das mais importantes. Essa seria uma pista curiosa de investigação para o escavar desta pequena obra, mas alargá-la-emos aqui por outros descritivos.
O livro abre com duas vinhetas aparentemente a negro, aos poucos, elas começam a ganhar mais texturas, profundidade e até algum grau de figuração, inclusive humana, mas demora a perceber a totalidade da sua compreensão. Depois vemos um corpo amortalhado no chão, uma torre de metal, uma cova, um féretro aberto na zona do rosto, um céu de cimento (?) atravessado por um pássaro, uma caveira no chão, um livro inidentificado. Voltamos às sombras e vislumbra-se o que parece ser um edifício (à la Frank Lloyd Wright), no qual, aparentemente, entramos. No interior, uma televisão, à frente da qual aparece um homem. Depois, penetraremos no interior das imagens veiculadas pelo televisor ou estaremos num outro espaço? Não é conclusivo, mas surge uma outra figura humana, fantasmática, antes de mergulharmos novamente num “intervalo” abstracto, nocturno, melancólico até. Duas vinhetas desirmanadas mostram um plano de composição no interior da qual vemos imagens soltas, como se se tratassem de fotografias, desenhos ou pinturas (no interior do universo de representação e materialidade da pintura de Deprez, eles poderão ocupar qualquer desses papéis) representando pessoas em actividades físicas várias, casas, paisagens (numa espécie de mini-construção que recorda os Atlas de Warburg ou de Richter, abrindpo-se assim para toda uma outra série de associações de agenciamento de imagens múltiplas encerradas num espaço/objecto de significado coerente). Depois, retornamos a exteriores, com complexos maquínicos, casas de madeira, e de novo a um outro edifício moderno, no interior da qual nos concentramos num cabo de alimentação ligado a uma ficha eléctrica. Aqui e ali, algumas vinhetas parece estarem ocupadas com uma trama ou uma malha. Voltamos às vinhetas pretas-cinzentas, abstractas.
A própria descrição implica necessariamente, ou “tortura” a matéria visual, a uma ideia de leitura linear - apoiada, claro está, pela própria existência de um livro, que “obriga” a uma sequência - mas é bem possível que ela não seja totalmente obrigatória. No entanto, nós seguiremos essa ideia, obrigatória, de um texto sequencial, em que os elos entre as imagens se fazem por uma qualquer qualidade de linear, mesmo que seja uma “forma particular de narrativa”, mesmo que amphigouri. A primeira ideia que surge dessa descrição é a existência de vários locais de passagem ou de comunicação, entradas e saídas - televisores, torres de comunicação, livros, casas, desenhos/fotografias… a morte? - e os respectivos agenciamentos que eles implicam. Não é possível, nem desejável, reduzir Lenin Kino a uma sinopse simples, pois ela não existirá; bem pelo contrário, toda a sua natureza almeja a multiplicação, quiçá infinita.
Num artigo inaugural sobre a recepção do cinema, pelo punho de Gorky, o escritor falava de um “reino das sombras” presente na tela. O cinema como forma de comunicação com o reino dos mortos, como transição entre a vida e a morte. Serão esses conceitos aqueles que Deprez explora neste livro?
A comunicação pode ser muitas vezes explorada como formas de aproximação entre dois locutores, mas em que a multiplicação dos canais, em vez de diminuir o ruído e permitir essa mesma aproximação, contribuir para a ambiguidade da mensagem. Modos de subverter essa ligação, ou perscrutar as maneiras de saborear o prazer imediato do acto sem preocupações de finalidades e teleologias. Parece ser esse o propósito do estranho ritual das personagens de Doublebob. Um grupo do que parecem ser operadoras de telefone fazem ligações, conduzem linhas e falantes. Alguns dos pormenores dessas operações parecem mimar pequenos jogos infantis com cordas e guita, como um complexo jogo do berço. (ver imagem a seguir)
O facto do autor utilizar o que parece ser caneta azul esferográfica por entre linhas a preto (grafite), faz pensar numa espécie de emergência a partir de um fundo comum, ou de uma qualquer diferenciação. Das várias operadoras, fisicamente idênticas, emerge uma mulher encapuzada, que passa a elaborar um jogo diferente de comunicação usando os mesmos instrumentos que usara na sua profissão. A imitação do famoso esquema da comunicação ganha então um uso paródico. Narrativamente, instala-se a seguir um pequeno drama: ela é despedida, afastada, volta a casa, onde alimenta o gato (que, segundo o título de um modo específico, e segundo as imagens de modo diluído, não tem boca, ou seja, não mia, não fala, estabelecendo outras formas de comunicação) e se deita no chão, permitindo assim a passagem para um mundo onírico, composto por toda uma série de episódios aparentemente desirmanados (ou cuja relação é apenas ditada pelos elos mais pessoais da memória e experiência). Num momento quase final, algumas personagens ditam que “ela é louca”, mas a última a afirmar qualquer coisa é a protagonista (estas são as únicas instâncias de texto escrito): “Eu sou livre e tu és louco”.
A afirmação da liberdade é o que estrutura, afinal, Le chat n’a pas de bouche… ao passo que a loucura do leitor é o desejo de impor uma qualquer naturalidade ou clareza modelar na narrativa que se nos oferta. Só se ultrapassará essa loucura, se se aceitar plenamente a liberdade de um amphigouri.
Nota: agradecimentos a Isabel Baraona, pelo empréstimo do livro de Doublebob.
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