Este livro fará parte de um número crescente de publicações que, dedicando-se a um tema específico (mas aberto, como se verá), se torna uma espécie de arca de tesouros, um manual de referências para desenvolvimentos futuros e consequentes. Strömberg é autor de vários livros de referência visuais ("graphic history", reza o sub-título), com exemplos de bandas desenhadas provenientes dos mais diversos quadrantes, respondendo a uma questão central, todos eles acompanhados de pequenos descritores e notas contextualizadoras, e um texto mais corrido que vai debatendo essa questão, esse tema, de uma maneira tão livre quanto inteligente. A diferença entre Black Images in the Comics e The Comics go to Hell (ambos da Fantagraphics) e este Propaganda está no tamanho, o que permite um escopo conceptual necessariamente mais alargado.
O livro está composto de uma maneira que recompensará todas as estratégias de leitura: a completa, de fio a pavio, a fraccionária (por capítulo ou por obra), a enciclopédica, lendo apenas aquela referência que se deseja. O arranjo gráfico, variado, simplifica esse trânsito modular. Infelizmente, algumas das referências são reduzidas a imagens literalmente de fundo, sob as vinhetas e descrições de outros trabalhos, algumas das quais ficam fora de qualquer tipo de alcance e apreciação.
Não se tratando propriamente de livros académicos, que procurem balizar as afirmações com todo o aparato crítico usual, ou integrando-o num discurso disciplinador, ainda assim a escrita do autor sueco neles é munida de instrumentos de atenção histórica, social, estilística, da especificidade do meio e até mesmo pessoais, o que torna as suas leituras marcadas e convincentes. A abordagem visual apenas a torna mais célere, modular, propedêutica e promissora a passos futuros. O facto de se tratar de um autor sueco, e afecto às instituições e órgãos mais importantes da sua divulgação, exposição e estudo na Escandinávia, numa primeira instância, torna-o mais apto a ter uma perspectiva o mais alargada possível, o que não aconteceria se se tratasse de um trabalho elaborado por um agente que estivesse integrado num dos pólos “centrais” da produção de banda desenhada (i.e., E.U.A. e/ou França). Existirão exemplos que contradirão esta nossa ideia apriorística, decerto, mas sabemos pela consulta de muitas dessas obras que as mais das vezes essa atenção é afunilada à proximidade imediata, abrindo-se apenas algumas excepções ao Outro. No caso de Comic Art Propaganda, ainda assim, o autor apresenta exemplos sobretudo oriundos dos grandes centros de produção, claro está, como os E.U.A. (em grande vantagem no cômputo final, o que não surpreenderá numa obra originalmente em inglês por uma editora britânica), ou o Japão, mas não é por isso que não abre espaço a tradições menos comuns entre o Ocidente, como as do Iraque, da Índia, da América Latina, etc. e, seja como for, esses são também os pólos centrais de determinados conflitos, sejam como palco ou agentes de guerras, quer de tensões raciais e étnicas cuja resolução é ou foi tardia, ou onde o proselistismo deste ou daquela convicção religiosa ou política é mais vincada em todos os azimutes da sociedade.
O autor remete o vocábulo “propaganda” a uma acepção mais recuada e neutra, longe da sua apropriação super-politizada e aparelhística dos Nacionais Socialistas ou do Comunismo Soviético ou dos sistemas militar-industriais das potências capitalistas do Ocidente, daí que o autor diga ter reunido quer “maus” quer “bons exemplos” de propaganda, vendo neste último grupo trabalhos que usam a banda desenhada para a promoção de novos comportamentos sociais, higiénicos, etc. Um panfleto que ensine as pessoas a lavar as mãos, a se recensearem para poderem votar, ou a separar o lixo, por exemplo, estará mais próximo dessa acepção de promoção do que da de propaganda de uma ideologia, estando mais próximas de direitos comuns e protecções mútuas do que o fortalecimento de um posicionamento faccioso, mas Strömberg vai explicando a razão pela qual a persuasão, em ambos os campos, é irmanável neste volume. “Incluí um bom número de bandas desenhadas neste livro que algumas pessoas considerarão que não é propaganda (se bem que quais dessas pessoas poderá variar). Na verdade, aquilo que passa ou não por propaganda é muitas vezes subjectivo e depende das crenças ideológicas, religiosas ou outras do espectador. A banda desenhada da Disney, por exemplo, poderá ser entendida pela maior parte dos leitores como material infantil inócuo. Mas não é considerado da mesma forma, porém, se se estiver a viver num país comunista ou socialista” (pg. 69).
Peter Kuper apresenta um prefácio em duas partes, sendo uma em forma de texto expositivo e a outra sob a forma de uma banda desenhada de uma página à la Magritte, expondo de forma clara também o que está em jogo, pela negativa, em muitos destes trabalhos.
É bem possível que uma análise mais restrita não permitisse a inclusão de certos trabalhos neste conjunto, apesar dos caveats e pedidos de negociação do autor. Comic Art Propaganda tem, portanto, pelos mesmos motivos e elementos, aspectos que o tornam um livro dotado de grande interesse e razões que nos levam a questionar a sua pertinência. Que os Chick tracts ou as obras nazis mostrando o sacrifício necessário do povo alemão à causa do III Reich ou revistas norte-americanas a retratar o Comunismo como um poço infernal de ateístas e desespero ou as revistas semi-hagiográficas sobre Saddam Hussein sejam vistas como propaganda, penso que encontrará uma larga margem de aceitação (tirando, claro, a opinião dos fundamentalistas cristãos, dos nazis, dos anti-comunistas furiosos e dos esbirros de Hussein). A inclusão de Tintin no Congo ou O Lótus Azul, das revistas do Super-homem contra Hitler, ou da Jane de Norman Pett, esticam já esse discurso de persuasão, mas não há dúvida de que no interior das suas máquinas de ficção e entretenimento, procuram não apenas ensinar algo de novo como moldar a perspectiva dos seus leitores, fazendo-os simpatizar com este ou aquele lado de um determinado conflito (quando falamos de guerras, etc.) ou de posicionamento sócio-cultural (a questão do colonialismo, sobretudo). E se a discussão de livros que discutem o aborto (quer contra quer a favor) ou o consumo de drogas (quer contra quer, pelo menos, a um uso mais informado) ou opções energéticas (a favor ou contra a energia nuclear) ou formas de emprego dos recursos económico-militares do Estado (como os livros que expõem as manigâncias da CIA versus os super-heróis a demonstrarem o seu apoio aos soldados norte-americanos nas Guerras do Iraque) alarga o leque do conceito de “propaganda” de uma forma interessante e produtiva, já a tangencial inclusão de Maus, de Palestine, de La Bête est Morte!, de Princess Knight de Tezuka, parece esticar a corda em demasia. Ou não?
Por exemplo, numa apreciação relativamente superficial deste livro num site, um recenseador falava de Captain Israel e de Palestine (J. Sacco) como bandas desenhadas de propaganda sobre os “dois lados” do conflito israelo-palestiniano. Que o primeiro seja claríssimo sobre qual o lado da vedação que defende, é óbvio, e mais, reduzindo essas questões à inócua, maniqueísta e pouco interessante fantasia da ficção de género dos super-heróis; que o segundo, mesmo tomando maior partido pela apresentação de um ponto de vista sub-apresentado no seu país de primeira publicação (os Estados Unidos, cuja situação de mediatização desse conflito é bem diversa da de Portugal), a do “outro lado”, procura antes pôr mesmo em causa a ideia de vedações e conflitos, perscrutando as origens, as consequências e o que impede qualquer tipo de efectiva resolução, exige muito mais dos seus leitores. Será portanto um bom exemplo de dois discursos diametralmente opostos sobre uma mesma questão, logo sinais de propaganda de intensidade idêntica mas de sinais contrários? Não nos parece, ou se o parecer, revelará uma ingenuidade perigosa.
Teremos que considerar essas inclusões em cada um dos capítulos e os contextos que eles propõem. Eles encontram-se divididos da seguinte maneira : 1. “Us Versus Them”, centrando-se sobretudo em representações raciais (retomando alguns dos pontos de Black Images), passando pelos grupos colonizados, os negros, os judeus e os muçulmanos; 2. “War! What is it good For?” explorando-se o uso da banda desenhada quer como instrumento de propaganda para o esforço de guerra, como nos casos dos super-heróis lutando na 2ª Grande Guerra (relembrando-nos do artigo de Chris Murray, “Popaganda”, sobre esse assunto, e imaginando que este livro ficaria reforçado com uma chamada para literatura secundária), quer contra a guerra (Barefoot Gen e as histórias de Kurtzman), abordando obras famosíssimas como Maus e outras injustamente mais esquecidas como La Bête est Morte!, de Dancette, Zimmermann e Calvo; 3. “You Dirty, Rotten Commie Bastard!” (que nos lembra de imediato John Cleese), focando quer a banda desenhada norte-americana que mostrava como os princípios do Comunismo são tremendamente perniciosos para todas as dimensões da sociedade humana, quer aquela que é empregue para um discurso de auto-consciência do trabalhador e do activista contra as hegemonias globais (Para Leer el Pato Donald e Octobriana encontram-se neste conjunto, assim como uma obra anarquista que utiliza o Tintim!), quer ainda a propaganda mais clara do Comunismo chinês (alguns dos quais trabalhos foram inclusivamente publicados em português logo após o 25 de Abril); 4. “Social Seduction”, que tanto agrega a banda desenhada anti-crime como a que mostra como fumar Camels é bom para a garganta, que tanto defendem a “curte” do consume de coca como se mostram todas as faces da moeda nuclear (inclusive uma publicação de Leonard Rifas, e o Energia Nuclear para Principiantes, tal qual publicado entre nós), e, last but not the least, a obra de Wertham que dá nome ao capítulo (e que não é neste livro, parece-nos, que encontra uma re-apresentação equilibrada, focando apenas nas consequências exageradas a que levou); 5. “Religious Rants” pode juntar hagiografias em banda desenhada como panfletos fundamentalistas, estranhas obras que de tão obscuras são famosas (Hansi: The Girl who Loved the Swatika) a leituras parcelares da obra de Schulz, já para não falar da colecção indiana Amar Chitra Katha e Hairy Polarity, uma estranha obra que tenta mostrar os princípios anti-cristãos e diabólicos da série Harry Potter; 6. “Sexual Slander”, onde todas as questões em torno do sexo e sexualidade se reúnem, falando-se da representação sexista das mulheres, reduzidas a alguns papéis-chave (atravessando quase toda a história da banda desenhada, o que não é muito diferente de qualquer outro meio artístico), passando pelo feminismo, o aborto, a educação sexual, os direitos dos homossexuais (fala-se de The Mirror of Love, de Moore) e até da mangá “girl power”; 7. “Political Persuasions”, centrando-se aqui em questões mais imediatamente políticas, ou melhor, partidárias, desde o uso da bandeira dos E.U.A. em dezenas de super-heróis, inclusive o então presidente Ronald Reagan - provavelmente nada irónico - em Reagan’s Raiders, o V for Vendetta, alguns títulos sobre as condições da vida na prisão (inclusive o livro de Hanawa), às respostas ao 11 de Setembro… São muitos, muitos, os títulos apontados por Strömberg, cada um inflectindo ligeiramente não apenas as questões internas a cada um dos capítulos, mas também, no seu conjunto, a própria noção de propaganda.
Seria um exercício tão interessante quanto fútil colocar mais uns quantos títulos no painel apresentado (falar de Che, falar de Paroles de taulards...), pois o movimento que Comic Art Propaganda provoca é em si mesmo suficiente para a virtualidade da sua expansão. A banda desenhada portuguesa não seria uma excepção, seguramente, sobretudo nos tempos do regime salazarento e do estertor do Império Colonial Português nos anos das terríveis Guerras Coloniais, tanto na defesa do colonialismo paternalista tão a nosso jeito, como o proselitismo bafiento da Igreja Católica. Se bem que não atingimos, pelo menos no século XX, momentos de facínora ira em relação a certas realidades sociais, o que não faltarão são formas insidiosas de preconceitos a funcionarem. Se estudássemos a representação da mulher na nossa banda desenhada, não haveria mãos a medir sobre a presença das perspectivas machistas, por exemplo. E que princípios ideológicos veríamos emergir num estudo confinado a revistas de banda desenhada portuguesa, desde a Visão à Lx Comics, da Art9 aos projectos da Zona?
Se objectivo superado há com Comic Art Propaganda é a maneira como nos sensibiliza a olhar a banda desenhada, de novo, como um instrumento com um poder particular de comunicação que pode ser empregue para a veiculação de determinados princípios. A banda desenhada não é nem mais simples nem mais imediata que qualquer outro meio, mas se procurarmos algum princípio essencialista para “defender” o seu uso propagandístico, ele encontrar-se-á na sua história social particular e nos seus mecanismos mediáticos: enquanto meio empregue sobretudo e em larga medida para um tipo de entretenimento rápido e de fácil captação por leitores mais jovens ou sem grandes hábitos de leitura, enquanto meio que obriga a uma fruição individual (o acto da leitura) e a uma forte componente visual (usualmente de grande estilização, fórmulas dramáticas e de intensidade de acção, vivacidade através dos diálogos e dramatização dos eventos - o que o torna mais dinâmico e persuasivo do que um mais seco discurso impessoal, supostamente objectivo e balançado). A sua associação à cultural popular, com o uso de personagens icónicas e famosas apenas torna quaisquer mensagens que queiram transmitir mais poderosas junto ao seu público-alvo.
Comic Art Propaganda é, portanto, um coffee table book que poderá servir de catalisador a estudos mais restritos e exaustivos, mas mostra desde logo os contornos imensos e assistemáticos, e insidiosos, acrescente-se, que a propaganda encontra para se expandir.
Nota final: agradecimentos ao autor e à editora, pela oferta do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário