Haverá certamente várias perspectivas a partir da qual analisar este livro. Escolhamos algumas.
David Soares será, esperemos nós, um autor sempre interessado em manter parte da sua criatividade associada à banda desenhada. Desde que o autor foi desbravando caminho pelo bosque da literatura, que conquistou com cada vez maior segurança e sucesso, é natural que o seu esforço enquanto artista de banda desenhada tenha encontrado menos espaço, ainda que se tenham verificado alguns contactos, quer com a pequena história com Richard Câmara num dos catálogos do FIBDA, o Mucha, e até poderíamos citar a novela Batalha, pela presença das imagens de Daniel Silvestre da Silva. Tanto os romances como as novelas como os contos de Soares têm procurado sempre um ponto de equilíbrio, fulgurante, entre o ancoramento na mais material das histórias, a mais desgarrada e livre das fantasias, e uma pesquisa sempre presente das sombras mais perenes da alma humana. Se bem que acreditemos que o processo deste livro possa ter atravessado vários níveis de colaboração no que diz respeito ao argumento - uma eventual obrigação aqui, um pedido ali, uma deferência noutro momento (por exemplo, algumas referências à Amadora enquanto palco de episódios históricos) -, o convite a Soares abriu caminho a esta resposta inteligente, criativa e pessoal de uma encomenda que poderia se ter coberto de contornos extremamente espartilhados e secos.
Podemos encontrar variadas características contínuas do escritor: as redes densas e significativas de citações; a preocupação em espalhar elementos recorrentes que concorrem para a emergência de uma tressage - os eléctricos, a mão sobre o papel, as breves metáforas visuais que consistem na invasão do plano visual por objectos antes realistas e depois transformados em símbolos -; a utilização recorrente de breves trechos de três vinhetas (à la H. Kurtzman?) numa tira para representar pequenas acções ou momentos de tensão emocional marcadas; a presença de criaturas ou objectos que ganham, mesmo que por um breve momento, uma centralidade máxima, objectual e que, logo, são carregadas com uma energia especial (a esfinge da televisão - filme fictício? símbolo da contemporaneidade? espelho da realidade retratada? -, a árvore que cresce, os soldadinhos de chumbo, e o ecrã amarelo da televisão)... E vejamos outras duas, que precisam de maior desenvolvimento.
Em primeiro lugar, a procura de linhas de força trans-históricas que tornem qualquer gesto num dos elementos de um padrão maior. O caso-chave é o do gesto de Manuel de Arriaga falando ao público, com o dedo indicador levantado e, no fundo, a nova bandeira da República portuguesa, com a esfera armilar e o escudo real, que permite fazer uma puxada de imagens para o passado, com o rei D. Manuel I e depois Hermes Trismegisto, cada um com a sua própria esfera armilar. O que torna esta associação interessante é que a “faixa” do texto não a domina nem confirma, e não existem pistas certeiras a que perspectiva pertencerá essa associação. Será do narrador? De uma das personagens citadas? Ou do próprio nível do meganarrador da banda desenhada? E que tipo de revelação quererá ela despertar? A decisão caberá ao leitor, tal como a de eleger que sentidos possíveis serão colhidos nessa associação, ficando assim a responsabilidade de encontrar esse tal padrão maior totalmente nas suas mãos, não sendo de forma alguma um sentido imposto, digamos assim, pela matéria discursiva. É antes um convite.
Depois, temos ainda a presença do acto da escrita como signo metalinguístico, a tarefa do escritor, testemunha mas também moldador da memória futura. O narrador é um pai que escreve uma carta ao filho, esbirro do regime em curso, adivinhamos. Dessa forma, inverte-se a relação familiar e literária famosa da Carta ao Pai de Kafka. Recordemo-nos de dois aspectos da vida literária do autor checo: o de que a carta nunca seria remetida e o do seu desejo expresso em queimar os seus escritos depois da morte (mas secretamente sabendo que esse cumprimento nunca seria feito, ou melhor, secretamente desejando a sua sobrevivência: pois, caso contrário, porquê fazer esse pedido a Brod, e não a alguém que desprezasse a sua escrita, o que não faltaria na família?). Esta nossa associação talvez seja abusiva e supérflua, mas há como que resquícios dessa outra carta neste livro, pois nós mesmos lemos - e vislumbramos as livres associações da memória, da imaginação, dos sonhos e dos medos do pai-que-escreve - as palavras que, no final, são apenas remetidas ao último correio do fogo imolador (mais um acto alquímico, caro a David Soares). [este elemento é também signo de tressage/entraçamento do livro: ver imagens abaixo do post].
A grande diferença é a ausência da matéria do fantástico ou mesmo do absurdo. Não há fuga do pesado realismo. Ou haverá? Não nos referimos somente à matéria plástica e criativa indicada (nesse sentido, há sempre uma flutuação entre vários regimes de representação), estamos a falar da camada da diegese, que se parece manter sempre nos trâmites da realidade histórica. No entanto, talvez a razão pela ausência do absurdo literário se paute pelo facto de que essa mesma realidade histórica já encerraria em si um sinal de absurdo total. A noite na qual o narrador faz perguntas, e isto apesar das suas próprias palavras, só encontraria a resposta certa numa outra madrugada, que apenas viria em 1974.
Estamos a insistir na parte do trabalho de David Soares, mas tal não significa que estejamos ou desejemos sequer secundarizar o esforço e contributo dos artistas envolvidos, já que este projecto conta, como se vê, com Richard Câmara, Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho e Daniel Silvestre da Silva. No entanto, é preciso fazer a ressalva que a escrita de É de noite se pautará, quase de certeza, por um guião completo, dominado pelo escritor e estruturado em vários, se não todos, dos seus níveis, como é notável pelas características indicadas acima. A escolha dos artistas, seja como for, é curiosa, na medida em que, sendo variada, orbita em torno de um núcleo coeso de desenhadores - com a excepção de Richard Câmara - que preferem uma linha mais naturalista, credível, e, no caso deste livro em particular, que exploram uma expressividade contida, sem melodramas. De novo, o peso pelo realismo é maior. E uma vez que a escrita se mantém idêntica, o programa da narrativa é coerente, e a planificação unívoca, há uma visível opção maior por momentos isolados, estáticos, mas representativos das acções maiores do que uma exploração por episódios menores, de acção (daí a ausência de muitos diálogos, de transições circunscritas, etc.).
Os capítulos inicial e final, assim como os separadores - imagens de televisores com imagens que recuperam um tema visual de cada capítulo - são de Richard Câmara, autor cuja abordagem é bem mais estilizada que os outros autores. O que é curioso é que, em contraste com a esmagadora maioria da produção de banda desenhada e de ilustração deste autor, estas páginas são tanto mais livres no seu traço como negras (exceptuando o amarelo doentio e libertador, a um só tempo), o que apenas sublinha com vigor o momento “presente” da história. Esse tempo poderá ser visto, com facilidade, para o longo regime do governo salazarista, mas parece que se deseja ir bem mais além do que um retrato meramente histórico, e até bem mais além do que o mero simbólico, para poder abrir o seu espaço de representação a algo de mais profundo e até partilhável com outros regimes análogos, regimes de noites silenciosas, escuras e cobertas de medo. Parêntesis políticos em que os primeiros e, ainda hoje os sentimos, últimos grilhões são aqueles que se instituem nas próprias mentes dos cidadãos, um medo que penetra os ossos e cada gesto diário: assim, mesmo com a queda dos regimes no papel e nas bandeiras, eles podem continuar a exercer o seu poder para além da tumba.
Notas: agradecimentos ao FIBDA, pela oferta do livro; e pelo dia de hoje, viva a República!
Merci bien, M. Constantini,
ResponderEliminarC'est un bon place, je l'ai vu. Je promets le lire au futur proche.
Pedro