10 de outubro de 2011

Grano Blu. Anke Feuchtenberger (Canicola)

Poderá parecer-nos estar a viver num momento em que existe uma maior diversidade de papéis femininos, ou de construções criativas e ficcionais em que o papel das mulheres atinge uma expressividade maior, mais efectiva e central, e mais moldada ao que hoje acreditamos ser a experiência da realidade. No entanto, essa consideração, sem quaisquer tipo de qualificações, estaria demasiado presa às circunstâncias do nosso próprio tecido cultural, que por vezes encontra na noção de “progresso” uma aplicabilidade quase universal. Estamos melhor agora do que antes, pensamos. E se isso é mais “verdade” no que diz respeito à tecnologia e ciência e saúde, também se verificará noutros campos da existência humana, como nas artes ou na justiça social. Afinal, conquistaram-se mais direitos, não é? (Mais)

No entanto, parece-nos, mais por intuição e um quadro de referências eventualmente limitado, que o leque de papéis femininos providenciado pela ficção, em termos gerais, e mais especificamente determinados meios conducentes a abordagens mais populares (cinema, televisão, banda desenhada) acabam por apenas criar diversidade no que diz respeito a aspectos superficiais: as mulheres surgem ocupando mais profissões, vários níveis de poder nas estruturas profissionais e/ou políticas, há mesmo espaço para personagens lésbicas, bissexuais ou transsexuais, e há mesmo mulheres “fortes”. Neste último caso, leia-se mulheres capazes de mimar o mesmo nível de disponibilidade sexual e capacidade para a violência que o mais tipificado dos agentes secretos (de Lara Croft à Alice de Burton). Já no que diz respeito à criação de papéis femininos em que o poder de decisão, inscrição social ou reversão das inscrições preestabelecidas, ou verdadeira personalidade assertiva, dominante ou mesmo legislativa, encontramos um quadro eventualmente até mais pobre na cultura popular do que nos anos 1940, por hipótese. Estudos que deslocam o papel profundo das personagens femininas nas narrativas bíblicas, por exemplo, ou aquele (que começamos nós a descobrir) revelado na Tapeçaria de Bayeux redimensiona ideias feitas sobre o suposto “progresso”.

Se o primeiro feminismo conquistou o acesso a realidades sociais como o voto das mulheres, foi necessária uma segunda vaga para ir mais fundo nas estruturas, desta feita simbólicas, conquistando-se um espaço especificamente feminino, mesmo ao nível da representação criativa (a écriture féminine de Iragaray, ou por outras palavras, a capacidade das mulheres de se representarem a si mesmas para si mesmas, que não corresponderá às ordens simbólicas instituídas pelo homem, ainda que vistas como sendo “naturais” ou “essenciais”). Uma das autores centrais nessa nova conquista foi Judith Butler, com o seu Gender Trouble. Incorrendo o risco de estar a fazer uma redução absurda e perigosa do seu livro, uma das suas teses centrais é que os papéis, práticas e identificações sexuais são irredutíveis a “categorias naturalizadas heterossexuais”, isto é, pelo menos em parte, a aparente simples e descomplicada dicotomização biológica entre sexo feminino e sexo masculino (a ultrapassagem de códigos binários é um programa importante). Ora, Butler sublinha que é na performatividade - no seu mais polivalente sentido semiótico, algo que é construído e sempre relativista - dos papéis que a identificação emergirá sobretudo. Isto é, não pré-existe um sujeito que cumpre essa performance, mas é antes a performance que constitui o próprio sujeito. A implicação teórica desta posição é que qualquer papel ideal ou natural anterior desaparece, e com eles os “desvios” ou “perversões” que surgiriam por conflito a um modelo perfeito.

É neste quadro complexo de história literária e artística, de teoria, pensamento e práticas que nos parece inscrever-se o trabalho de Feuchtenberger, matéria de nenhuma surpresa se tomarmos em conta que a criatividade literária, numa sua acepção alargada, é uma forma de criação de duplos, inclusive do pensamento: tentar formular na ficção conceitos da experiência. E é em contraste com outras bandas desenhadas em que a construção do papel das mulheres é ou mais convencional ou falsamente libertador (como no caso de obras como Barbarella ou Wanya, ou Alice, de Luís Louro, entre outros) que a obra da autora alemã conquista um local especialíssimo.

Este livro apresenta de um modo relativamente complexo três narrativas identificáveis, isoladas (como se notará pela diferenciação estilística na apresentação da matéria verbal de cada história), mas ao mesmo tempo relacionáveis através da dedução do leitor, elegendo certos elementos como transversais a todas elas. É como se fosse possível, através desses elementos eleitos, ligados por associações, imaginar que se trataria de uma mesma realidade, uma mesma história, repartida em três níveis diferenciados ainda que entrosados. Todas as histórias têm a particularidade de serem breves e circunscritas a um eixo espácio-temporal fechado: num caso, um quintal de uma casa, noutro, uma breve paisagem catastrófica, noutro ainda, um interior misterioso. As três histórias poderiam resumir-se da seguinte forma: a história de Éffe Érre, um homem que trata de um jardim, inclusive de uma pequena praga de lesmas, que queima num fogueiro; a de três mulheres que agem como enfermeiras num evento catastrófico, aparentemente causado por uma epidemia de grãos azuis; e a de uma espécie de mosteiro-infantário, onde criaturas muito jovens aprendem ritos e comportamentos que jamais se tornam claros para o leitor. Não existindo traços nítidos ou expressos das passagens e uniões dessas três linhas narrativas, caberá ao leitor a construção da sua liminaridade.

Apenas aos poucos nos vamos apercebendo de quais os acessos que ligam as três narrativas: o grão azul parece ser mortífero na história das três enfermeiras, mas alimento na das estranhas criaturas andróginas; o jardim de FR é assolado por uma praga de lesmas, mas parece que são elas as representadas pelas tais criaturas… Feuchtenberger parece fazer colidir uma apresentação desviante da sororidade por questões pós-humanas, monstruosas, híbridas, não para criar qualquer tipo de ficção científica distópica, mas para complicar as relações aparentemente lineares das nossas próprias categorias ao lermos este livro.

Estas criaturas a que nos referimos têm uma forma de comunicação que consiste na troca de fluidos, de uma espécie de baba ou teia que lançam da boca e se instala no corpo do interlocutor. Observamos aquelas que poderão ser as mestras ou docentes (as “leopardas”) e as mais jovens (as relações na parte do “mosteiro” é hierárquica e respeitosa, mas na sua transformação no nível do jardim, as lemas pretas - as jovens - devoram a lesma maior: será uma projecção de desejo de um nível para o outro, ou uma sublimação ficcional da vida animal num nível onírico? Questão por resolver). Aqui encontraríamos pasto para análise de um sistema semiótico pré- ou pós-Simbólico - isto é, antes ou depois da linguagem, casos respectivos das crianças pré-verbais e da psicose -, ou até mesmo mesclado, uma vez que estas criaturas têm tanto de crianças - a sua figuração recorda toda uma tradição fundada por Grace Drayton com os seus “Campbell babies” - como de pós-humanos - o hermafroditismo, a confusão com os gastrópodes, os rituais colectivos, etc. Vemos assim como a autora tenta delir tanto a supostamente nítida divisão sexual como ao mesmo tempo tenta criar formas de escrita (de banda desenhada) que lançam as suas próprias regras, e não se pautam por se reportar a modelos clássicos anteriores.

Feuchtenberger apresenta portanto uma complexa ficção que serve de resistência à hegemonia dos papéis sexuais. O Homem, Éffe Érre, é representado como uma figura sem qualquer dubiedade: os traços do rosto são másculos, os músculos proeminentes e visíveis, os pêlos como sinais secundários do seu sexo, as suas acções decisivas e transformadoras do espaço circundante mimando a política “masculina”. Poderíamos, ainda assim, criticar essa mesma opção ao reduzir a questão a uma dicotomia dessa espécie, como se a maldade e a transformação negativa do espaço ecológico fosse apenas apanágio do sexo masculino, contra o qual a feminilidade surgiria como bálsamo maternal (o que seria sublinhar ainda um outro insustentável, senão insuportável, cliché), mas os elementos da faixa dos “seres-caracóis” explora com complexidade as questões orgânicas e simbólicas, impedindo a que se caia numa representação simplista.

O livro presta-se ainda, como vemos, a interpretações em torno da saúde ecológica. Um dos capítulos, que parece não se relacionar de forma directa com os restantes, é o das três mulheres respondendo à crise do “grão azul”. Vestidas de uma forma tão reminiscente da moda do fim do século XIX como dos trajes dos “médicos da praga” do século XVII, elas agem como enfermeiras (mais um dos papéis tradicionalmente ocupados, “naturalmente”, por mulheres) numa paisagem desolada e mortífera sob a acção de um misterioso “grão azul”. Recordemos brevemente que azul é, na teoria das cores de Goethe, aquela que está mais próxima da escuridão, apenas tintada pela mais leve luz. Independentemente da distância e aplicabilidade que as ideias de Goethe possam ter na física e na ciência, elas revelam-se ainda hoje pertinentes na esfera criativa, e a autora alemão não estará, imaginamos, distante desse uso. Numa obra a grafite, a palavra-cor “azul” aplicada desta forma apoia-nos na formação mental de uma dimensão perigosa desse material: não-natural ou venenoso, atraente e mortífero, sedutor e aniquilador.

A narração externa exercida através de didascálicas, a flutuação da pessoa do narrador, o uso de um número conciso de imagens por prancha, e até o imenso tamanho da publicação (30 x 42 cm) tudo leva não só a uma velocidade menor na acção - o número menor de imagens leva a uma leitura mais rápida, é verdade, mas no plano de representação cada evento retratado torna-se mais carregado do que se se seguisse uma estratificação de acções - mas ainda a uma qualidade quase alegórica. Dizemos “quase”, pois não pensamos que Feuchtenberger deseje que possa cristalizar-se qualquer exegese da sua obra, e muito menos reduzir-se a um programa específico de discurso.

Noutras ocasiões, expusemos algumas ideias que são possíveis de discernir no uso da grafite. Com Baetens, encontramos aí uma opção política, mais do que meramente estética, no quadro contemporâneo dos estilos e técnicas de reprodução acessíveis aos autores de banda desenhada. Acresce a isso o facto de que a grafite remete a um só tempo para um passado longínquo, para as origens míticas da própria arte (a rapariga de Corinto, na história de Plínio), como para uma dimensão orgânica indiscutível (o carvão enquanto sinal da morte empregue num acto vivencial - e a forma como o personagem masculino acaba com as lesmas é notório). Todas essas camadas de sentido devem estar operativas na abordagem e fruição completa de Grano Blu, de que este presente texto não é de forma alguma um exemplo.

Quando se fala de resistência face a regimes de representação e figuração, a banda desenhada não é alheia a gestos maiores que a cumprem. Este é um deles.

6 comentários:

  1. Näo gostei nada deste teu artigo; mal pensado,...e vitíma de grande confusionismo... pegas numa das pessoas que mais mudou o panorama da bd no final dos anos 80,e encalhas no facto dessa pessoa...ser mulher...
    Anke Feuchtemberger
    foi bastante influente numa nova geracäo de autores, sobetudo " por ter feito escola-na escola" ou seja nas belas artes de Hamburgo ...(wittek por exemplo foi aluno dela e näo podia ser mais díspare) ...

    e ficas aqui a debitar sobre mulheres e feminismos da treta , quando há bastante mais a dizer...e metes ao barulho Vanias, Louros etc, a tracar paralelos onde há mundos de distäncia...(????!)
    Afinal é um problema que a autora näo seja autor?

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  2. Olá, Teresa.
    És totalmente livre de não gostar dos meus artigos, mas não poderás dizer que sou incompleto nas minhas leituras, pois jamais desejo ser completo (até por ser impossível esgotar uma verdadeira obra de arte).
    A meu ver, os instrumentos de leitura trazidos a lume pelos estudos feministas e de maiores implicações culturais são capazes de despertar alguns dos sentidos mais interessantes e centrais desta obra da autora, mais do que uma abordagem mais estritamente estética (que empreguei bastas vezes noutros momentos). E é verdade que existem mundos de distância entre as obras que cotejei, mas é por isso mesmo que elas vincam ainda mais os aspectos que PODEM ser tornados paralelos, sobretudo as recepções que essas obras tiveram no nosso mundo particular.
    Já não acho que estejas correcta em querer negar-me a possibilidade de utilizar algumas das noções que emprego, chamando-as de "treta". Isso revela não apenas alguma ignorância como má vontade no seu emprego. Porque dizes que são "da treta"? Porque não gostas simplesmente ou não concordas e tens argumentos que queiras utilizar para contrabalançá-los? Se sim, utiliza-os. Se não, não imites as atitudes anti-intelectuais que mais abomino.
    Até breve,
    Pedro

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  3. Näo gostei deste artigo...

    E antes ser a anti-intelectual , do que centrifugar alhos com bugalhos e fazer disso tese de bd..
    Anke Feuchtenberger näo é um caso de género, reduzi-la a isso é um feminismo da grandessissíma tretagatin

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  4. Ou;a arte universal é masculina, e é preciso a cunha feminista para justificar o direito de A.F.estar onde está?

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  5. Bom, não sei se o anónimo é à mesma a Teresa, mas continuo a aceitar que não se goste, é um direito que assiste todos os leitores.
    E onde é que eu reduzi o caso da Feuchtenberger a um caso de género? Não deixei pistas durante o texto, de que haverá outras visas de análise desta obra? Não tento apontar algumas, apesar de as não perseguir de forma mais sustentada?
    E, sim, esse é mesmo o problema: a arte "universal" ainda é masculina, e ainda será necessário algum trabalho para que o não seja. Mas neste caso em particular, ainda estou a utilizar instrumentos que, para ti, estão ultrapassados.
    As minhas desculpas pelo meu atraso.

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  6. ups,nada de anonimatos...
    Este livro é uma pequena parte de um maior...e queres dizer, que a temática deste livro... é ...feminista ( ???!!!!)

    E estás enganado;a arte nunca foi sequer uma conquista, esteve está e estará desde o inicío ao fim dos tempos, com a humanidade...
    Fazes-me lembrar aqueles muculmanos que chamam feministas às mulheres que usam calcas...
    E sempre gostei de ler os teus artigos, e qd irritam, ainda gosto mais, pk abunda tudo aquilo que é defeito nos intelectuais..o que para mim é muito inspirador

    bjecas geladas

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