A intimidade porém, faz-se auscultar de várias maneiras em O céu é meu é meu o mar. Cada página é ocupada por apenas uma imagem, sendo essa imagem, pelo menos aparentemente, um fac-simile de uma página de um bloco de desenho, possivelmente papel de aguarela, pelas texturas reveladas sob as passagens das cores diáfanas e sobrepostas, que mal se contêm no interior de linhas pretas delineadas a pincel, aparo ou caneta de tinta-da-China. (se bem que é possível que haja, aqui e ali, manipulação digital para introduzir um pormenor mais realista, um logotipo de um sobrescrito, uma fotografia). Há portanto uma passagem entre o diário gráfico - e toda a política, digamos assim, que o rege: a sua intimidade, a sua vontade em encerrar-se no mínimo tempo de partilha, talvez mesmo a invisibilidade absoluta, a despreocupação esteticizante ou estilística, a proximidade com o gesto do rápido apontamento, fugaz e desimportante - e o livro ofertado à leitura - nessa esfera, o desejo de partilha absoluta, a sua entrega e perda junto ao leitor, a sua queda no objecto público, a integração social numa tradição, num género, num estilo, etc. Um não é de forma alguma o equivalente do outro. Se fisicamente podem não aparentar quaisquer diferenças, podem até mesmo confundir-se no mesmo objecto, os seus contornos ontológicos, e portanto éticos e estéticos, não são irmanáveis. São distintos em quase todos os seus pontos. Essa transformação é já em si mesma de um interesse agudo.
Os diálogos entre um e outro revelam daquelas filosofias que têm tanto de inocente como de ingénuo, mas sobretudo têm de embevecido e de mergulhado no acto de viver sem mais. “A vida não acaba. Apenas muda. Como o amor, nunca acaba. Acreditas na eternidade, Paul?”, pergunta Maria. A voz de Paul, porém, é tanto reveladora do peso da existência como do cinismo que quem vive de olhos mais abertos, e talvez menos apaixonados. “Vou só regressar à minha vida”.
O autor do livro opta por utilizar, para a “voz” de Paul, letras maiúsculas, e para a de Maria, regras mais normalizadas. Essa flutuação é algo desequilibrada, tornando a presença de Paul, já de si central, focalizadora da acção, demasiado pesada em relação à da sua jovem amante. O facto de serem letras mecânicas sobrepostas aos desenhos, sem traços de manualidade, tornam a sua presença visível algo fria e desligada da matéria visual. Esta pauta-se pelas características já apontadas, da leveza e brevidade do desenho ou da aguarela à vista dos objectos e das paisagens próprias do diário gráfico (mas há pelo menos um caso em que num só plano de composição se sobrepõem duas sensações do protagonista: a sensação da realidade e as sensações do foro interior, os “turbilhões abissais”). A opção por as colocar no centro de uma mancha negra tanto nos obriga a focar na imagem, e menos na sua presença no objecto, como nos isolam nelas. Há uma oscilação entre imagens na horizontal e outras na vertical, mas tirando o conteúdo imagético, não é claro qual o modo que se pretende instaurar como esse movimento, que momentos se desejam marcar com essa diferenciação, já que não parece coincidir com a narrativa. Já o facto das imagens coincidirem quase sempre com uma perspectiva ocular da própria personagem (com uma ou duas excepções) ajudam talvez a sublinhar a construção subjectiva de toda a história, fazendo com que todos esses elementos, em discrepância ou desequilíbrio interno, se encaixem precisamente na falta de unidade - psicológica, de humor, de vivência - da experiência humana (serão opções as que estão disponibilizadas em The Daugther of Time? Caso o sejam, as do livro revelam uma escolha mais desviante mas por isso mais apropriada à proximidade da intimidade desejada). E há ainda a última imagem, da parte “ficcional”, que parece querer roubar-nos à esfera das personagens principais, mas surge como uma ponta solta.
Uma breve troca de impressões com o autor levou a um entendimento que o interesse maior ou original estava no gesto que é permitido cobrir pela manutenção dos diários gráficos, cuja natureza não se presta propriamente para as narrativas, mas antes para uma acumulação de ideias desconjuntas, ou inconjuntos, como queria Pessoa, em que poderão, decerto, emergir elos temáticos, visuais, ou outros, mas a causalidade não é de forma alguma obrigatória. O emprego de uma trama narrativa oferecida permite essa associação, ainda que não seja possível chegarmos a uma ideia final - nem tal é desejável - sobre a precedência das imagens sobre o texto, ou quais as condições de produção das mesmas em relação à “adaptação”, etc. O mais importante é tomarmos o encontro de dois movimentos aparentemente contraditórios: o acto livre, despreocupado, quase votado ao silêncio e à invisibilidade do acto diário do desenho, e a programação e implicações do desejo ficcional/narrativo. No blog do autor, encontraremos outras breves narrativas, ou até mesmo adaptações de (des)troços de obras lidas, situações relâmpago, cujo fascínio é facilmente apreensível por quem partilhar das mesmas sensações. Micro-narrativas num registo ainda mais caligráfico, e sem o recurso a cores, reforçando a ideia do apontamento, da captura da vontade momentânea. O que é curioso é que se nota ainda também numa recorrência de alguns temas, talvez mais marcado o do “encontro entre a espiritualidade religiosa e outras formas de entender o universo”, como escrevemos ao autor, incluindo a ciência. Mas talvez seja mais do que isso, talvez sejam os interstícios em que essas áreas se encontram e se interseccionam e se friccionam, libertando uma nova matéria de pensamento… A veia autobiográfica, pelo menos da “2ª” parte de O céu é meu… é possivelmente um pequeno desvio, mas apenas o tempo ou novas experiências publicadas dirão qual o seu factor de permanência.
Nota final: um agradecimento ao autor, pela oferta do seu livro. Para mais informações ou obter uma cópia, ver o blog do autor. As nossas desculpas pela falta de qualidade das imagens, não imputáveis ao autor.
uma meta-crítica seria um exercício interessante, mas talvez despropositado, e não me atreveria. só uma justificação da inclusão de páginas ao alto: podia ter tirado melhor partido dessa opção se tivesse conseguido dar-lhe uma pertinência narrativa, que de facto não tem, no entanto não é completamente gratuita, será redundante, a intenção era reforçar o carácter objectual, manipulável,do livro e a similitude com os diários gráficos; já um outro autor a quem mostrei uma maquete tinha duvidado da sua eficácia, reconheço que com alguma razão...
ResponderEliminarBoa tarde
ResponderEliminarO Museu da Presidência da República vai inaugurar amanhã dia 23 de Novembro, no Palácio da Cidadela de Cascais, a exposição “Jogo da Glória - o Século XX Malvisto pelo desenho de humor”, comissariada por João Paulo Cotrim. Trata-se de uma viagem pelo século XX português que retrata os principais acontecimentos políticos e sociais, públicos e privados que o marcaram, através do humor gráfico. Em paralelo a esta exposição, o Palácio da Cidadela de Cascais também vai poder ser visitado pelo público.
Caso pretendam receber informação adicional agradeço que me contactem através do mail ocasaleiro at presidencia.pt
Com os melhores cumprimentos
Óscar Casaleiro
Serviço de Comunicação do Museu da Presidência da República