Versão espanhola da recente edição de New York Line by Line, por sua vez reedição de uma obra de 1967 simplesmente intitulada New York, esta é uma colecção de desenhos de um ilustrador alemão cujo nome era Werner Kruse e que assinava como Robinson (há uma pequena nota biográfica no final do volume pelo filho). Trata-se tão-somente de uma colecção heteróclita de desenhos representando cenas panorâmicas da cidade, a partir de vistas no topo de arranha-céus ou de uma qualquer esquina de uma famosa rua da cidade, ou então trata-se de uma breve proximidade a uma fachada, uma loja, um interior, uma cena passada num jardim. O resultado é uma dessas obras que, presumivelmente, dizemos nós, não sem alguma soberba, será mais comentada e amada por praticantes das disciplinas envolvidas ou envolventes do que por um público mais generalizado. Robinson parece ser um daqueles autores a que se dá o nome de “cartoonist’s cartoonist”, querendo com isso apontar para autores mais famosos entre os profissionais de um métier do que do “grande público”. A soberba a que nos referíamos estará no facto de isso soar como uma espécie de grupo fechado, cujo quadro de conhecimento não é aberto mas exige um qualquer ritual ou pelo menos uma senha… mas isso não é de todo verdade, já que os livros existem, circulam, citam-se, e reproduzem-se pelos canais possíveis. Se estes são reduzidos porque a esmagadora maioria deles estão entupidos pelas mesmas referências de sempre, é uma outra ordem de problemas.
Apesar de não podermos dizer que Robinson-Kruse tenha podido deixar uma marca na história da ilustração norte-americana - pela simples razão de não circular nesse circuito - há algo porém nestes desenhos que, página a página, nos fazem recordar muitos autores desse mundo, sejam eles americanos ou estrangeiros que tenham ali construído a sua carreira. Parte da razão disso tem a ver com o trabalho de linha. Seria exigida uma cultura tremenda da história das marcas gráficas, que não temos, para poder fazer um historial dos avanços e recuos da presença desta ou daquela atitude na marcação de linhas nestas disciplinas, mas arriscar-nos-íamos a dizer que o advento do desenho a linha, sem mais apoios, e procurando soluções de simplicidade e leveza, é algo de muito moderno, numa primeira fase graças aos ilustradores europeus das décadas de 1910-1920 (Emmérico Nunes, Otto Dix, Karl Arnold) e depois nos Estados Unidos, pela década de 1960, com Al Hirschfeld e Saul Steinberg. Aliás, é com estes dois autores, o primeiro o “rei da linha” e o segundo que levou a “linha a passear”, que as afinidades com o autor alemão nos parecem fortíssimas e se fundam precisamente nessas ideia de que a linha é, em si mesma, marca expressiva o suficiente.
No prólogo, escrito por Matteo Pericoli, ele mesmo autor de uma fabulosa obra dedicada à cidade de N.Y., Manhattan Unfurled (e que seria celebremente empregue como capa do álbum-tributo To the 5 Buroughs dos Beastie Boys) - e com a qual as associações são óbvias -, escreve uma coisa muito curiosa. Diz ele, parafraseamos, que a linha não existe no mundo real mas que é antes um processo criativo que não “representa a realidade em si, mas deseja contá-la”. A linha como contadora. Não apenas contorna os objectos, como no gesto amante da rapariga de Corinto, mas conta a figura, transmuta-a em algo de transmissível, uma história.
A verdade é que as imagens de Robinson não podem somente ser descritas como… “descrições”. Não são - não é jamais possível sê-lo - retratos fiéis, representações exactas, devoluções prístinas, efeitos de realidade. São sempre relatos: do que se viu, de como se viu, do que se deseja contar. Nalguns casos, há mesmo estranhas histórias em potência, como esta imagem nos jardins do MoMA. Não é apenas a distribuição dos objectos no plano de composição, e o equilíbrio exacto entre as manchas negras e as figuras a finas linhas, ou o modo como as diagonais das janelas, das fachadas e do tanque de água se correspondem. São as arestas das esculturas de Calder e de Boccioni contrastando com as linhas suaves das outras peças e dos visitantes, são as tramas escuras de todas as estátuas contrastando com as áreas brancas dos visitantes. São os ecos internos entre os pares de pássaros e o homem olhando a mulher que olha a estátua de um homem de perna dobrada que a olha a ela. É a interposição, entre esse homem e essa mulher de uma outra escultura, de uma família (promessa? potência? expectativa normativa?) de Henry Moore. É a outra mulher, ao fundo, petite, observando de cabeça inclinada para o robusto corpo feminino da escultura de Lachaise. É o director ou curador observando a cena de uma janela, numa posição tão privilegiada quanto a nossa, que também observamos.
O sentido de composição do ilustrador é apuradíssimo, e por vezes atinge um grau de densidade quase impossível, que torna ainda mais maravilhoso o facto destes serem desenhos a linha. É possível que no nosso tempo, afectado e pejado de toda a sorte de instrumentos gráficos digitais que permitem manipulações das imagens de uma variedade assombrosa, que parte da produção de Robinson, e a sua valorização, passe quase desapercebida. De certa forma, é um fenómeno idêntico ao de novos espectadores das animações dos irmãos Whitney ou de Jules Engel não compreenderem o alcance desses projectos, depois da existência doméstica das visualizações do Windows Media Player… É a dessensibilização cultural por excesso.
Quase todas as imagens que vimos nos tocavam as cordas da reminiscência. Vemos uma linha e é como se fosse uma corda de uma lira, é como se essas cordas, de Robinson, tangessem do mesmo modo que outras cordas de outros autores, anteriores ou posteriores, mas com os quais criamos as nossas próprias linhas de passeios…
Um dos desenhos mostra uma freira a atravessar o parque Bryant, com algumas das meninas do colégio. É irresistível essa imagem de uma Nova Iorque transfigurada por uma ilusão de inocência, segurança outonal, e um certo grau (aos nossos olhos, de hoje) de estranheza. Mas é irresistível ainda mais não o comparar com um livro ilustrado de 1939, um dos vencedores Caldecott, o Madeline de Bemelmans. Ou com o trabalho de Sempé em Nova Iorque, com as suas figurinhas isoladas na imensidão desta cidade, tão perfeitamente expressas nas suas composições, e nesta igualmente.
A atenção que Robinson dá a cenas de pormenor, à fachada de uma loja, à profusão de cartazes e sinais encontrados num canto, numa taberna, num interior, e até mesmo o trabalho de aguada que dá para criar volume, densidade e ambiente aos seus desenhos, são por demais próximos aos do poeta da decadência urbana de Nova Iorque, Ben Katchor.
Uma brevíssima colecção de semáforos, sinais de trânsito e de informação, placas com nomes de ruas, parquímetros, sinais do metro e candeeiros de rua, dispostos lado a lado como numa absurda exposição de suspeitos, ou num catálogo de equipamento urbano, faz lembrar muitas das composições de Steinberg, cujo trabalho de catalogação do mundo é por demais conhecida. Aliás, uma outra imagem, anamórfica, de um mundo cosmopolita-provinciano visto a partir do topo do Empire State Building tem um eco numa das mais famosas capas para a New Yorker do artista romeno-americano, que mostrava o mundo inteiro a partir de uma janela da 5ª Avenida. (A perspectiva olho-de-peixe poderá lembrar-nos ainda centenas de outras imagens similares, como duas belíssimas de Ricardo Cabral, já aqui comentadas brevemente).
Com paisagens a abarrotar de gente ou quase desérticas, de uma máxima intimidade ou num afastamento quase divino, atencioso para com a mais discreta das esquinas ou deslumbrado com a imensidão majestosa da Grande Maçã, as imagens de Robinson são de uma delicadeza desarmante, sobretudo se tivermos em conta que, apesar de tudo, a escala humana nunca abandona estas imagens. Nem que seja pela presença da própria linha, que não deixa jamais de fazer adivinhar que esteve, ou está, uma mão por ali.
Nota final: Agradecimentos a Sérgio Bruno Pires, pelo empréstimo do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário