
No entanto, temos testemunhado uma acelerada multiplicação de valências, possibilidades, haustos, experimentações, fugas, nos últimos anos, que vêm reforçar o papel social e estético da banda desenhada enquanto disciplina artística cada vez mais aberta, mesmo no perigo (mas porquê entender esta situação enquanto perigo?) de que a sua linguagem ou o seu emprego mais convencional se venha a perder ou pelo menos diluir…
De acordo com Tim Gaze, autor deste grande livrinho, em vez de pensarmos nas imagens e no texto como dois sistemas semióticos opostos, ou pelos menos de natureza muito divergente, deveríamos considerar o seu contínuo. É claro que o texto, numa primeira instância, é percepcionado como imagem. Afinal, vemos as letras antes de as ler, e antes de as escrever aprendemos a desenhá-las. No entanto, se nos munirmos de instrumentos de abstracção e teoria, como a semiótica de Peirce, apercebermo-nos-emos das diferenças de interpretação que estão em jogo face a ícones (as imagens) e símbolos (as letras) (e a isto voltaremos). Seja como for, nesse sentido, podemos considerar algumas experiências em que a imagem surge num seu valor textual (desde os enigmas figurados ao movimento lettriste, passando mesmo pelos variadíssimos projectos de instituir uma linguagem infográfica, inclusive o Isotype) ou em que o texto é utilizado no seu valor visual (da micrografia hebraica e a pintura caligráfica chinesa aos caligramas de Apollinaire, dos vários capítulos da poesia visual às intervenções tipográficas do futurismo, de Paulo de Cantos, de Massin). Tim Gaze tem continuamente demonstrado no seu trabalho e discussões um interesse em beber de uma família muito alargada de referências para construir os seus próprios processos (muitas vezes estocásticos, mas que poderão levar a resultados coerentes) de criação. No posfácio de 100 Scenes, ele cita Oscar Domínguez e Max Ernst, Michael Jacobson, os lettristes, Andrei Molotiu e Henri Michaux e muitos outros exemplos, bem diversos entre si, mas todos eles concorrendo para essa ideia que elimina a separabilidade perceptiva, cognitiva e, eventualmente, semiológica, entre escrita e desenho.
Mais importantemente, aponta os seguintes aspectos: primo, que pretende irmanar-se com essas obras “tanto do domínio da literatura como da banda desenhada”; secondo, e correlato do ponto anterior, que “toca em duas áreas emergentes: a banda desenhada abstracta (…) e a escrita assémica”; tertio, que apesar de utilizar sobretudo manchas de tinta-da-China sobre papel (e já voltaremos ao aspecto material), não quer ser confundido com o teste de Rorschach, o qual é uma “ferramenta analítica. As minhas [manchas de tinta] querem servir ao estímulo da imaginação de pessoas saudáveis, por prazer”.
Este último passo é problemático na sua assunção sobre “pessoas saudáveis”, mas o que Tim Gaze talvez queira sublinhar é o facto das suas manchas não pretenderem constituir-se como um sistema restrito de interpretação estatística e clínica como o testo (fechado) de Rorschach. Mais importante ainda são os outros dois pontos que tenta demonstrar, em primeiro lugar, os domínios sociais (económicos, de distribuição, de divulgação) em que se pode inscrever, e em segundo, que papel pode ganhar em termos de “desenvolvimento e pesquisa artística” dessas mesmas áreas, as quais, graças ao próprio Gaze, se tornam potenciais áreas gémeas.
As ligações a áreas várias é assustadoramente complexa e multidisciplinar. Acompanhem-se os tremendos passos expostos por Andrei Molotiu no seu blog, e para uma história mais condensada mas tão vivaz dos encontros destas disciplinas (que podem não ser díspares), veja-se o texto que Domingos Isabelinho escreveu sobre este mesmo livro em The Hooded Utilitarian.

Uma das grandes (ainda) e vexantes (ainda) questões da crítica literária, que também se estende a outras disciplinas artísticas, é da sua categorização, implicando uma imediata emergência de instrumentos próprios de apreciação, análise e subsequente valorização, se não mesmo hierarquização. Ao mesmo tempo, esse caminho não pode levar a uma absolutização desses mesmos instrumentos, nem a legislações universais. Isto é, não poderemos julgar um determinado tipo ou categoria de texto - se concordarmos, logo à partida, com essa categorização - com um outro. Por hipótese, esperar de um texto da literatura infantil os mesmos elementos que um romance contemporâneo, ou esperar que um romance de ficção científica obedeça aos mesmos princípios cognitivos que funcionam na leitura de um ensaio. Tudo isto é claro, mesmo quando temos, de facto, literatura infantil que explora aspectos usualmente empregues na literatura contemporânea (experimentações no tempo diegético, explorações de uma vagueza conceptual, matérias emocionalmente profundas e jamais resolvidas, não-ditos, etc.), ou romances contemporâneos que empregam elementos do universo infanto-juvenil (personagens-tipo, estruturas simplistas mas empolgantes, soluções ex machina, emoções ou básicas em si mesmas ou com um tratamento básico, etc.), ou discursos científicos que podem misturar os dois modos (ficcional e ensaístico).
Quando se abordam textos “visuais”, essa questão torna-se ainda mais complexa, pois todos aqueles instrumentos que a narratologia nos oferece - focalização, tempo da história versus tempo da narrativa, velocidade e ordem do tempo, personagens, narrador, fábula e história, metalepses, etc. - vão pela janela fora, e é-se obrigado a ir buscar conceitos e instrumentos a outras disciplinas que pareciam ser totalmente estrangeiras, a saber, as artes visuais. A provocação do sub-título, como aponta Isabelinho, encontra-se no facto de que a relação deste livro de Gaze com a noção de romance (“novel”) é quase inexistente, mas, se ponderarmos cuidadosamente sobre a história desse género literário em particular, compreenderemos que tampouco se encaixa na perfeição naqueles livros de banda desenhada que parecem ter merecido esse nome…
De certa forma, regressemos a um ponto anterior, esta abordagem visual está na continuidade do espectro que imaginámos ininterrupto entre os dois possíveis pólos da escrita e da imagem. O primeiro sendo uma altamente estilizada e codificada forma de apresentar signos que representam um número fechado de elementos (sons vocálicos, consonantais, melódicos, etc.) mas podendo depois, por seu lado, combinar-se num número infinito de representações, o segundo signos sem a possibilidade da dupla articulação, que representassem objectos concretos - por vezes, eles mesmos - mais ou menos próximos desses objectos “reais” que representariam (portanto, constituindo a relação de iconicidade, segundo Peirce). Mas vimos também como essa divisão apresentaria problemas, se tomarmos em conta que desenhamos letras, entre outras relações de com-plicação (á hifenização não é gralha).
Tim Gaze é um poeta “experimental”, no sentido em que ele coloca “palavras” - estendemos a descrição desse mesmo termo para chegar a um puro gesto físico que cria uma mancha - num sistema que está para além dos padrões linguísticos convencionais ou consensuais. Recombina-as, aqui sob uma forma visual total, total no sentido de “apagar” a sua hipotética raiz “legível”. Por outro lado, trata-se de um autor que demonstra as suas preocupação pelos contextos formais de transmissibilidade, veiculação, espaço de divulgação dos textos (entendidos aqui no seu modo mais alargado possível), que podem ter lugar na página, mas que poderiam ser encontrados em telas, ecrãs, numa performance, num espaço físico público… O livro traz um aspecto curioso de “detenção” (apesar dele estar disponível em formato e-book pela Transgressor aqui e num slideshow musicado aqui). Se Gaze partiu da possibilidade da recombinação, e, para mais, através de processos permitidos pela flutuação das ferramentas digitais hodiernas (é uma hipótese, mas não cremos que esteja próximo em termos processuais da obra - apenas “visual”? - de Andrei Molotiu) - e que tornam realidade exponencial o que Raymond Queneau fez com Cent mille milliards de poèmes em papel - e que poderiam ainda ser ofertadas aos leitores/operadores graças àquele princípio teórico dos novos meios de comunicação social a que Lev Manovich chama “variabilidade”, a existência de um objecto como o livro vem fechar essa potencialidade. Não obstante, essa é uma herança de uma materialidade do texto e do próprio livro que havia sido iniciada por Mallarmé, o qual “tentou criar uma síntese entre uma visão filosófica do livro como um instrumento expansivo do espírito e a capacidade das suas formas físicas em incorporarem o pensamento em novos arranjos visuais”, segundo as palavras de Johanna Drucker em The Century of Artist’s Books. Outro autor, Jerome McGann (citado por Joseph Grigely em Textualterity), discute como “não existem obras finais ou acabadas, mas apenas textos finais ou acabados” (nosso sublinhado). 100 Scenes é um texto acabado, sem dúvida, a sua manipulação está fechada; todavia, ao mesmo tempo ele parece ser essa promissora expansão.

Ora, o trabalho de Gaze, abordando o abstracto, libertam-se de quaisquer associações dessa natureza. O que é um desenho? Paul Klee falaria de uma linha “a passear”. Louise Bourgeois responderia que é uma “secreção”. Em ambos os casos implica-se uma forma de ocupar o espaço com movimento, apesar de se capturar num estado estático. De acordo com Charles Hatfield, um importante nome da abordagem académica norte-americana sobre a banda desenhada, esta é uma arte de tensões, cujas forças habitam sempre o nexo entre dois pólos aparentemente contraditórios ou paradoxais. A banda desenhada é, como o próprio nome indica (em português), “desenhada”, mas esses desenhos não vivem no seu interior para encontraram a calma objectual e disciplinar. Bem pelo contrário, eles são criados para viver num permanente desequilíbrio accionado pelo acto dos leitores-espectadores.
100 Scenes, “100 Cenas“. Serão estas tentativas de nos aproximarmos do cerne desta obra, através destes nomes - mancha, sinal, desenho, banda desenhada, escrita assémica, etc. (atingíssemos nós 100 termos!) -, correctas? Ou haverá antes um outro caminho totalmente diferente, talvez físico, gestual para lá chegar? Ler, somente? Mas “ler somente” é sempre mais do que “somente ler” já, não é mesmo?
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta do seu livro.
Permita-me, Pedro Moura, comentar como "Anónimo", utilizando todo o respeito como se subscrevesse a identificação.
ResponderEliminarA banda desenhada (comics, fumetti, manga, tebeos,hq,etc.)é uma forma de arte, indiscutivelmente; é, sobretudo, uma forma de simbiose de artes - a escrita e a desenhada; será, porventura, a arte que pode dispensar a escrita para se ler como desenho. Isto é, no meu entender, banda desenhada (uma denominação traduzida do meio francófono), porquanto banda é trilho, tira, faixa, tal qual a alegada matriz desta arte em miniaturas dos séc.s XIII e XIV.
Para mim, tudo o que fuja ao padrão da vinheta, da tira e da sequência narrativa, não é banda desenhada - chamemos-lhe outro nome.
Sabemos que o desenho precedeu a escrita, pois também sabemos que a escrita é a variante do desenho. Há, pois, uma separação entre ilustração pura e simples, liberdade gráfica independentemente do género ou da escola artística, e o conjunto sequencial de ilustrações que pretende narrar uma história. Falo, evidentemente, da sequência "fílmica" da acção, na envolvência do espaço e do tempo da narrativa, como no cinema, com todos os seus jogos de enquadramentos, planos, cortes e saltos. Mas o cinema não é anterior à banda desenhada, porque a banda desenhada era cinema antes do cinema.
Com todo o arrazoado, quero dizer-lhe que, para mim, autor de textos e autor de desenhos (curiosamente mais forte numa das artes que na outra)muito do que tem trazido - e bem - a este seu excelente blogue, não é banda desenhada.
Caro Anónimo (não é assim tão difícil deixar um nome, na verdade),
ResponderEliminarEu não faço em nenhum lugar uma afirmação categórica de que "100 Scenes" é banda desenhada. Tento antes discutir que este livro traz toda uma série de interrogações formais, expressivas e sociais que permite a sua discussão no interior de uma disciplina a que chamamos banda desenhada. Além do mais, aos poucos o lerbd foi abordando outras cisas que não banda desenhada.
Não concordo quando escreve que a bd é "indiscutivelmente... uma forma de simbiose das artes", quer pelo "indiscutível" (uma vez que tudo é discutível, sendo a discussão uma saudável e inteligente troca de argumentos com vista a uma cada vez maior compreensão), quer pela "simbiose", que parece lançar para uma posição à la século XIX sobre a possibilidade de uma arte sintética (a ópera, depois o cinema, etc.).
É muito justo o que diz sobre a relação da banda desenhada com o desenho, a sua história, o cinema, mas a banda desenhada teve sempre vários modos de apresentação. E se a banda desenhada tem na tira a sua estrutura mínima, se quiser (veja-se o livro de Renaud Chavanne), também rapidamente surgiram exemplos que começaram a tratar a página inteira como a sua unidade (perdemos assim Edward Gorey, ou Frans Masereel, ou Andrejz Klimowski?). É desse outro território, menos comum nas discussões sobre banda desenhada, que encontramos sempre pequenos desvios, e de desvio em desvio chegamos a objectos aparentemente estranhos, como este.
A partir de quando é que podemos assinalar outro território? Ele existirá, mas o estimulante é não conseguir identificar essa fronteira exacta e colocar-nos a cabeça a rodopiar permanentemente.
Obrigado,
Pedro Moura
Caro Pedro
ResponderEliminarA minha interpretação corresponde a uma visão mais hermética que envolve a temática da banda desenhada; porventura, mais espartilhada no conceito de tira,vinheta e prancha. Em suma, se calha, sou uma espécie de conservador, de visão pouco ou nada futurista, talvez até daqueles que, tornando a bd minimalista, a coloque à altura da literatura infantil. Não quero esse papel!
Alargando-se o conceito - incluindo, como exemplo dado, Gorey, que é um mestre do traço, em Amerika de Kafka, por exemplo - consegue-se extravasar essa designação de "banda desenhada" que, só por si, fecha o conceito à habitual criação
do desenho-narração.
Talvez o termo "indiscutivelmente" surja numa linguagem autocrática e, por isso, abusivo nessa relatividade (ainda laivo de conservadorismo referido retro) mas a "simbiose" mantenho, pois ela existe em tudo o que é arte, porque na singeleja de um desenho, mesmo sem legenda, existe no criador e no leitor, uma leitura escrita, que não está impressa nem expressa.
Ler bd é um repositório e um laboratório, permita-me este rótulo: como tal, tem justamente o direito (e, talvez, o dever) de experimentar em todos os cadinhos, em todas as pipetas, todos os géneros que se circunscrevam ao meu restrito conceito de banda desenhada, mas que evoluiram - como toda a arte evolui - para novas formas e novas fórmulas da narrativa figurativa.
Perdoe-me manter-me, por agora, anónimo; podia tê-lo feito com um nick abstruso, que iria dar ao mesmo. Mas creia-me sempre um leitor deste espaço, porquanto como anónimo me é mais propício o elogio e menos o vitupério.
Um sincero obrigado.
Muito bem, está no direito de reservar o anonimato (de resto, poderia não o permitir através dos mecanismos do blog, mas isso seria coarctar a liberdade de quem o quer). A descrição que faz deste espaço é bem-vinda, e agradeço-lhe. É verdade que muitos dos gestos aqui tentados são isso mesmo: tentativas. Espero que nunca escorregue na direcção do ditado ou da obrigatoriedade.
ResponderEliminarÉ verdade o que diz: "simbiose" há em todas as artes, mas eu pensava estar a referir-se àquela noção wagneriana da Gesamtkunstwerk ou depois aquelas tentativas de Ricciotto Canudo e seguidores em criar "pirâmides" de integração das artes anteriores (falei disto num texto escolar intitulado "Razões de desapreço da expressão '9ª arte'"). Já nesse aspecto mais ontológico, sim, claro, toda a arte é sempre uma simbiose entre formas, modos de agir, entre criador, obra e leitor, etc.
Por isso mesmo, gostava de poder contribuir (de uma forma secundária, pois não sou autor; e pequena, que o escopo de influência deste espaço é risível) para essa mesma ideia de que a banda desenhada, sendo arte, não tem "limitações" e pode ser esticada nalguns dos seus elementos centrais (por hipótese, a relação entre texto e imagem, ou a articulação de imagens múltiplas num mesmo espaço de composição) sem deixar de ser ela mesma...
Pano para mangas! (e já experimentado noutros textos).
Obrigado,
PM