Apesar de termos experiências de literatura, animação, cinema, teatro e outras linguagens artísticas desde crianças, o modo como a banda desenhada é fruída leva a que se crie uma aura egotista e nostálgica muito particular, da qual se torna extremamente difícil de nos libertarmos. O crescimento intelectual, cultural e estético tem de estar aliado a uma "morte" de coisas que anteriormente se amavam, pensava-se então, "para sempre". Mas quando essa morte é física e real, há sempre um pequeno vazio que se sublinha...
Moebius é um desses artistas que compuseram um estrato descoberto e lavrado durante a adolescência que se pensavam eternizados. O mundo cada vez mais complexo do Incal, com o seu tão estranho e tão familiar John Difool, Arzach e a sua grafia mutante, as suas versões de heróis familiares de outros quadrantes, a descoberta - tão surpreendente na mente jovem! - de que era a mesma pessoa que o Giraud do Blueberry [por isso é "Moebius" que é Jean Giraud para nós, não o contrário], e depois, à medida que se crescia, a descoberta de obras anteriores, mais terra-à-terra, ou o erotismo, outras sagas, etc. tudo isso são pequenos blocos que criam uma sensação difícil de jogar fora para sempre.
"Moebius" é um daqueles termos que ultrapassa o homem e até a obra, para chegar a elementos soltos que se podem recombinar na imaginação de todos (como Kirby, Barks, talvez). Até a pintura de Quatre-vingt-huit (ver imagem) explodia as formas orgânicas e multicromáticas que sempre surgem na nossa mente quando se pensa nele, como se fosse capaz de chegar àquele fundo informe onde a imaginação ainda não ganhou expressão corrente deste lado do mundo.
Mesmo tendo em conta as obras mais recentes - ora interessantes e iluminadas como 2001 Après Jesus Christ ora confusas mas provavelmente necessárias como Inside Moebius - por vezes "arrefecidas", não apagaram a importância dessas outras anteriores, sobretudo numa ideia de "formação", já que, no nosso caso pessoal, ele é uma das peças que foi libertando as leituras infantis para um outro tipo de atenção. Por isso, obrigado.
Adeus, Moebius, até ao infinito.
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ResponderEliminarUm legado ímpar! Confesso que "tremi" quando li há bocado a noticia da sua morte!
ResponderEliminarDescobri o Moebius durante a minha adolescência em meados dos anos 80 e foi sempre um dos meus autores favoritos.
Bye Moebius
Obrigado pelos momentos de felicidade que me deu através da banda desenhada
É um autor que só agora começo a descobrir. Do pouco que vi, fiquei deslumbrada.
ResponderEliminarTenho só uma pergunta que muitas vezes me ocorre: Quais são as principais diferenças entre a banda desenhada japonesa, americana e europeia? Do que já vi, dá-me a ideia que os japoneses dão muito mais ênfase ao traço do que às sombras e que as pessoas são sempre vítimas do destino e nunca o seu "mestre". Gostaria, se possível, saber a sua opinião.
Cara Ana Luísa,
ResponderEliminarComo já deve ter depreendido de alguns dos meus textos, tenho uma grande dificuldade em essencializar produções nacionais dessa maneira. É verdade que existem características necessariamente comuns por um fundo cultural, formações de mercado, preferências comerciais, e por aí fora, mas muitas vezes temos de ler as obras individualmente para encontrar exemplos de uma coisa e o seu contrário.
Em termos estilísticos, é verdade que no Japão a produção de banda desenhada é sobretudo a preto-e-branco, o que leva a uma menor quantidade de "mestres da cor", mas significará isso que são todos mais profícuos no desenho a linha? Então e o Mattotti? Por outro lado, não será quase toda a banda desenhada de super-heróis um epítome do Destino inexorável?
Sinceramente, e espero que não leve a mal a minha franqueza, deixe de procurar esse tipo de características generalistas e essencialistas, procurando antes as qualidades que tornarão cada obra em particular interessantes para si, construindo assim o seu próprio "corpus" pessoal de obras e autores desta área. O Moebius é uma referência importante, sem dúvida, nessa construção alargada.
Obrigado,
Pedro Moura
Não é de todo minha intenção basear as minhas leituras em "características generalistas e essencialistas". Se há coisa que abomino são as generalizações e as tendências. Nunca leio qualquer livro. Escolho sempre algo que em algum aspecto se identifique comigo. Apenas tive esta curiosidade como podia ter outra qualquer. Gosto de saber e perceber o porquê de determinadas diferenças culturais, neste caso da banda desenhada de diferentes regiões - lá está, a História. Estudar e relacionar essas mesmas diferenças ajuda-me e muito, no meu trabalho e a desenvolver o meu próprio traço.
ResponderEliminarCara Ana Luísa,
ResponderEliminarNesse caso só posso aconselhar à continuação da leitura, e o mais diversamente possível. Quem sabe, mais tarde, se poderá conseguir encontrar padrões entre cada "tradição". Também existe bibliografia, precisamente histórica, sobre cada tradição. A leitura de obras de cariz teórico também podem ajudar a ter outros instrumentos de compreensão e interpretação. São uma hipótese de trabalho.
As "diferenças culturais" são de uma extrema complexidade, para podermos identificar a sua emergência por um ou dois factores, que só farão sentido isolar para uma análise circunscrita, mas nunca para explicações finalistas. Ou seja, tudo isso é um esforço constante, e jamais um processo com um fim preciso.
Boa continuação,
Pedro
Compreendo. Obrigado pela explicação.
ResponderEliminarNão há nada melhor como a diversidade.
Cara Ana Luísa,
ResponderEliminarEspero que não tenda nenhum dos meus comentários como "lições de cátedra", mas simplesmente conselhos ou avisos à navegação... Quanto mais lemos, mais cuidado temos sobre leituras generalistas. Acabei agora mesmo de ler um livro sobre mangá e religião que me pôs a par de um título que desconhecia, "Ultraheaven", que já estou à procura para ler; e que me alertou para dimensões desconhecidas de alguns outros títulos pelos quais passara ao de leve... Estamos sempre a inflectir as nossas direcções de pensamento e leitura.
Cumprimentos,
Pedro Moura
Sim, claro, e à medida que leio mais, noto que acabo por (re)descobrir obras que outrora descartava. É como uma teia em constante crescimento.
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